FAMILY RELATIONSHIPS AND INDIVIDUAL EXPERIENCES PRESENT IN THREE DIFFERENT BOOKS BY CLARICE LISPECTOR MARIANA TORRES RYAN



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Transcrição:

FAMILY RELATIONSHIPS AND INDIVIDUAL EXPERIENCES PRESENT IN THREE DIFFERENT BOOKS BY CLARICE LISPECTOR by MARIANA TORRES RYAN (Under the Direction of DR. SUSAN CANTY QUINLAN) ABSTRACT It is the purpose of this thesis to show that Laços de família (Family Ties,) A hora da estrela (The Hour of the Star) and Um sopro de vida: Pulsações (A Breath of Life: Pulsations,) all written by the Brazilian writer Clarice Lispector, have important characteristics in common with what we refer to as family relationships and attempts to build such relationships with people who are removed from conventional family ties. This work will analyze these three works and pay particular attention to the concerns that arise within a family/friend environment that leads to multiple individual experiences. Also, two chapters focus on the creation of characters and narrators by Lispector who function as a narrator/character to tell the stories. These narrators sometimes see themselves creating characters in order to try to establish a family environment among themselves. INDEX WORDS: Clarice Lispector, Brazilian Literature, Brazilian Modernism, Family Context, Relationships, Individual Experiences, Laços de família, A hora da estrela, Um sopro de vida: Pulsações.

RELAÇÕES FAMILIARES E EXPERIÊNCIAS INDIVIDUAIS PRESENTES EM TRÊS OBRAS DE CLARICE LISPECTOR by MARIANA TORRES RYAN B.A., FEDERAL UNIVERSITY OF PERNAMBUCO, BRAZIL, 2002 A Thesis Submitted to the Graduate Faculty of The University of Georgia in Partial Fulfillment of the Requirements for the Degree MASTERS OF ARTS ATHENS, GEORGIA 2007

2007 Mariana Torres Ryan All Rights Reserved

RELAÇÕES FAMILIARES E EXPERIÊNCIAS INDIVIDUAIS PRESENTES EM TRÊS OBRAS DE CLARICE LISPECTOR by MARIANA TORRES RYAN Major Professor: Committee: Dr. Susan Canty Quinlan Dr. Lesley Feracho Dr. Robert H. Moser Electronic Version Approved: Maureen Grasso Dean of the Graduate School The University of Georgia May 2007

AGRADECIMENTOS A elaboração deste trabalho não teria sido possível sem a ajuda que recebi de pessoas muito especiais. Primeiramente, gostaria de agradecer a Deus por ter me dado saúde e força para enfrentar o tão corrido dia-a-dia de estudante de mestrado e professora de português. Agradeço aos meus pais, que sempre acreditaram no meu potencial e que proporcionaram apoio psicológico e financeiro nessa fase de dias difíceis nos Estados Unidos. Mãe, muito obrigada por ter me matriculado na English House, em 1989, e pelo incentivo no estudo do inglês ao longo dos anos. Pai, muito obrigada pela ajuda para providenciar meus documentos na época em que ainda estava concorrendo à bolsa de estudos da Universidade da Geórgia. Sem a ajuda incondicional de vocês, certamente não teria sido possível chegar até aqui. Agradeço ao meu esposo, Greg, pelo constante incentivo e pela compreensão quando não podíamos ficar juntos nos fins de semana devido aos meus estudos. Também quero agradecer à minha única irmã, Tuca - ou melhor, à Dra. Manuela Torres, médica e quase pediatra. Ela não sabe, mas o seu eterno empenho nos estudos e o sucesso em tudo o que faz são motivos de orgulho para mim, incentivando-me a trilhar o mesmo caminho. Agradeço ainda aos meus tios, tias e primos, que sempre torcem por mim, e em especial às tias Yara e Alice, por tudo que fazem por mim. Não posso esquecer da minha querida madrinha Elvira, cujo caminho nas Letras me inspiraram na escolha de uma carreira. Valeu, Dinda! Obrigada aos amigos Juliana, Ricardo e Sheyla, pela fiel amizade mesmo à distância; aos colegas e amigos do departamento de português da Universidade da Geórgia, em especial a Erika, por ter cedido seu tempo tantas vezes para discutirmos Clarice Lispector. iv

Gostaria ainda de expressar a minha gratidão àqueles que já partiram, mas que permanecerão eternamente nas minhas lembranças: Os meus avós José Firmino, Almir, Dalvanira e em especial à minha avó Eunice, cujos olhinhos cheios de lágrimas no aeroporto de Recife marcaram o momento do nosso último adeus. Obrigada, minha Nicinha! Agradeço aos meus professores da Universidade da Geórgia: à Dra. Susan Quinlan, minha orientadora, por ter me proporcionado os meios para o aprofundamento nos estudos sobre Clarice Lispector. Ao Dr. Robert Moser, pela paciência e pelas sugestões dadas ao longo da elaboração deste trabalho. E à Dra. Lesley Feracho, por ter aceitado participar da defesa da minha tese. v

ÍNDICE Página AGRADECIMENTOS...iv CAPÍTULOS 1 INTRODUÇÃO...1 2 LAÇOS DE FAMÍLIA...10 3 A HORA DA ESTRELA...22 4 UM SOPRO DE VIDA: PULSAÇÕES...33 5 CONCLUSÃO...39 OBRAS CITADAS...43 vi

CAPÍTULO 1 INTRODUÇÃO Mesmo para os descrentes há a pergunta duvidosa: e depois da morte? Mesmo para os descrentes há o instante de desespero: que Deus me ajude. (...) Venha, Deus, venha. Mesmo que eu não mereça, venha. (...) Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e continuo inquieta e infeliz, é porque preciso que Deus venha. Venha antes que seja tarde demais. Clarice Lispector. (Lispector qtd in Gotlib 47) Dentre os diversos contos e livros da escritora Clarice Lispector, três em especial me chamam à atenção. Em primeiro lugar, no que se refere a questões ligadas a problemas que ocorrem num âmbito familiar que ao mesmo tempo é palco para múltiplas experiências individuais. Para realizar o estudo dessa relação do indivíduo que pertence a um ambiente coletivo, mas é estando sozinho que acha respostas aos questionamentos da vida, selecionei os contos Os Laços de Família, Amor e Feliz Aniversário que fazem parte da coletânea Laços de família de 1960. Há em Lispector o uso da performance na criação de narradores que, sentindo a necessidade de ter pessoas em suas vidas, talvez a necessidade de um contexto familiar, entram 1

num processo de construção e dão vida às suas criações. Performance neste sentido se refere à atuação de Lispector como um elemento-chave na composição de seus personagens e nas histórias em que eles estão inseridos. Neste interessante processo, criador (narrador) e criatura (personagens) dependem um do outro para a sua existência e criação de uma identidade. Esta característica é encontrada no último livro escrito em vida de Clarice Lispector, A hora da estrela (1977) e no livro póstumo Um sopro de vida: Pulsações, organizado inicialmente em 1977 e publicado pela primeira vez em 1978. Através de um estudo comparativo das três obras acima mencionadas, pretendo neste trabalho demonstrar que mesmo personagens inseridos em contextos sociais diferentes muitas vezes passam pelos mesmos processos de auto-conhecimento para que possam dar mais sentido às suas vidas. Os processos de auto-conhecimento referem-se às experiências vividas por estes personagens, sejam enquanto estão sós ou quando estão acompanhados de outras pessoas. Além disso, pretendo analisar a maneira com que Lispector cria os seus narradores que, ao se encontrarem imersos em um ambiente de solidão, optam por não continuarem sós, num processo que dá vida à personagens e construindo laços familiares mesmo quando estes laços sejam artifícios, produtos de uma estratégia narrativa específica. No segundo capítulo, que trata dos contos de Laços de Família, além de elaborar um breve resumo de cada conto escolhido, irei explicar o contexto familiar em que as personagens, em especial as protagonistas, estão inseridas e o que acontece com elas quando abandonam esse ambiente. As transformações pelas quais essas personagens sofrem são decisivas para que haja um novo entendimento do mundo pelas mesmas. No capítulo seguinte, meu objeto de estudo é a criação da personagem Macabéa através do narrador-personagem Rodrigo S.M. Ainda neste capítulo, comentarei sobre o 2

processo de criação dela pelo seu narrador Rodrigo S.M. (ou Clarice Lispector), no que diz respeito à linguagem e estrutura da narrativa. Irei salientar alguns aspectos que fazem com que A hora da estrela seja uma narrativa singular. O quarto capítulo está dedicado ao livro Um sopro de vida que assim como em A hora da estrela, coloca em evidência a relação entre o sujeito criador (metaforizado na personagem do Autor) e o objeto da criação (metaforizada na figura da personagem Ângela Pralini). O motivo da escolha desses livros para compor esta tese é que todos demonstram interessantes similaridades no tratamento do que se refere à (des)construção de relacionamentos, sejam eles entre parentes de uma mesma família ou entre pessoas que buscam umas nas outras uma família. Para a melhor compreensão da escritura clariceana, em especial dos contos/romances que irei utilizar, acho importante incluir na introdução deste trabalho uma breve biografia sobre a autora e um pequeno resumo sobre a situação da sociedade brasileira, em especial a carioca na época em que as histórias foram escritas. A Autora e sua Obra: De origem russa (nascida numa pequena cidade da Ucrânia provavelmente em 1920 segundo Claire Varum,) Clarice Lispector, enquanto ainda é um bebê, vem para o Brasil com a família onde se fixa (primeiramente no nordeste e depois no Rio de Janeiro). Em sua bem pesquisada biografia intitulada Clarice: Uma vida que se conta, Nádia Battella Gotlib assim descreve a chegada da família ao Brasil: 3

Chegaram no Brasil e aportaram no Nordeste: em Maceió, capital de Alagoas, onde tinham parentes. Apesar de ser a capital do estado, Maceió era uma cidade muito pequena. Clarice tinha 2 [dois] meses: era fevereiro de 1921. E lá ficaram três anos e meio. De Alagoas foram para o Recife, onde devem ter chegado por volta de 1924: Clarice tinha quase 4 [quatro] anos (63). Ainda segundo Gotlib, sua formação intelectual e literária acontece toda no Brasil. Na época em que era casada com o diplomata Maury Gurgel Valente, ela acompanha-o pela Europa e pelos Estados Unidos onde nascem seus filhos. De volta ao Brasil, separa-se do marido e passa a levar uma vida bastante isolada em seu apartamento, no Rio de Janeiro, ao lado do seu fiel companheiro, o cão Ulisses. Clarice Lispector morre de câncer em 1977, um dia antes do seu aniversário, dia nove de dezembro. Lispector estréia na literatura em 1944 com Perto do coração selvagem, obra recebida com entusiasmo pela crítica brasileira. Antônio Cândido antevia na jovem escritora (com apenas dezenove anos na época) a afirmação de que a obra de Lispector demonstrava um dos valores mais sóbrios e, sobretudo, mais originais da nossa literatura, dada a intensidade com que sabe escrever e a rara capacidade de vida anterior. (26) Além de romances e contos, Lispector também escreveu livros infantis como O mistério do coelhinho pensante (1967), A mulher que matou os peixes (1969) e A vida íntima de Laura (1974). Clarice Lispector é universalmente reconhecida como uma das mais originais escritoras do seu tempo. Em estudos sobre questões de gênero, ela é considerada como um exemplo de escritora feminista que se preocupa com temas ligados à busca de uma autoconsciência feminina, embora ela própria não se considerasse feminista. Nos seus contos e romances, podemos 4

encontrar questões filosóficas profundas que estão ligadas à condição humana de todo e qualquer ser vivo. As reflexões as quais fazemos sobre suas histórias são sempre despertadas a partir de fatos cotidianos que podem ocorrer em qualquer lugar do mundo, porém quase sempre do ponto de vista feminino ou através de uma voz feminina. De acordo com a crítica Samira Y. Campedelli: Questões filosóficas profundas, como a verdade e a condição humana, estão colocadas nos romances, contos e crônicas de Clarice. Essa reflexão é sempre despertada a partir de um fato aparentemente banal, e jorra como produto incontrolável de um fluxo de consciência. A tomada de consciência pelas personagens de Clarice obedece muitas vezes a um ritual reflexivo, tortuoso, e até mesmo doloroso. E é precisamente nesses momentos que a obra da autora se revela em toda a sua beleza e profundidade, embora isso incomode a visão estereotipada e pacata corrente na classe média urbana, onde ela preferia localizar suas personagens (32). Esta afirmação é bastante coerente porque notamos o quanto a leitura dos contos e romances de Lispector possuem histórias aparentemente simples, que na verdade escondem a densidade do conteúdo. Universo Clariceano A originalidade dos meios de expressão utilizados por Clarice Lispector tem sua ligação com o inovador universo de personagens que ela cria. Inovador no sentido de que seus personagens têm em sua maioria um comportamento diferente dos personagens da literatura moderna. Ao analisarmos o conjunto da obra, percebemos que há alguns traços comuns entre 5

eles. Em geral, as protagonistas nos livros de Lispector são mulheres, que mesmo estando inseridas em um contexto familiar, encontram-se imersas em um estado de profunda interiorização, onde a subjetividade dos acontecimentos prevalece e para quem a realidade externa é extremamente ameaçadora. Encontrando-se mergulhadas em um vazio profundo de não-respostas, estas protagonistas buscam incessantemente descobrir o verdadeiro sentido da vida. Perguntas como Quem sou? e Qual meu papel no mundo? estão presentes na maioria das histórias. As personagens oscilam entre o desconforto da contínua investigação íntima e do desejo de ruptura com a introspecção e com o mundo objetivo. As personagens não encontram-se fixas em um tipo de comportamento, elas ao mesmo tempo que possuem um contato com o mundo exterior, estão imersas em sua interiorização. Um contínuo sentimento de náusea está presente em suas vidas. Náusea no sentido da experimentação do vazio. É deixando o eu e através do contato com o outro que pode haver uma saída em relação à náusea. Mas essas personagens raramente conseguem escapar desse sentimento, e quando conseguem (como Rodrigo S.M. de A hora da estrela) deparam-se apenas com a morte. A tendência à uma ficção introspectiva encontra sua formulação através do monólogo interior, isto é, um monólogo não falado e que se desenvolve somente no interior dessas personagens. É a partir da plenitude do monólogo interior que ficam expostos os conteúdos mais complexos e profundos da condição humana. Contexto Histórico-Cultural e a Literatura No ano de 1929 a família de Lispector muda-se para o Recife perante um acontecimento que causaria conseqüências para todo o mundo: a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque. A economia mundial sofre sérias conseqüências, e o Brasil infelizmente está dentro deste quadro. O 6

principal produto de exportação brasileiro, o café, o qual sustentava a república do café-comleite, também entra em crise, promovendo o fim das oligarquias rurais. Com Getúlio Vargas no poder, instala-se a ditadura do Estado Novo em 1937. O mundo está em crise. O ano de 1939 é o momento da Segunda Guerra Mundial. De acordo com o crítico Alfredo Bosi, no seu livro História concisa da literatura brasileira: Não é fácil separar com rigidez os momentos internos do período que vem de 1930 até nossos dias. Poetas, narradores e ensaístas que estrearam em torno desse divisor de águas continuaram a escrever até hoje, dando às vezes exemplo de admirável capacidade de renovação (385). A afirmação de Bosi é pertinente, pois a realidade da época dos anos trinta é mais bem deplorada pelo poeta Carlos Drummond de Andrade. Além da visão dele, também despontam no cenário brasileiro os escritores Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Érico Veríssimo. A literatura social dos anos trinta amadurece a proposta-brincadeira de uma linguagem brasileira dos modernistas da Semana de Arte Moderna que ocorreu em 1922. Em 1945, com o fim da Segunda Guerra, os militares destituem Vargas do poder, o qual retornaria em 1951, quando sua política nacionalista e populista já não agradava mais a classe dominante e suicida-se em 1954 por razões desconhecidas. A grave crise política gerada com a sua morte elege Juscelino Kubitschek para a presidência da República. O desenvolvimento industrial e o intenso crescimento urbano ( cinqüenta anos em cinco ) trazem consigo o grande problema das favelas e a intensa migração de nordestinos para o sul do país. Nessa época, aparecem na literatura as figuras de João Guimarães Rosa, Rubem Braga, Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan e Clarice Lispector, enriquecendo a prosa brasileira tanto com temas de regionalismo quanto lançando contos e crônicas onde o espaço urbano 7

prevalece. Esses temas regionalistas e urbanos estão ligados à criação de novas palavras e à um narrador que utiliza uma linguagem experimental. Diferentemente do regionalismo da primeira fase do modernismo, os personagens agora não apenas refletem sobre a condição físico-social em que vivem, mas também refletem sobre temas filosóficos universais. O Rio de Janeiro e a Sociedade Carioca da Década de Sessenta: Durante mais de dois séculos, de 1716 a 1960, a cidade do Rio de Janeiro foi a capital da Colônia, do Império da República do Brasil e da intelectualidade brasileira. Nesta época, reinou na política, na economia, na cultura e como centro financeiro do país. Também foi nos anos sessenta que a cidade do Rio de Janeiro foi tema de romances e canções, como a famosa música Garota de Ipanema. Com a transferência da capital para Brasília, em 1960, o Rio perdeu seu status político, porém continuava sendo o centro dos intelectuais e a cidade maravilhosa, títulos que mantém até hoje. O início da década de sessenta trazia a marca luminosa daquela época de efervescência cultural que foram os anos do governo de Juscelino Kubitschek. Na literatura, como nas artes plásticas e na arquitetura, na música popular, no cinema e no teatro, a livre circulação de idéias, o alto nível do ensino universitário, o bom desempenho da economia, constituíam o pano de fundo indispensável à manifestação da criatividade. Era dentro desse cenário que Clarice Lispector escrevia os contos de Laços de família. Mesmo vivendo num regime de ditadura militar, a década de sessenta também foi marcada por diversos movimentos pacifistas e feministas, maior escolaridade das mulheres e o surgimento de métodos contraceptivos o que gerou um comportamento sexual feminino mais liberal. As pessoas, principalmente os jovens da época, contestam as normas estabelecidas, 8

questionando os padrões de comportamento. Os artistas e intelectuais, nos campos do teatro e literatura, sofrem por conta da censura. Tanto no teatro quanto na literatura todos tiveram que ir à luta. Edições foram censuradas e apreendidas, muitos escritores e jornalistas chegam a ser presos. O ato de escrever era uma forma de protestar e o ato de ler era um desafio por conta de tanta proibição. Assim pensa o crítico Affonso Romano de Santana sobre a política que se insere dentro da literatura: Foi este o século em que se viveu ideologicamente no sentido mais partidário do termo. Tivemos um conceito de história que afetou nossos gestos mais cotidianos e nossa produção intelectual. A ideologia marcou a atitude fascista presente nos dois lados, tanto esquerda como direita, pois o stalinismo foi apenas uma outra face do fascismo-nazismo (27). É muito difícil imaginar o que seria a sociedade brasileira de hoje sem considerarmos as enormes influências que a década de sessenta lançou, especialmente a partir da segunda metade e início dos anos setenta, principalmente as influências no campo das artes literárias. Foi nesta época em que foram estabelecidos conceitos que sobrevivem até os dias atuais como uma maior igualdade social entre homens e mulheres, que até esta época encontravam-se submissas e seu lugar era em casa cuidando dos filhos e dos afazeres domésticos, e a luta por direitos políticos e uma liberdade de expressão. É aqui que podemos situar a obra de Lispector que vamos considerar à luz destes acontecimentos. 9

CAPÍTULO 2 LAÇOS DE FAMÍLIA O estudo da obra e da crítica de Clarice Lispector é bastante complexo. Esta complexidade pode ser observada pelo modo em que se estruturam as historias de Laços de família. Marta Peixoto sugere que os contos desta obra podem ser lidos como... versions of a single developmental tale that provides patterns of female possibilities, vulnerabilities, and power in Lispector s world (25). Podemos comprovar o que foi escrito por Peixoto quando observamos que, nos treze contos da obra, dez apresentam protagonistas femininos e fixam problemas enfrentados por algumas adolescentes que confrontam o sexo como fantasia ou realidade (o que ocorre no conto Preciosidade ), as insatisfações de mulheres maduras que se relacionam com seus maridos e filhos de uma maneira precária ( A imitação da rosa e Amor ) e a celebração dos oitenta e nove anos de uma avó que, sentada em uma das pontas da mesa, presencia de forma impotente a ausência e a hipocrisia que caracterizam o seu ambiente familiar (o que acontece em Feliz aniversário ). As mulheres que povoam esses contos, sejam elas adolescentes ou adultas, não são capazes de promover a sua própria autonomia, já que estão presas e inadaptadas a um mundo repetitivo e sem autenticidade nenhuma. Escrita em 1960, a coletânea de contos Laços de família inova a arte de escrever. Esta obra está incluída entre os melhores livros de contos da literatura brasileira segundo Marta Peixoto. Os contos estão centrados, tematicamente, no processo de aprisionamento ou 10

entrelaçamento (talvez seja essa a razão do título escolhido por Lispector) dos indivíduos que compõe a história, de sua prisão doméstica, do seu cotidiano. Em seu artigo Existence in Laços de família, Rita Herman fala da dubialidade do termo laços que tanto pode significar: the chains of outward conformity that bind each person to others by means of a false set of values quanto pode significar the ties that bind each one to the other, by the total aloneness that they possess in common (70). Ao longo da leitura dos contos, percebemos que as formas de vida convencionais e estereotipadas vão se repetindo de geração em geração, submetendo-se às consciências e às vontades. A dissecação da classe média carioca resulta numa visão desencantada e descrente dos laços familiares, dos laços de convenção e interesse que minam a precária união familiar observada por Lispector. Como é característico de muitos escritores contemporâneos, a maneira de fazer literatura de Lispector marca-se pelo modo anti-convencional com que ela organiza o seu texto. Ela está sempre buscando fugir das convenções (pré)estabelecidas e da linguagem que obedece a norma culta. Seguindo uma postura de autora contemporânea, é freqüente em suas obras o emprego da técnica surrealista em que à narrativa vai fluindo à mercê do fluxo de consciência do narrador da história. Essa técnica surrealista se refere à questões que abordam a representação do irracional e do subconsciente. As personagens de Lispector são sempre flagradas no momento em que, a partir do cotidiano banal, alcançam o lado misterioso, inusitado, diferente da existência humana, mesmo que não consigam entendê-lo. Nessas histórias o lado oculto do indivíduo é exteriorizado. A protagonista termina buscando, através dos elementos exteriores, o seu eu interior. A partir disto, conclui-se que a busca da identidade própria passa pela busca do outro, quer seja esse outro humano (Ana, Laura, Pequena Flor, etc.), animal (galinha, cachorro, búfalo) ou objeto (como as rosas em A imitação da rosa ). 11

O conto Os laços de família é um ótimo exemplo para ilustrar o que foi dito anteriormente sobre o conceito do termo laços. A história começa quando a personagem Catarina vai deixar a sua mãe na estação, depois de duas semanas de visita. Dentro do táxi, a caminho da estação, Catarina recorda-se do desconforto causado pela breve convivência entre a sua mãe e o seu marido. O genro e a sogra mal se suportavam, porém na hora da despedida, ambos encheram-se de generosidade e delicadeza. A mãe de Catarina chama-se Severina, que significa uma pessoa severa, seca, dura. Assim observa Marta Peixoto sobre as relações familiares presentes neste conto: With this scene between the two women, as well as with flashbacks and the narration of the emotional consequences of the mother s visit, the story touches on several types of family relationships: mother/daughter, mother-in-law/son-in-law, grandmother/grandson, husband/wife and mother/son, all presented as subtle or not-so-subtle struggles for power (27). A questão do poder é uma temática constante em Os laços de família e em outras histórias também. Ao lermos o conto em questão, percebe-se que há uma nítida competição entre Catarina e sua mãe quanto à quem sabe educar melhor o filho/neto. Enquanto Catarina olha para sua mãe através da janela do trem, ela torna-se consciente do quanto a relação mãe/filha estava estragada. Catarina admite: Ninguém mais pode te amar senão eu (Laços 97). Esse relacionamento é como se mãe e filha fosse vida e repugnância. Não, não se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso (Laços 97). Essa luta pelo poder acima mencionada por Marta Peixoto ocorre do começo ao fim do conto. Catarina precisa mostrar à sua mãe que sabe o que é melhor para seu filho, porém sua mãe acha que ela sendo mãe e avó ao mesmo tempo tem mais experiência e suas idéias são as que devem ser obedecidas. 12

Ainda há a figura masculina do pai querendo também exercer seu poder dentro da família, principalmente no que concerne o filho. Aqui nós podemos ver um mirror-image com a relação de Catarina com o filho como Severina com Catarina. Outro aspecto a ser considerado neste conto é o ponto de vista da figura masculina dentro do contexto onde as personagens femininas são as que possuem uma maior importância. Sobre a figura do pai/sogro ali presente: [...] the metaphorical prison entraps all members of the family: the father, who also speaks about his own predicament, sees the male as victim of the imprisoned and imprisoning female, the mother, who transmits this family tie to the next generation. The male (sic) power, deriving from his role in the world outside the home, does not prevail in the domestic world of intimate relationships, where his wife has a power at least equal to his own (Peixoto 28). Mesmo com todas essas relações familiares mencionadas por Peixoto, nota-se que há uma enorme hipocrisia envolvida neste ambiente familiar. A filha sente uma necessidade de se livrar de sua mãe para que possa continuar a viver a sua vida onde a família jantaria e depois do jantar iria ao cinema, porque depois do cinema seria enfim noite, e este dia se quebraria com as ondas nos rochedos do Arpoador (Laços 103). É quando Catarina chega em casa que ocorre mais um interessante fato dentro do contexto familiar. Primeiramente, o foco da narrativa é mudado, agora, é o marido de Catarina (não mais a mãe dela) que fica perplexo olhando pela janela mãe e filho caminhando de mãos dadas pela rua. Essa cena faz com que ele pense sobre seu casamento, mas principalmente o faz refletir sobre o que havia ocorrido com sua esposa enquanto ela deixava a mãe na estação. Há na personagem masculina, uma espécie de curiosidade sobre o motivo pelo qual Catarina estava agindo de uma maneira diferente da que costumava agir. De 13

certo modo Antônio intui que algo mudou na vida de sua esposa, e que embora esse dia tenha sido apenas mais um dia, aconteceu algo na vida de Catarina que fez com que ela mudasse. Para o marido de Catarina, the events of the day appear as minor, if recurrent, crisis within the sustaining institution of the family (Peixoto 28). Catarina não está ciente sobre o fato de que a sua relação com seu filho está se tornando muito semelhante ao tipo que relacionamento que ela desenvolveu com sua mãe ao longo dos anos. Uma outra observação que podemos fazer quanto à personagem Catarina, é que há em sua vida uma marca da ambigüidade. Se por um lado, ela é uma boa esposa e mãe, se preocupa com seu marido e com seu filho, por outro lado não é uma boa filha, pois é consciente de que não tem uma relação mãe/filha normal com a sua mãe. Reflete-se aqui a continuação de um ciclo entre mãe/avó/filho (neste caso Catarina, sua mãe e seu filho), onde nem a protagonista está ciente disto. Há uma enorme barreira entre elas que nem a freada brusca do táxi, quando estavam a caminho da estação, conseguiu romper. Em todos os diálogos entre Catarina e sua mãe Severina, notamos que há uma tensão entre as duas. No seu artigo A Discourse of Silence: The Postmodernism of Clarice Lispector, Earl Fitz assim descreve um pouco do comportamento de Catarina no que tange o contexto em que está inserida: When Catherine speaks, however, she presents her public or social self, a self that is utterly commonplace in word and deed. Yet though she is a character in a conventional social context, Catherine often engages her husband and her child in strikingly cryptic dialogue, using words that function as transmitters of what all involved assume to be a commonly shared body of knowledge (427). 14

Catarina pode apresentar um exemplo de família perfeita para seus vizinhos e conhecidos, mas a simplicidade que há entre ela e as pessoas que a cercam é apenas aparente. É através do convívio durante alguns dias com a sua mãe que Catarina alcança o verdadeiro valor da sua existência e desperta para certos sentimentos e comportamentos que nem ela própria estaria ciente de que existissem. Seguindo a análise dos comportamentos dessas protagonistas como indivíduos dentro e fora do ambiente familiar, vou comentar agora sobre o segundo conto escolhido, o conto Amor. Neste conto, Ana (cujo nome em hebraico significa pessoa benéfica e piedosa ), a protagonista, sente uma necessidade de amar um homem cego que insiste em persegui-la desde a janela de um bonde. O cego representa a ânsia dela de se entregar ao seu mundo obscuro e desconhecido. O amor que Ana sente pelo homem cego é um amor de náusea, quase ódio. Na verdade ela sente amor por si própria enquanto experimenta este fato. Ana alcançara ou não a situação estável em que vive com sua família? A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando (Laços 19). Este é um dos vários contos do livro onde a personagem vive quase que sem refletir que há todo um mundo à sua volta, porém Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera (Laços 21). A partir da freada brusca do bonde, ela fica dominada pela insegurança e já não é mais a mesma. Ana tem medo de perder o seu refúgio, de desmoronar o seu lar em que tudo foi feito de modo que um dia se seguisse ao outro (Laços 22) e em que se podia escolher pelo jornal o filme da noite (Laços 30). Transtornada com a cena do cego mascando chicles, ela deixa cair ao chão, com a arrancada brusca do veículo, o saco com as compras que havia feito. A tranqüilidade de Ana desaparece totalmente e uma sensação de náusea lhe domina. Ana fica 15