1 A CIDADE É UMA SÓ?: BRASÍLIA, PLANO SÍNTESE por Angelita Bogado Apague os rastros, e apostando na arquitetura dos anos de 1920, que criava espaços de vidro e aço, nos quais não é fácil deixar rastros. 1 A Cidade é uma Só? 2 Documentário assinado por Adirley Queirós (Brasil, 2012), conta como os governantes da nova capital do país varreram do Plano Piloto a população que trabalhou durante anos nos canteiros de obras para erguer Brasília. Para refletir sobre a questão-título A Cidade é uma Só?, o diretor traz para a cena três personagens centrais Nancy, Dildu e Zé Bigode 3. Moradores da cidade satélite de Ceilândia, eles rememoram fatos históricos da criação do entorno de Brasília, ao mesmo tempo em que revelam o asséptico projeto político de erradicação das invasões. Narrativas que deveriam permanecer no plano do inenarrável, já que o governo se empenhou bastante na época para anular os rastros desta população, são redesenhadas na linguagem fílmica. O projeto desenvolvimentista do presidente Jucelino Kubitschek contemplava a criação de uma nova capital para o Brasil com o objetivo de desenvolver e modernizar o interior do país. O planalto central, equidistante de todas as regiões norte, sul leste e oeste- se apresentou como lugar ideal de disseminação e interiorização do progresso. Inspirados nas ideias modernistas da arquitetura mundial (Cf. Bauhaus Modell und Mythos, texto de Sandra Coelho), os idealizadores do Plano Piloto buscaram criar através do racionalismo dos apartamentos de vidro e aço um ideal de 1 JANZ Rolf-Peter, em Ausente e Presente: sobre o paradoxo da aura e do vestígio, fala sobre a recusa de Walter Benjamin em se morar em salas sobrecarregadas de quinquilharias e utensílios dos anos de 1880, Apague os Rastros é uma referência ao poema de Brecht (Verwisch die Spuren).(SELDMAYER, S.; GUINZBURG,J. (Orgs). Walter Benjamin: rastro, aura e história, 2012). 2 Produzido com recursos parciais do Ministério da Cultura e TV Brasil, sob a temática das comemorações dos 50 anos de Brasília, o filme ganhou o festival de cinema de Tiradentes em 2012. 3 Apenas Nancy Araújo é personagem histórica, Dildu (Dilmar Durães) e Zé Bigode (Wellington Abreu) são personagens criados pelos roteiristas Adirley Queirós e Thiago Mendonça.
2 uniformidade, procurando assim acabar com os rastros da diferença entre seus moradores. Na estética moderna, a face da casa não determinaria vestígios de classe e da vida privada de seus moradores e, ao mesmo tempo, suas grandes vidraças transparentes abririam uma janela para o mundo externo e o convívio social. As ideias foram estilhaçadas, em A cidade é uma Só? o mundo externo da capital está confinado em automóveis. A maioria dos planos é filmado do interior de veículos, seja do carro do corretor Zé Bigode ou do ônibus urbano que Dildu pega para ir e voltar do trabalho, os personagens circulam pela cidade, dormem e comem sem sair de suas casas sob rodas. O espaço está praticamente suspenso. Suprimido da imagem, o diretor imprime o espaço na fala das personagens, Brasília e Ceilândia são traçadas a partir do ponto de vista de quem é mero rastro da cidade. Através do depoimento de Nancy, tomamos conhecimento da Campanha de Erradicação das Invasões 4 (CEI), implantado nos anos de 1970-1971, o projeto visava retirar os trabalhadores e suas famílias do Plano. Bem menos elaborado do que o projeto de Niemayer e Lúcio Costa 5, Nancy conta que o governo distrital arquitetou um plano para os sem terra do Plano: levar os pobres que enfeiavam a capital para um lugar bem distante. O governo propagandiava Ceilândia como uma área para harmonizar os serviços públicos e dar condições de vida melhor aquela gente, até então favelados e Nancy relata que o lugar nada se assemelhava à propaganda: tinha muito mato, muita terra e nenhuma infraestrutura. No lugar das linhas que criaram o desenho de uma aeronave no planalto central, os candangos 6 ganharam outras duas linhas um X. O X também era uma marca de uniformidade, pintado nas casas dos moradores da vila do IAPI 7. Nancy diz que o X determiva quem teria a sorte e o direito de se mudar para Ceilândia, quando derrepente, ouvimos uma propaganda da época, feita para a comemoração do aniversário de Brasília, anunciar: Brasília, síntese da nacionalidade espera por você. A propaganda, de 1972, do Governo Distrital que convida a todos a participar de 4 O nome Ceilândia foi cunhado da sigla CEI, Capanha de Erradicação das Invasões. 5 Oscar Niemayer (1907-2012), e Lucio Marçal Ferreira Ribeiro de Lima e Costa (1902-1998), foram os arquitetos responsáveis pela criação de Brasília. Niemayer foi convidado por JK e Lúcio Costa ganhou, em 1957, o concurso para a escolha do plano piloto de Brasília. Seu projeto, cujo o formato era de um avião, colocou em prática os conceitos modernistas da cidade imaginada por JK, em que o automóvel estava no centro das atenções. 6 Nome dado aos operários que trabalharam na construção de Brasília. 7 IAPI era área considerada pelo governo como invasão.
3 sua história, um ano antes havia excluído, dessa síntese de nacionalidade, os 60 mil trabalhadores da cidade. As linhas que se cruzam para formar o desenho do avião ou do xis, também se cruzam entre si, trazendo a marca da tensão instaurada com o projeto de erradicação das invasões. Na invisibilidade da linguagem, o diretor aponta os rastros que unem inevitavelmente a cidade satélite e sua capital, as linhas da Ceilândia e do Plano se encontram a todo momento no filme, mostrando a falência do projeto governamentista de mantê-las em paralelo. Nesse sentido, é exemplar a cena do carro que promove um efeito de espelhamento dos espaços. O reflexo da periferia no Plano constrói filmicamente a relação ambígua de presença/ausência da(s) cidade(s). O velho automóvel do corretor Zé Bigode, um santana que vemos em várias passagens da narrativa, por duas vezes é filmado em um plano frontal geral. Em uma cena, o carro está circulando pelas avenidas de Brasília, e em outra, o vemos nas ruas de Ceilândia. Além do mesmo enquadramento, a música clássica, inserida apenas nestas duas cenas, é a principal fonte do efeito de espelhos. A linguagem, nesse momento, parece expressar um sentimento de unidade, como se Ceilândia e Brasília fizessem parte realmente de um mesmo espaço, entretanto, o asfalto do Plano em contraponto as ruas de terra da periferia nos faz questionar se a cidade realmente é uma só? Dildu também expressa essa relação ambígua de pertencimento e nãopertencimento, de privação e presença do Plano. Faxineiro em uma escola da capital, ele lança sua candidatura a vereador distrital pelo PCN, Partido da Correria Nacional, entre as suas propostas de governo está a de indenização para os antigos moradores expulsos do Plano pela CEI. Da mesma forma em que é clara a sua tarefa política de luta contra o esquecimento e de reafirmar sua identidade, em várias passagens quando ele e o amigo Zé passeiam de carro pelo Plano o desejo de sair daquele lugar é explícito, chegando a dizer morreu foi muita gente aqui ninguém tem sorte aqui tem que sair daqui o nosso negócio é pra lá. Mais adiante, durante sua panfletagem, ele diz Brasília sem nós é um fantasma a cidade pára se agente não tiver lá, mas agente não tem valor. O problema não está em Brasília ser uma cidade forjada. Criada a partir de regras e uma gramática própria, a cidade acreditou que poderia normatizar os espaços, e deixar de fora do quadro o que não era digno se ser avistado em suas grandes vidraças. Para toda a regra há de haver subversão. A cidade não pode varrer a diversidade de elementos que a constitui sob a pena de transformar-se em uma cidade
4 sem vida, fantasmagórica, como bem assinalou Dildu. Além da campanha política de Dildu, a subversão encontra expressão nas letras de Rap cantadas por ele e seus amigos. O Rap é uma expressão de arte que não busca nenhum tipo de conforto ilusório sobre uma estética do belo, a arte das ruas deixa uma marca concreta de denúncia da não uniformidade histórica entre Brasília e seu entorno. Nas palavras do personagem é preciso ressignificar o X. Além dos depoimentos sobre o surgimento de Ceilândia e das cenas em que canta músicas sobre o Plano, Nancy percorre a narrativa fílmica - incluindo uma visita ao arquivo nacional - em busca de um jingle produzido pelo governo distrital durante a Campanha de Erradicação. Crianças, incluindo a Nancy, que pertenciam as famílias expulsas do Plano, cantaram os seguintes versos para o rádio e TV: Você que tem um bom lugar para morar/ Nos dê a mão/ajude a construir nosso lar/ Para que possamos dizer juntos/ A cidade é uma só/ Você, você, você/ Você vai participar/ Porque, porque, porque/ a cidade é uma só. No início do filme, vemos um fragmento dessa propaganda política, no entanto, bem mais tarde, compreendemos se tratar de uma reconstituição e não de um documento histórico. O jingle, mesmo quando sabemos que se trata de uma encenação, se apresenta como um vestígio material da memória, uma prova simbólica da história de Nancy, bem como mostra a face diabólica do projeto distrital. A pesquisadora Jeanne Marie Gagnebin afirma que o rastro está sempre ameaçado de ser apagado ou de não ser mais reconhecido como signo de algo que assinala 8. Em uma conversa entre o diretor e a personagem, percebe-se a incompreensão deles sobre a história de Ceilândia ter caído no esquecimento. Na ausência do registro, ou seja, do vestígio material que evidencia o rastro memorialístico, a encenação aparece para não permitir que os rastros sejam apagados. Em A Cidade é uma Só?, o diretor e seus atores empregam estratégias de discurso semelhantes as que foram adotadas pelo governo para expulsar os moradores da capital. A farsa da candidatura de Dildu, bem como a encenação do Jingle lembram, com ironia e acidez, as campanhas falaciosas sobre Ceilândia, enquanto lugar decente para se morar. O movimento de desconstruir o discurso político e reconstruir a memória através da fala recobre todo documentário. As imagens finais do filme promovem um sentimento inquietante - Dildu andando, sozinho e introspectivo, encontra uma carreata imensa da campanha de 8 GAGNEBIN. Apagar os rastros, recolher os restos. In: Walter benjamin: rastro, aura e história. p. 27.
5 Dilma para presidente nas ruas de Ceilândia. Um plano aberto de Dildu atravessando uma área vazia e barrenta com um out door de Ana Maria Braga anunciando em breve apartamentos de dois e três quartos. Uma cena de crianças praticando esportes em um descampado ao lado de uma estrutura de ferro abandonada. Dildu sentado em frente a uma pichação I os aplausos deichem para depois, em seguida o vemos rumo ao infinito cantarolando Pacientemente, tamo junto. Toda essa sequência do personagem atravessando os cenários descritos, mais o texto dos créditos finais: Os barracos verticalizados sobem sobre concretos de especulação imobiliária. O entorno nos espera, promovem um tom de desesperança e anúncia um cruzamento inevitável, em que o Plano se encontrará com o entorno, talvez não mais pacientemente como narra a letra da música. A Cidade é uma Só? Pode ser visto como filme-síntese desta curadoria sobre espaços urbanos. Inúmeros questionamentos e tensões mencionados nesta narrativa fílmica, também se encontram nas obras analisadas pelo grupo Nanook como: artifícios das cidades-postais, confinamento, descompassos identitários, choque entre culturas. Essa perspectiva nos leva a acreditar, ao menos no plano das relações identitárias e conflituosas entre sujeitos e espaços, que de Berlim a Brasília a cidade é uma só.