TERREIROS DE CANDOMBLÉS NO RIO DE JANEIRO: TERRITÓRIOS E ESTRATÉGIAS IDENTITÁRIAS NAS PRÁTICAS SIMBÓLICAS E SOCIAIS INTRODUÇÃO

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Autora: Renata de Oliveira Moraes Universidade Federal Fluminense E-mail: romgeo@ig.com.br TERREIROS DE CANDOMBLÉS NO RIO DE JANEIRO: TERRITÓRIOS E ESTRATÉGIAS IDENTITÁRIAS NAS PRÁTICAS SIMBÓLICAS E SOCIAIS INTRODUÇÃO O presente trabalho refere-se à apresentação dos resultados do estudo comparativo das práticas simbólicas e sociais territorializadas de cinco terreiros de candomblés localizados no subúrbio e na periferia da região metropolitana do Rio de Janeiro de diferentes nações, a saber: quetu, angola e jeje. Vinculamos as práticas simbólicas e sociais territorializadas dos terreiros à questão da tradição, e assim, buscamos perceber como eles traçam as suas estratégias de afirmação identitárias enquanto comunidade religiosa e, ao mesmo tempo, mantém relações político-sociais que, em alguns casos, podem mobilizar mais pessoas do que pela religião. OBJETIVO E METODOLOGIA O nosso objetivo é compreender as práticas religiosas e sociais territorializadas nos terreiros de diferentes nações de candomblés como estratégias de afirmação identitária que transitam entre a tradição e a contemporaneidade. Os procedimentos metodológicos são a pesquisa bibliográfica e o trabalho de campo a partir da observação direta e pessoal do fenômeno estudado. O estudo empírico nos terreiros se iniciou em dezembro de 2007 e terminou em maio de 2009. As entrevistas ocorreram com alguns adeptos e principalmente com os pais e mães-de-santo e tinham como objetivo captar informações sobre as práticas dos terreiros. As entrevistas foram gravadas, porém, muitas revelações relacionadas aos conflitos e rivalidades entre os terreiros e nações foram obtidas em conversas informais que eram anotadas em cadernetas assim que possível. CONSIDERAÇÕES SOBRE AS NAÇÕES DE CANDOMBLÉS De acordo com Verger (2002), a palavra candomblé é de origem bantu, cujo significado é 'dança', o que indica que esta religião apresenta uma forte dimensão corpórea, já que não se separa a dança do corpo, da música e do canto. Barros (1999) e Corrêa (2004) relatam que de sua fundação na Barroquinha, em Salvador, transferiu-se a casa de candomblé para diversos outros locais, acabando por instalar-se na Avenida Vasco da Gama, sob o nome de Ilê Ia Naso, sendo também 1

conhecida como Casa Branca do Engenho Velho. A data de fundação do terreiro remonta, mais ou menos, a 1830. Do seu axé originaram-se o axé do Gantóis e o do Opó Afonjá, sendo que essas dispersões ocorreram ao tempo de sucessões na direção da Casa Branca, no início do século XX. Numerosos terreiros de candomblés foram criados a partir da dispersão destes, não só na Bahia, mas em diversas partes do Brasil. Os terreiros de candomblés foram territórios de diferenciação dos mais importantes para a demarcação de identidades das diversas nações africanas e, ao mesmo tempo, de intercâmbio cultural entre elas. Tanto é assim que o conceito de nação foi, aos poucos, sendo limitado ao âmbito religioso. O termo nação passou a designar uma modalidade de rito, pois com o fim do tráfico de escravos as denominações étnicas dos povos africanos deixaram de ser operacionais para a classe senhorial, mas persistiram entre os africanos e seus descendentes crioulos no âmbito de suas tradições religiosas e, atualmente, persistem entre todos os adeptos do candomblé, independente de suas origens étnicas, sociais e econômicas. Jeje Nagô (quetu) Angola Línguas Ewe, fon, gun, mahi iorubá Quicongo / quimbundo Países Togo / Benim Benim / Nigéria Angola Divindades Vodum (Mavulisá, Leba, Gum ) Orixá (Olorum, Exu, Ogum ) inquice (Nzambi, Pambujila, Nkosi) Fonte: Tabela adaptada de CASTRO (2001) e das nossas entrevistas Uma nação de candomblé atualmente identifica-se pela maneira como realiza seus rituais, pela língua do ritual, pelo conjunto de mitos nos quais se baseiam seus ritos, pela maneira como toca seus tambores, pelas cantigas, pelas folhas sagradas que usa em suas iniciações e magias, pelas divindades que cultua, pelo tipo e pela forma como os objetos sagrados são organizados no terreiro, enfim, pelas práticas, mitos e cultura material herdada dos antepassados e atualizados no espaço-tempo em que estão inseridos. O terreiro de candomblé, independente da nação, é um território dinamizador de identidades religiosas que se afirmam na busca de raízes africanas. Nele realiza-se uma apropriação simbólica do espaço onde se representa o fluxo constante entre os homens, a natureza e os deuses africanos. Neste sentido, o território não é apenas um lugar de reunião, uma centralidade geográfica na qual se instala a vida cotidiana da comunidade, nem é, tampouco, um mero depositário das coisas sagradas, mas ele, em si, adquire um valor de 2

transcendência e, portanto, de sagrado, porque é um espaço/tempo demarcado onde homens e deuses se reúnem, se comunicam, interagem. Desta comunicação, que se utiliza da tradição, seja ela inventada ou não, forma-se e transforma-se cotidianamente a identidade das nações de candomblés. As construções de identidades religiosas nas nações de candomblés estão pautadas na seleção de deuses e deusas africanos de acordo com as necessidades dos escravizados e de seus descendentes no Brasil, ou seja, os deuses e deusas selecionados foram de modo geral, os da guerra (ogum, Gum, Nkosi), da justiça (Xangô, Sobô, Nzazi), da sedução (Oxum, Aziri, Dandalunda), da prosperidade (Oxóssi, Otolu, Mutakalambo), entre outros que pudessem ajudá-los a suportar os infortúnios da realidade na qual estavam e/ou estão inseridos. TERREIROS E OBJETOS TERRITORIALIZADOS A organização territorial dos terreiros de candomblés constitui um complexo sistema geossimbólico, cujo acesso ocorre na vivência dos seus adeptos no terreiro, além de ser reveladora de como eles devem se comportar em cada lugar que o constitui. Como nos diz Milton Santos (2006), é o uso do território que faz dele objeto de análise social. O terreiro de candomblé é compreendido como território geossimbólico (Corrêa, 2004), fortalecendo a identidade de seus fiéis. Ele é constituído de formas e práticas que só fazem sentido enquanto partes integrantes uma da outra, definindo um espaço/tempo demarcado por construções identitárias baseadas em ritos e mitos de origens em diálogo com o meio geográfico no qual estão inseridos. Os descendentes de escravos criaram soluções de reconstrução de suas práticas religiosas a partir da inscrição e reterritorialização de seus deuses e deusas nos terreiros de candomblés, pois estes passaram a concentrar em um único espaço as divindades que reinavam separadamente em terras diferentes na África, que como nos diz Barcellos (2005), num conjunto muito mais colorido. As práticas religiosas do povo-de-santo no contexto suburbano e periférico do Rio de Janeiro criam soluções territoriais de constante adaptação da arquitetura dos terreiros de candomblés ao contexto geográfico no qual estão inseridos - que visam fortalecer e exprimir a relação simbólica existentes entre elas e as divindades e simultaneamente adaptando-as às condições de vida do mundo contemporâneo. Os terreiros de candomblés, de um modo geral, são identificados pela presença discreta de alguns objetos geossimbólicos, como 3

quartinhas (vasos), os quais geralmente ficam expostos sobre os muros, mariôs, (palhas penduradas nos portões) e/ou por uma bandeira branca no alto de uma árvore, indicando que ali é um território sagrado, de morada e culto de orixás, voduns, ou muquixes. Os objetos presentes nos terreiros são instrumentos representativos dos voduns, orixás e muquixes. Muitos deles são criados nos próprios terreiros e constituem-se em obras de artes impregnadas de mistério e magia. Ao serem utilizados nos rituais sagrados eles se tornam extensões dos corpos dos filhos-de-santo possuídos por seus deuses e deusas, sendo de grande importância para o processo de construção identitária dos mesmos, já que são testemunhos materiais de suas histórias e tradições. Devido à importância desses objetos para os fiéis, um grupo de pais e mães-de-santo empenha-se no Rio de Janeiro para recuperá-los, já que foram apreendidos, ou melhor, seqüestrados pela polícia por conta da repressão contra as religiões de origem africana. Os objetos que ainda existem se encontram no museu da polícia do Rio de Janeiro e, atualmente, mãe Meninazinha de Oxum, assim como mãe Beata de Iemanjá e mãe Torody de Ogum estão, há anos, lutando junto à justiça para resgatar todos os pertences do candomblé. De acordo com mãe Meninazinha, a direção do museu alega que não pode devolver os objetos porque eles foram tombados pelo Iphan. De acordo com as palavras de mãe Meninazinha, estes objetos não têm que estar no museu da polícia. Certamente muitos já se perderam, porque os policiais saiam invadindo as casas e saqueavam muita coisa e, os objetos que estão lá, certamente não são nem a terça parte do que eles levaram, mas mesmo assim, o que restou é nosso. Pode ficar aqui em casa, no memorial Yia Davina, pois temos espaço para isso, ou em qualquer outra casa de candomblé. Esta causa não é minha, é de todos os terreiros, o que não pode é ficar na policia, pois não tem nada a ver, já que eles não são criminosos pra ficarem presos. (Mãe Meninazinha de Oxum) Os objetos pertencentes ao patrimônio simbólico dos terreiros de candomblés que foram expropriados pela polícia tornam-se ininteligíveis e fragmentados fora dos terreiros. Foram desterritorializados e perderam, por isso, a sua força identitária, pois, perderam o uso cultural, ou seja, o significado geossimbólico que desfrutavam. Num contexto não-religioso, perderam a magia, foram dessacralizados, transformaram-se em meros objetos. TRADIÇÃO E CONTEMPORANEIDADE DAS PRÁTICAS SIMBÓLICAS E SOCIAIS DAS NAÇÕES CANDOMBLÉS Procuramos problematizar as práticas religiosas e sociais das nações de candomblés no subúrbio e na periferia da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, tendo como 4

ferramentas teóricas de análise os conceitos de território, identidade e tradição, que se constroem mutuamente, visto que os geossímbolos, constituintes do terreiro, configuram identidades pautadas numa idéia de tradição. A questão da tradição é fundamental no processo de formação identitária do terreiro. Isto porque todos os terreiros reivindicam a tradição para legitimar as suas práticas e os valores das suas nações. Esta tradição é sempre apresentada como preservação sem mudanças dos ritos, a pureza, entendida como não-sincretismo (tanto em relação ao catolicismo, quanto à umbanda) e a valorização da ancestralidade africana. Apesar desta visão genérica de tradição, na prática, os elementos que devem ser selecionados para compor a tradição variam de terreiro para terreiro, de sacerdote para sacerdote. Por isso, a tradição é sempre idealizada, construída e mutável. Observamos variações entre os líderes religiosos em relação à tradição. Na questão da transmissão do conhecimento, por exemplo, mãe Meninazinha, afirma que a tradição deve fundamentar-se na oralidade e na vivência. Por isso o candomblé não pode ser verdadeiramente conhecido por livros: Os livros não têm axé, costuma dizer. Pai Walter, por sua vez, valoriza a erudição, sem negar a importância da oralidade, como condição para a manutenção de uma tradição fiel às raízes. Quanto às práticas rituais do candomblé, mãe Meninazinha acredita que o que deve ser preservado é apenas o ritual, já os arranjos territoriais dos terreiros podem e devem ser modificados. Já para Pai Dica, a conservação da estrutura geossimbólica do terreiro diferencia o candomblé tradicional do candomblé de ostentação. Mesmo o ideal de pureza defendido na visão da tradição é arranhado pela vida cotidiana. Mãe Meninazinha nos relata que recebia, e durante certo tempo até se submetia, à influência da Igreja Católica. Do mesmo modo, aceita dividir o espaço do seu terreiro com um Exu de umbanda, apesar de não prestar obrigações a ele, enfatiza. Pai Walter, apesar de ser o mais fervoroso defensor do não sincretismo entre as nações de candomblés, deixa escapar que em algumas ocasiões específicas, permite que cada filho ofereça alguma coisa para suas entidades de umbanda, demonstrando que, por mais puro que se deseje ser, é necessário contemporizar para assegurar a presença dos fiéis. Pai Walter acrescenta que ainda que se busque a tradição e se mire no passado como um projeto de afirmação identitária, são as questões da vida cotidiana - desemprego, doenças, procura de casamento, entre outras - que 5

funcionam, muitas vezes, como atrativos para que se busquem os terreiros. O uso da tradição como estratégia identitária também assume rumos diferentes segundo a projeção política e religiosa de cada terreiro e/ou nação. Para os terreiros de nação quetu, a nação hegemônica, observamos na pesquisa que a generalização, tomar o estilo quetu como padrão de se praticar o candomblé se faz de modo natural, pela presença da maioria, e não como algo necessariamente premeditado, como um imperialismo nagô, mas ainda assim, esta generalização afirma os valores e fortalece a identidade da nação quetu; já para as nações jeje e angola, e isto fica claro na fala de pai Dica e pai Walter, é a particularização, é a tomada de consciência do que comportam de específico que se torna o princípio da afirmação identitária. Talvez o que exista de mais paradoxal quando se aborda a questão da tradição é que, apesar de todos os candomblés defenderem uma visão de tradição purista, de genealogia africana e sem o sincretismo (seja com o catolicismo ou a umbanda), na prática realizam usos sociais diferenciados do que consideram tradição, Pode-se, deste modo, encontrar a tradição na oralidade ou na erudição, numa ambientação mais moderna e luxuosa ou num estilo mais rústico e sem ostentação, segundo a fala de pai Dica, numa visão que destaca as semelhanças entre as nações de candomblé ou numa atitude que destaca a particularidade de cada nação ou mesmo de cada terreiro. A mesma polissemia que se verifica na questão da tradição existe na questão das práticas sociais. As práticas sociais podem ser tomadas genericamente, no sentido de toda e qualquer medida que mobiliza uma dada comunidade para uma ação coletiva, neste sentido, como acredita pai Dica, a própria religião já seria uma prática social contínua, mas pode também ser entendida no sentido de algo que extrapola o religioso e visa uma ação social transformadora do quadro político e sócio-econômico, envolvendo, portanto, um projeto reformista, ou mesmo revolucionário. Deste modo, as práticas sociais realizam-se no âmbito das lutas políticas e por isso adquirem uma dimensão que transcende a religiosa, pois não se trata mais de transformar o espírito, mas de almejar uma redistribuição do papel social do negro em relação às diversas dimensões ou escalas do poder e, em última análise, em relação ao próprio Estado. Nesta dimensão, as práticas sociais são sempre negociadas e envolvem uma multiplicidade de sujeitos, daí o diálogo entre os terreiros e órgãos governamentais, ONGs, fundações nacionais e internacionais, movimento negro etc. A polissemia relatada 6

acima está presente na fala dos pais e mães de santo. Para pai Dica, todo terreiro, num sentido lato, executa um trabalho social, na medida em que trabalha com os fiéis valores morais que asseguram uma boa conduta social. O Candomblé exerce, assim, uma função pedagógica, desenvolve um processo de socialização que afasta o fiel da criminalidade. O candomblé educa e fortalece a pessoa. Entretanto, num sentido estrito, pai Dica considera que as práticas sociais podem prejudicar as práticas religiosas, pois corre o risco de criar uma ligação às vezes de dependência do terreiro em relação à ONGs, órgãos governamentais, fundações etc. Deste modo, pessoas de fora do candomblé poderiam ter algum grau de ingerência prejudicando a autonomia do terreiro. Enfim, para o pai-de-santo as práticas sociais tendem a descaracterizar o terreiro na sua função religiosa. Pai Walter também se demonstra crítico das práticas sociais nos terreiros. Ressalta a importância da solidariedade religiosa, mas afirma que as práticas sociais, entendidas como práticas públicas de assistência e promoção social devem ficar por conta do governo, do Estado. Para mãe Meninazinha, as práticas sociais são bem-vindas, para não deixar o terreiro ocioso quando não houver uma atividade religiosa. A mãe-de-santo reconhece nas práticas sociais um elemento aglutinador da comunidade religiosa e circunvizinha, e que, por isso, dá mais visibilidade ao terreiro. Mas deixa claro que, mesmo importante, as práticas sociais são secundárias às práticas religiosas. É a tradição religiosa, é o histórico do terreiro, e da própria mãe Meninazinha, como parte fundamental desta história, que projeta o terreiro no povo-de-santo, ainda que as práticas sociais possam aumentar o seu prestígio. Para Mãe Beata de Iemanjá e mãe Torody as práticas sociais não prejudicam as práticas litúrgicas e nem são secundárias às primeiras. Na verdade, as práticas sociais complementam e interagem com as práticas religiosas. Ambas assumem a postura de agentes das práticas sociais. Mãe Torody chega, inclusive, a afirmar que não participa de inauguração de terreiro filial que não tenha projetos sociais. Assumem as práticas sociais como estratégia identitária de afirmação da cultura afro-brasileira, do negro e, ao mesmo tempo, elemento de superação das desigualdades sociais e raciais tão presentes nos municípios da Baixada Fluminense. Assumem parcerias com ONGs e instituições governamentais e até internacionais para aumentar o alcance político e social de suas práticas sociais. A 7

tradição, não se insere apenas nas práticas religiosas, mas também se estende aos trabalhos acadêmicos e às parcerias sociais que são estabelecidas com os terreiros. Assim, os terreiros que mais são objetos de pesquisas, como nos lembra Capone (2004), são os mais conhecidos terreiros nagôs da Bahia (Casa Branca, Gantois, Alaketu e o Axé Opô Afonjá) e seus descendentes e, são estes os mesmos terreiros que são priorizados na parceria pelas ONGs e instituições governamentais. Quando se relaciona as práticas simbólicas e as práticas sociais à questão identitária, apesar de freqüentemente tais práticas realizarem-se no mesmo terreiro e do fato de serem geridas pela mesma liderança religiosa, há projeções identitárias distintas: as práticas simbólicas afirmam uma identidade de resistência, enquanto as práticas sociais afirmam uma identidade projeto. As práticas simbólicas fundamentam-se, sempre, no ideal da preservação da tradição. Há todo um sistema de referências míticas, que representam a ordem moldada pelas divindades. Mesmo quando há a referência aos personagens históricos, estes são lembrados como portadores de uma habilidade ou capacidade que os diferenciam das pessoas comuns e garante a comunicação com as divindades. É comum, também, o culto de seres humanos que se elevaram ou tornaram-se divindades. Fala-se com freqüência de tempos imemoriais quando os orixás viviam entre os homens. A tradição, apresentada de forma mítica, torna-se em si uma estratégia identitária em construção continuada, Garante a invunerabilidade da existência, afirma a solidez de cada nação, testada pelo tempo. Assegura a origem, se não histórica geográfica, pelo menos a origem mítica. É no mito que se encontra a história dos deuses, os únicos que podem pretender a eternidade. A tradição dá chão ao candomblé porque sem ela não é possível nenhuma identidade. É sempre como portadores de uma tradição que os praticantes dos candomblés se apresentam. Podem até modernizar a tradição, trocar o chão de terra batida por piso de cerâmica, migrar para áreas mais urbanas e menos rurais, comprar animais no Mercadão de Madureira, ao invés de criá-los, diminuir o prazo de feitura do santo, mas no fundo acreditam que a fé, que os laços espirituais que ligaram seus antepassados aos deuses, lá na África, ainda são os mesmos. As práticas sociais afirmam uma identidade projeto, na medida em que buscam criar um espaço de transformação política e promoção social. Vislumbram superar as tradicionais condições históricas de subalternização a que foram condicionadas, de um modo geral, o negro e seus descendentes e, de um modo específico, a mulher. Para isto, determinados 8

terreiros se articulam com várias instâncias do poder e de seus agentes (governo federal, estadual, municipal, ONGs, universidades, movimento negro etc). Procuram a aceitação religiosa pelo social, ou seja, na medida em que a comunidade circunvizinha percebe que os terreiros de candomblés são parceiros confiáveis, passa a aceitá-lo também, nas suas práticas religiosas, ainda que muitas vezes não as compreendam. Assim, a aceitação social, devido ás práticas sociais, gera a aceitação religiosa e funciona como um foco de pressão para as autoridades constituídas. Por outro lado, é comum ONGs e governos buscarem nos terreiros legitimidade para seus projetos político-sociais. De todo modo, verifica-se em alguns terreiros, agentes que negociam para a superação das mazelas sociais e da miséria crônica que perpassa as áreas periféricas do Rio de Janeiro, em especial, os municípios da Baixada Fluminense. Sabemos que nos aventuramos por campos pouco explorados e, por isso mesmo, talvez gere mais questionamentos do que respostas. O estudo comparativo entre terreiros de diferentes nações de candomblés, ainda mais no âmbito das práticas sociais, é praticamente inédito. A questão da influência nagô e suas parcerias nos projetos sociais é praticamente ignorada. A própria questão da centralidade da periferia no candomblé, ou seja, o processo que desenvolveu as áreas periféricas da metrópole carioca como áreas centrais para o culto do candomblé, merece ser melhor estudado. Não vemos, contudo, o caráter pouco conclusivo do nosso trabalho como demérito. Se ele ajudar a construir este campo de saber, contribuindo para a melhoria dos questionamentos, se ele puder colaborar para futuros estudos tanto no campo da geografia quanto nos das demais ciências sociais que se interessem pelo tema, acreditamos que terá valido a pena. BIBLIOGRAFIA BARCELLOS, Mario César. Os Orixás e o Segredo da Vida. Lógica, Mitologia e Ecologia. Rio de Janeiro: Pallas, 4ª ed., 2005. BARROS, José Flávio Pessoa de. O Banquete do Rei... Olubajé. Uma Introdução à Música Sacra Afro-Brasileira. Rio de Janeiro: UERJ. Intercon, 1999. BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil. São Paulo: Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais, 3ª ed., 1960. CAPONE, Stefania. A Busca da África no Candomblé: Tradição e Poder no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2004. 9

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