LITERATURA E HIPERTEXTO EM O CASTELO DOS DESTINOS CRUZADOS 1 Maria Elisa Rodrigues MOREIRA (UFMG. Bolsista CNPq) 2 Resumo em português Partindo de uma aproximação entre o conceito de hipertexto apontado por Pierre Lévy e os valores literários reivindicados por Italo Calvino em Seis propostas para o próximo milênio, o presente trabalho apresenta uma proposta de leitura de O castelo dos destinos cruzados, também de Italo Calvino, que utiliza o hipertexto como referencial teórico-metodológico. Essa leitura possibilita um transitar mais fluido e complexo pela obra do escritor italiano, enriquecendo sua análise a partir de uma nova perspectiva. Palavras-chave: Hipertexto; Literatura; Italo Calvino. As reflexões acerca das possíveis relações entre arte, linguagem e tecnologia e sobre suas formas de interação e diálogo têm na teoria das redes um rico instrumento de análise, que propicia um deslocamento nas formas tradicionais de produção de sentido e abre caminhos para um mundo de novas possibilidades de construção coletiva da subjetividade. No âmbito literário, o modelo hipertextual conforme tratado por Pierre Lévy (1996) parece apresentar a mais interessante perspectiva reticular de reflexão, ligando a linguagem à ampliação das novas tecnologias e à informatização da sociedade. Conforme o autor qualquer texto pode, por suas próprias características, ser considerado uma entidade virtual: independentemente do suporte em que se apresenta, o texto é uma problemática atualizada a cada forma de apresentação e a cada leitura que dele se faz. O texto é, assim, retalhado e depois costurado pelo leitor numa tessitura única que pode tanto criar quanto desconsiderar elos e conexões da trama textual. O processo de leitura, sob esse prisma, aparece como uma forma de hipertextualização independente do suporte informático; este, como as outras tecnologias intelectuais (LÉVY, 1993), virtualiza e exterioriza um processo mental. Mas o processo de virtualização ultrapassa o aspecto puramente tecnológico, só realizando-se a partir do momento em que há interação entre a técnica e a subjetividade humana, num processo reticular de produção de sentidos e saberes. Assim, mais que um instrumento para 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Discussão Hipertexto e Literatura: por um modelo reticular de leitura, no III Encontro Nacional sobre Hipertexto, Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009. 2 Mestre em Teoria da Literatura e doutoranda em Literatura Comparada, elisarmoreira@gmail.com. 1
agilizar a produção de textos clássicos, o hipertexto e outros suportes informatizados são um novo universo de criação e de leitura dos signos (LÉVY, 1996, p. 41). São deslocados, assim, os papéis do leitor e do autor, que passam a se intercambiar; o leitor passa a escrever/inscrever sua leitura; cada leitura, ao atualizar o hipertexto original, é também uma forma de virtualizá-lo, introduzindo elementos novos e criativos. O hipertexto propicia uma relação diferente entre texto e leitor, possibilitando a formação de um novo sujeito, estabelecendo uma forma de comunicação e produção de sentido na qual a técnica é um dos elementos de uma rede na qual o sujeito está imerso. Esse processo de virtualização textual vem sendo buscado, há algum tempo, pela própria literatura. Em O Sonho de Mallarmé, Arlindo Machado (1993) nos apresenta uma série de experimentações literárias realizadas por autores que, perseguindo o Livre de Mallarmé, buscavam alcançar um texto diferente da obra literária tradicional, um texto que permitisse ao leitor participar mais diretamente da condução dos rumos da obra. Muitas dessas experiências, inclusive as que utilizam algum suporte tecnológico, se resumem no entanto a transcrever para o novo meio algo que já existia no papel. Pensar a literatura e a leitura a partir do modelo do hipertexto não é simplesmente pensar neste como uma técnica, e sim nas novas possibilidades de produção de sentido e conhecimento que ele pode permitir. Trata-se de explorar a tecnologia como alteridade, como meio de produção distinto, de interagir com ela em busca de um novo resultado, isto é, buscando novas possibilidades literárias e estéticas, num outro parâmetro de interação entre autor, texto e leitor, em que o suporte computacional é utilizado como elemento de criação. Hipertexto e literatura: fronteiras conceituais Partindo da caracterização feita por Pierre Lévy acerca do hipertexto, é possível estabelecermos algumas aproximações entre o mesmo e a literatura. Para tanto, tomarei como referência os apontamentos de Italo Calvino em Seis propostas para o próximo milênio (1995), obra em que ele enumera valores que considera essenciais à literatura num contexto de mudanças tecnológicas. Ao propor o modelo do hipertexto como uma metáfora válida para todas as esferas da 2
realidade em que significações estejam em jogo (LÉVY, 1996, p. 25), Lévy caracteriza o hipertexto a partir dos seis princípios abaixo enunciados: a) princípio de metamorfose, que garante a constante (re)construção da rede hipertextual por todos os atores envolvidos, sejam eles do domínio humano ou técnico; b) princípio de heterogeneidade, definido pela variedade de materiais significativos e de atores envolvidos nas mais diversas formas de associação; c) princípio de multiplicidade, pelo qual a rede se desenvolve de forma fractal, de tal modo que um nó pode conter toda uma rede e assim por diante; d) princípio de exterioridade, segundo o qual a rede se constrói e se movimenta a partir de elementos externos ao sistema; e) princípio de topologia, que possibilita aos hipertextos o funcionamento espacial, por movimentos de proximidade: a rede não está no espaço, ela é o espaço (LÉVY, 1993, p. 26); f) princípio de mobilidade dos centros, que indica a presença simultânea na rede de diversos centros, que se modificam a cada movimento de sentido. Os traços característicos reivindicados para a literatura por Calvino leveza; rapidez; exatidão; multiplicidade e visibilidade em muito se aproximam das características do hipertexto apontadas anteriormente, apesar de Calvino estar falando a respeito da literatura impressa, do que ele chama objeto-livro. O que Calvino deseja é uma literatura leve, um estilo ágil, capaz de retirar da linguagem e da estrutura narrativa qualquer elemento de peso. Ao falar de leveza e rapidez, ele fala de movimento, de vivacidade, de mobilidade. É a busca de uma literatura que permita a continuidade da passagem de uma forma a outra (CALVINO, 1995, p. 21), a leveza da gravidade sem peso. Calvino quer um leitor semelhante a Guido Cavalcanti, personagem de Bocaccio que ele nos apresenta: um leitor que seja capaz de saltar, com agilidade e precisão, sobre as possíveis redes de significações do texto, tecendo um percurso tênue, mas marcante. Suas caracterizações da leveza e da rapidez em muito se aproximam dos princípios de metamorfose e mobilidade dos centros apontados por Lévy. A ideia de uma narrativa construída em nós, em ligações fragmentárias que podem conter em si uma nova rede textual é, segundo Calvino, o princípio narrativo de As mil e uma noites, e de algumas de suas obras, como O castelo dos destinos cruzados (1994). 3
O que Calvino solicita é uma literatura que se adeque à rapidez e à velocidade informacional que dominam o espaço contemporâneo, exigindo a economia da narrativa e a manutenção do desejo do leitor, num momento em que os acontecimentos, independentemente de sua duração, se tornam punctiformes, interligados por segmentos retilíneos, num desenho em ziguezagues que corresponde a um movimento ininterrupto (CALVINO, 1995, p. 48). A literatura que Calvino propõe que seja leve e rápida é, assim, dona de uma textualidade ágil, móvel, desenvolta uma literatura dinâmica tanto no aspecto referente à produção da obra quanto no tocante à experiência da leitura. Não é à toa que Calvino escolhe Mercúrio como emblema dessa literatura: ele é leve, aéreo, hábil. Seus pés alados o transformam num desenvolto vetor de comunicação, num poderoso transmissor/produtor de significações. Se essa é a obra com a qual ele sonha, parece-nos ser esse também o leitor que ele deseja: um sujeito capaz de acompanhar os voos de Mercúrio com a mesma agilidade, um Perseu que calce suas sandálias aladas e estabeleça com Mercúrio uma rede de trocas. Essa literatura em movimento parece ter encontrado no hipertexto mas não exclusivamente o espaço para seu pleno desenvolvimento, já que o hipertexto permite a objetivação desses novos elementos requisitados para a obra literária: O hipertexto é dinâmico, está perpetuamente em movimento. Com um ou dois cliques, obedecendo por assim dizer ao dedo e ao olho, ele mostra ao leitor uma de suas faces, depois outra, um certo detalhe ampliado, uma estrutura complexa esquematizada. Ele se redobra e desdobra à vontade, muda de forma, se multiplica, se corta e se cola outra vez de outra forma. (LÉVY, 1993, p. 41) Se a rapidez e a leveza encontram no hipertexto o espaço ideal de desenvolvimento, o mesmo acontece com outras duas qualidades solicitadas por Calvino para a literatura contemporânea: a exatidão e a multiplicidade. A exatidão, segundo ele, nada tem a ver com a univocidade, e se aproxima das noções de definição, de precisão, de nitidez da obra. Exatidão em oposição à inconsistência e à perda de forma. Não que a obra deva possuir uma significação única, e sim que ela apresente uma precisão na variabilidade das possibilidades: A obra literária é uma dessas mínimas porções nas quais o existente se cristaliza numa forma, adquire um sentido, que não é nem fixo, nem definido, nem enrijecido numa imobilidade mineral, mas tão vivo quanto um organismo (CALVINO, 1995, p. 84). A essa forma exata associa-se a obra múltipla, a enciclopédia aberta. A literatura contemporânea deve ser uma rede de conexões entre os mais heterogêneos elementos 4
significativos, fatos narrativos, técnicas, pessoas, imagens, sons. Uma obra precisa, mas capaz de proporcionar múltiplas construções significativas: Hoje em dia não é mais possível uma totalidade que não seja potencial, conjectural, multíplice. (...) Mesmo que o projeto geral tenha sido minuciosamente estudado, o que conta não é o seu encerrar-se numa figura harmoniosa, mas a força centrífuga que dele se liberta, a pluralidade das linguagens como garantia de uma verdade que não seja parcial. (CALVINO, 1995, p. 131) Já a questão da visibilidade apresentada por Calvino refere-se a dois processos: a palavra que deixa transparecer uma imagem, ou a imagem que se transfigura em palavras ele fala em pensar por imagens. Esse pensar por imagens é, de certa forma, o modo de funcionamento do hipertexto, no qual o princípio de topologia apontado por Pierre Lévy assegura a importância dos ícones e da formatação visual da tela na leitura e na criação hipertextual. As imagens devem ser carregadas de significações, possibilitando a rápida associação dos elementos na hipernavegação. Essa é, segundo Calvino, a forma de pensamento do poeta, que no hipertexto encontra-se externalizada na tela: A mente do poeta, bem como o espírito do cientista em certos momentos decisivos, funcionam segundo um processo de associação de imagens que é o sistema mais rápido de coordenar e escolher entre as formas infinitas do possível e do impossível (CALVINO, 1995, p. 107). Assim, a visibilidade no hipertexto vai além da construção de significações possíveis, funcionando como interface, como agente interativo entre autor/leitor/texto, possibilitando a movimentação topológico-sensorial. O que procurei destacar com essa breve aproximação conceitual entre o hipertexto e a literatura é que os eixos caracterizadores do hipertexto já se encontram, de certa forma, anunciados nos paradigmas da teoria da literatura, auxiliando-nos a pensar o literário sob o prisma da rede e das possibilidades significativas que este nos oferece. É possível pensar, assim, a leitura como uma experiência de novo tipo, na qual autor e leitor precisam reconfigurar suas áreas de atuação, em um ambiente que permite uma maior interação entre ambos e que exige uma participação mais ativa por parte do sujeito leitor. O castelo dos destinos cruzados O castelo dos destinos cruzados nos apresenta diversas histórias, que se entrecruzam pelo fato 5
de seus protagonistas estarem dividindo o mesmo espaço. Em volta da mesa de um castelo ou de uma taverna várias personagens narram, através de um baralho de tarô, a história de suas vidas. Para o desenvolvimento desta história, Calvino dispôs de dois campos narrativos: a narrativa do tarô e a narrativa literária, articuladas pelo movimento dos personagens e do narrador. A partir da distribuição espacial das cartas na mesa, tempo, ação e personagens vão sendo delimitados. E a história do castelo só se completa com a participação de todos os personagens, com a junção de todas as pequenas histórias que, se não se cruzam no campo da diegese, se encontram no campo discursivo. A mesa do castelo vai sendo preenchida com os elementos escolhidos pelo personagem que apresenta sua história. Essa narrativa, no entanto, só se efetiva com a participação do leitor-intérprete, no caso, o narrador. A interação se faz necessária para que a história do castelo possa ser construída, e os personagens que circundam a mesa constroem uma rede cuja centralidade se desloca a cada momento. A narrativa de Calvino começa com um bosque que precisa ser atravessado e no qual se encontra um castelo para dar pousada aos viajantes. Estes parecem ser nobres abastados e, sentados ao redor da mesa do castelo, percebem que a travessia do bosque deixara mudos todos aqueles que o cruzaram. Como, então, iniciar uma narrativa? A única coisa que surge sobre a mesa é um baralho de tarô. Não para predizer o futuro, mas para narrar passado e presente. Um dos personagens se encarrega de iniciar a narrativa, pegando as cartas e escolhendo aquela que dará início ao seu relato. Aqui não há nada da aleatoriedade dos jogos de tarô: cada carta é escolhida no maço, e tem sua posição definida pelas que a antecedem e que virão a sucedê-la. A escolha das cartas baseia-se na semelhança entre os elementos que elas carregam e a história que vai ser narrada. Ou, pelo menos, é esta leitura, iconográfica, que o narrador faz das cartas. A carta é posta na mesa. A ela o narrador atribui o sentido: trata-se de um jovem nobre, abastado, aventureiro e ambicioso. A significação, no entanto, só se completa no momento do próximo movimento do personagem, que enfileira mais três cartas sobre a mesa. O narrador continua a nos contar sua leitura das cartas e a construir uma narrativa a partir dos elementos dispostos sobre a mesa: o rei de ouros, pai do jovem cavaleiro, faleceu, deixandolhe uma herança considerável [dez de ouros]. O jovem, com isso, parte em viagem, chegando 6
ao bosque que todos tinham atravessado, representado pelo nove de paus. Segundo o narrador-leitor, o início da história poderia ser este (CALVINO, 1994, p. 18). O personagem acrescenta outras cartas às já dispostas sobre a mesa. O narrador, por sua vez, também continua, contando-nos sua história, atualizando pela leitura os elementos narrativos dispostos: no bosque, o cavaleiro foi surpreendido por um bandido [a forca], que o deixou em uma triste situação [o enforcado]. Felizmente, apareceu uma bela jovem [a temperança], que poderia salvá-lo. Tal salvação, no entanto, só se concretiza com a próxima sequência de cartas: a fonte representada pelo ás de copas, indicando a liberdade do homem e o encontro amoroso lido na inscrição do dois de copas, amore mio não apenas levavam a crer na salvação do nobre, como também em uma história de amor entre ele e sua salvadora. Enquanto o narrador serve-se dessa forma narrativa, o nobre cavaleiro põe sobre a mesa três outras cartas capazes de mudar o rumo da história: o sete de paus, colocado primeiro, indicava que o jovem voltara ao bosque, e que o encontro amoroso, assim, não fora duradouro. O nobre, então, inicia uma nova sequência de cartas, à esquerda da primeira. O deslocamento espacial aparece como determinante de um novo tempo e de uma modificação nos rumos da ação até então narrada. O cenário passa a ser outro e isso, segundo o narrador, deixa-o desconcertado em sua leitura das cartas. Apesar de desconcertado, o narrador segue em sua leitura/narrativa: o jovem nobre havia encontrado uma esposa de alta estirpe [a imperatriz], e as núpcias foram comemoradas com um belo banquete [oito de copas]. Até que, interrompendo essa linha de significação traçada, surge um novo elemento: o cavaleiro de espadas. Um imprevisto interrompera a festa. As cartas continuavam a ser colocadas e nosso narrador, que agora parecia não muito seguro de sua interpretação, acaba por declarar: Não nos restava senão arriscar conjecturas. É arriscando significações que o narrador continua criando sua leitura da história: um menino [o sol] fora visto correndo no bosque, levando um manto ricamente bordado o mesmo manto que o nobre perdera ao ser atacado no bosque. Ao tentar alcançar tal garoto, o nobre cruza com o cavaleiro de espadas, que revela ser uma mulher, e diz querer justiça. Mas o narrador não se satisfaz com essa história: Melhor, pensando bem, o encontro poderia ter se passado assim: uma amazona a cavalo havia 7
saído do bosque e partira ao ataque (...), gritando-lhe: - Alto lá! Sabes a quem estás seguindo? - A quem? - A teu filho! - dissera a guerreira, descobrindo o rosto (...). (CALVINO, 1994, p. 22) As cartas seguintes traziam o desfecho da história: o nobre cavaleiro e a amazona iniciaram um duelo. Nesse momento, apareceu a Papisa, e o cavaleiro descobriu que a jovem guerreira, a mesma que o salvara no início da história, era Cibele, a deusa daquele bosque. Esta, para vingar a ingratidão do nobre, resolve acabar com sua vida, gesto representado pelo oito de espadas. Se tal atividade descritiva pode ser um tanto cansativa, ela nos possibilita, entretanto, apontar elementos importantes para pensarmos na estrutura utilizada por Calvino na escritura deste livro. Seguindo a narrativa do tarô, a lógica da escolha e colocação das cartas sobre a mesa, estamos bem próximos das narrativas literárias baseadas na combinatória: de uma série de elementos pré-determinados no caso, as cartas do tarô o personagem faz suas escolhas e monta sua narrativa. Se tal trabalho fosse levado ao extremo estaríamos diante de um imenso manancial de narrativas possíveis, bastando optar por uma das formas de combinação das cartas. O castelo dos destinos cruzados seria, assim, uma máquina poética baseada na permutabilidade. No entanto, Calvino faz alguns movimentos que introduzem novos elementos a essa lógica combinatória, complexificando a narrativa. O primeiro destes elementos é o narrador. Ao mesmo tempo em que é personagem da ação, ele se apresenta a nós como um leitor, um intérprete das narrativas do tarô. Se a narrativa do tarô baseia-se na combinatória, a narrativa literária apresenta-se como o percurso de leitura do narrador, como sua interpretação dos fatos. Ele, como leitor, não faz as combinações : ele as resignifica a partir das problemáticas que lhe são colocadas no decorrer da narrativa. Assim, nós, leitores do livro de Calvino, não nos colocamos como o leitor que brinca com a combinatória e constrói narrativas previamente estipuladas. São os personagens de Calvino que fazem este papel: é o nobre da primeira história quem faz as escolhas dos elementos significativos a serem utilizados em sua narrativa. A esta narrativa responde o narrador que, a partir dos elementos simbólicos do baralho, reescreve literariamente a narrativa do personagem. É nessa reescritura que encontramos uma linha de fuga à lógica combinatória, e que 8
possibilita uma maior aproximação ao hipertexto. O narrador, ao inscrever sua leitura junto ao texto lido, coloca em cena a questão da virtualização do texto discutida por Pierre Lévy. O narrador de Calvino encontra, tal como o leitor do hipertexto, o suporte para objetivar seu processo de leitura, até então realizado apenas mentalmente. Tal suporte não tem as mesmas possibilidades de um hipertexto, mas já permite a adição de um elemento hipertextual ao simples movimento combinatório. Outro ponto que pode ser pensado como uma forma de avançar no simples jogo de combinações é a forma de ligação entre as diversas histórias do livro. Estas, apesar de poderem ser consideradas pequenos contos independentes, unem-se, pela estrutura narrativa, num movimento semelhante ao que Lévy chamou princípio de multiplicidade : uma carta, funcionando como um nó, pode originar uma nova rede, e assim por diante. Outro princípio do hipertexto apontado por Lévy que se encontra esboçado na obra de Calvino é o princípio de metamorfose, que permite a todos os envolvidos garantir a constante reconstrução da rede hipertextual. É o que acontece na mesa do Castelo: a cada história narrada pelos personagens a rede é reconfigurada; a cada nova narrativa, a mesa tem sua configuração alterada. Desse modo, a narrativa de Calvino, seguindo a lógica do tarô, acaba por funcionar segundo o princípio de topologia, transformando-se, como a rede, no próprio espaço. Nela não há um ponto fixo, mas um constante deslocamento de centralidade a cada movimento realizado pelos personagens e pelo narrador. Mas talvez seja principalmente no movimento de leitura de O castelo dos destinos cruzados que encontramos uma maior aproximação entre a literatura e os princípios hipertextuais. O narrador nos coloca, leitores do livro de Calvino, diante de uma rede em constante movimento, uma estrutura espacial que deve ser percorrida na busca do sentido. Para tanto, podemos nos deslocar das mais diversas formas, a partir de diferentes entradas, em direções opostas: O quadrado agora se encontra inteiramente recoberto de cartas de tarô e de histórias. As cartas do maço estão todas à mostra sobre a mesa. E a minha história, onde está? Não consigo distingui-la entre as outras, tão intrincado se tornou seu entrelaçamento simultâneo. De fato, a tarefa de decifrar as histórias uma por uma fez-me negligenciar até aqui a peculiaridade mais saliente de nosso modo de narrar, ou seja, que cada relato corre ao encontro de outro relato e, enquanto um dos convivas dispõe sua fileira, outro comensal no outro extremo da mesa avança em sentido oposto, de modo que as histórias contadas da esquerda para a direita ou de baixo para cima podem ser igualmente lidas da direita para a esquerda ou de cima para baixo, e viceversa, tendo-se em conta que as mesmas cartas apresentando-se numa ordem diversa não raro mudam de significado, e a mesma carta de tarô serve ao mesmo tempo a narradores que partem 9
dos quatro pontos cardeais. (CALVINO, 1994, p. 63) O narrador, ao percorrer cada caminho aberto pelas histórias extraídas do tarô, estabelece uma abertura que lhe permite o afastamento de sua própria narrativa. Ele passa, assim, de sujeito totalmente envolvido pelo sentido de sua história, a uma situação em que precisa traçar seus caminhos, responder a questões e situações que lhe são colocadas, escolhendo a forma mais adequada de atribuir sentido às suas atitudes: Sem dúvida a minha história também estaria contida naquele entrelaçar de cartas, passado presente futuro, mas não sei mais distingui-la das outras. A floresta, o castelo, as cartas do tarô me conduziram a esta barreira: perder a minha história, confundi-la na poeira das outras, libertar-me dela. O que sobrou de mim foi apenas essa obstinação maníaca de completar, de encerrar, de dar vida aos relatos. (CALVINO, 1994, p. 67) Esta breve análise da obra de Calvino tendo como instrumental teórico-metodológico o modelo hipertextual procurou apresentar alguns dos possíveis intercâmbios, diálogos e cruzamentos que podem ser estabelecidos entre a literatura e o hipertexto. Referências bibliográficas BARANELLI, Luca; FERRERO, Ernesto. Album Calvino. Milano: Mondadori, 2003. BENUSSI, Cristina. Introduzione a Calvino. Roma: Laterza, 1989. BONURA, Giuseppe. Invito alla lettura di Italo Calvino. Milano: Mursia, s.d. CALVINO, Italo. O castelo dos destinos cruzados. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. CHAVES, Maria Lúcia de Resende. A face vazia dos discursos: ciência, arte, filosofia e ficção na estética contemporânea precisada na obra de Italo Calvino. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2001. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. COSTA, Rita de Cássia Maia e Silva. O desejo da escrita em Italo Calvino: para uma teoria da leitura. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Introdução: Rizoma. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. v.1, p. 11-37. LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Ed. 34, 1996. 10
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