OS ORIXÁS, O IMAGINÁRIO E A COMIDA NO CANDOMBLÉ



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OS ORIXÁS, O IMAGINÁRIO E A COMIDA NO CANDOMBLÉ Janaina Couvo Teixeira Maia de Aguiar 1 RESUMO Este artigo apresenta uma análise sobre os mitos dos orixás e sua relação com as comidas que são oferecidas a estas divindades. Pretende-se compreender a importância dos mitos para a estrutura ritualística do candomblé, entendendo que o papel das oferendas é fundamental para que a relação de troca existente entre homens e divindades seja concretizada. PALAVRAS-CHAVE: mito, comida, orixás, candomblé ABSTRACT His paper presents a analysis about the myths of deities and their relationship with the food that are offered to these deities. The aim is the comprehension of the importance of the myths to the ritualistic structure of the candomblé, understanding that the role of the offerings is fundamental so that the exchanging relationship that exist between man and deities can be realized. PASSWORDS: myth, food, deities, candomblé INTRODUÇÃO No universo sagrado do candomblé a comida é um elemento essencial. As determinações do que deve ser oferecido aos Orixás em forma de oferendas está presente em suas histórias míticas, trazendo suas prescrições alimentares e também referências ao que não pode ser oferecido, ou seja, as interdições alimentares. Desta forma, os relatos sobre a história dos Orixás apresentam elementos importantes para a compreensão de toda a estrutura ritualística do candomblé, principalmente no que diz respeito à definição das oferendas. Assim, São os mitos que trazem informações sobre o que deve ser oferecido, o que não pode ser utilizado na preparação das oferendas, ou seja, as interdições, os tabus alimentares, quem pode receber uma oferenda feita com milho branco ou milho amarelo, 1 Mestranda em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia, é Licenciada e Bacharel em História pela UFS, Especialista em Arte, Educação e Tecnologias Contemporâneas pela UNB, Graduanda em Museologia pela UFS e desenvolve pesquisas sobre as Religiões Afrobrasileiras, Patrimônio Cultural e imagem.

161 OS ORIXÁS, O IMAGINÁRIO E A COMIDA NO CANDOMBLÉ com dendê ou com azeite doce. Nos relatos de suas aventuras e seus conflitos é possível encontrarmos a presença constante de oferendas que são solicitadas, conflitos envolvendo a ausência das oferendas, entre outras situações em que a comida pode aplacar a ira dos orixás ou despertar a sua proteção. Uma das histórias conhecidas no universo sagrado do candomblé diz respeito à interdição do sal nas oferendas à oxalá: (...) Oxalá foi consultar Ifá para saber como melhor tocar a vida. Os adivinhos recomendaram que fizesse ebó, que oferecesse aos deuses uma cabaça de sal e um pano branco. Assim Oxalá não passaria por transtornos e não sofreria desonras e outras ofensas morais na terra. Dando de ombros ao conselho, Oxalá foi dormir sem cumprir o recomendado. De noite Exu entrou na casa de Oxalá. Ele trazia uma cabaça cheia de sal e amarrou nas costas de Oxalá. Na manhã seguinte Oxalá despertou corcunda. Desde então tornou-se o protetor dos corcundas, dos albinos e de toda sorte de aleijados. Mas foi para sempre proibido de consumir sal (...) (PRANDI, 2001, p.359) Desta forma, assim como Oxalá, os demais orixás expressam em seus mitos, além de suas aventuras e suas características, também informações sobre o que é do seu agrado, o que pode ou não ser oferecido e, principalmente, o que deve ser evitado. Com isso, seguindo estas orientações é possível manter uma relação harmoniosa entre os devotos e suas divindades. OS MITOS E A CONSTRUÇÃO DO CARDÁPIO DOS ORIXÁS Os mitos surgem de uma presença constante da oralidade dentro dos terreiros de candomblé. É o caminho para o aprendizado, para a troca de conhecimentos entre o povo do axé. Muitas das orientações são repassadas pelos mais velhos através dos mitos, onde as grandes aventuras dos orixás devem ser interpretadas, analisadas e retiradas desses textos todas as orientações necessárias para cuidar de cada divindade. Assim, é por meio dos relatos mitológicos que é possível construir um cardápio dos orixás. Um estudo importante sobre a mitologia dos orixás foi desenvolvido por PRANDI (2001), apresentando uma série de mitos que relatam suas histórias e principalmente,

JANAINA COUVO TEIXEIRA MAIA DE AGUIAR 162 descreve suas oferendas. Algumas divindades trazem em suas histórias uma presença mais significativa com as comidas, como é o caso de Exu: Eleguá ganha a primazia nas oferendas (...) Olofim estava muito doente. Muitos foram vê-lo, mas não se encontrou o que o curasse. Por esses tempos, Eleguá comia o que o lixo lhe dava, convivendo com a miséria. Sabendo da doença de Olofim, Eleguá vestiu um gorro branco, igual aos que usam os babalaôs, e foi visitar o velho rei. Levou consigo suas ervas e com seu poder curou Olofim. Olofim ficou agradecido. Perguntou a Eleguá qual deveria ser a recompensa. Eleguá que conhecia o que era a miséria, Eleguá que provara do desprezo de todos, pediu-lhe que lhe dessem primazia nas oferendas, que lhe dessem sempre um pouco de tudo o que dessem a qualquer um. E que o pusessem à entrada da casa. E para que fosse saudado pelos que saíssem à rua. Olofim estava grato a Eleguá. Olofim deu tudo o que Eleguá pediu (...) (2001, p.53-54) Exu é um orixá que tem prioridade nos rituais do candomblé. É a divindade que primeiro deve receber as oferendas. Suas comidas, à base de farinha de mandioca, dendê, cachaça e pimenta, são preparadas com todo o cuidado, para que esta divindade possa receber tudo corretamente. E este cuidado com as oferendas é algo muito presente nos terreiros de candomblé, pois, qualquer comida preparada erroneamente pode resultar na ira dos orixás. É importante perceber que todo o processo de preparação das oferendas na cozinha do santo, deve-se ter muita atenção. necessários pode resultar em problemas futuros com o orixá. Preparar uma oferenda sem os cuidados Assim, conhecer as particularidades de cada divindade é fundamental para aqueles que estão em contato direto com a preparação das oferendas, assim como conhecer também suas histórias, seus feitos mitológicos. (...) No candomblé os deuses comem. Cada um tem sua comida particular, de seu agrado pessoal, de sua preferência pessoal. Comida ligada às suas

163 OS ORIXÁS, O IMAGINÁRIO E A COMIDA NO CANDOMBLÉ histórias, a seus odus, a seus mitos. Comida que muitas vezes é cantada e dançada numa integração harmoniosa de gesto, música e palavra (...) (LIMA, 2010, p. 138) Esta integração citada por LIMA (2010) é algo muito presente durante o processo de preparação dos rituais no candomblé. No momento em que estão sendo preparadas as comidas para os orixás, são contadas suas histórias e muitas vezes entoados cânticos que contribuem para a compreensão do que se está querendo passar aos demais iniciados que acompanham a preparação das oferendas. O conhecimento é articulado com a música, algo tão presente no candomblé. reafirmada pelo autor: E esta presença constante do mito definindo as oferendas aos orixás é (...) As comidas são elaboradas, requintadas na forma, no ordenamento do preparo ou na simplicidade aparente de um despojamento prescrito pelo mito, vez que, atrás de cada oferenda alimentar está o mito que a prescreve pelas práticas divinatórias (...) (LIMA, 2010, p.149) E o espaço onde todo este conhecimento é construído e apresentado aos iniciados é a cozinha, espaço este onde os alimentos assumem uma característica mágica, fazendo com que ingredientes usados no dia-a-dia sejam utilizados através de um ritual onde nada é por acaso. É a força do axé direcionada para a preparação das oferendas que serão destinadas aos orixás. AS PARTICULARIDADES DA COZINHA DOS ORIXÁS A cozinha transforma-se num espaço onde estes mitos são recriados. O fogo, elemento fundamental no preparo dos alimentos, tem sua origem associada a um mito: Xangô ensina o homem como fazer fogo para cozinhar (...) Em épocas remotas, havia um homem a quem Olorum e Exu ensinaram todos os segredos do mundo, para que pudesse fazer o bem e o mal, como bem entendesse. Os deuses que governavam o mundo, Obatalá, Xangô e Ifá, determinaram que, por ter se tornado feiticeiro tão poderoso, o homem deveria oferecer uma grande festa para os deuses, mas eles

JANAINA COUVO TEIXEIRA MAIA DE AGUIAR 164 estavam fartos de comer comida crua e fria. Queriam coisa diferente: comida quente, comida cozida. Mas naquele tempo nenhum homem sabia fazer fogo e muito menos cozinhar. Reconhecendo a própria incapacidade de satisfazer os deuses, o homem foi até a encruzilhada e pediu a ajuda a Exu. Esperou três dias e três noites sem nenhum sinal, até que ouviu uns estalos na mata. Eram as árvores que pareciam estar rindo dele, esfregando seus galhos umas contra as outras. Ele não gostou nada dessa brincadeira e invocou Xangô, que o ajudou lançando uma chuva de raios sobre as árvores. Alguns galhos incendiados foram decepados e lançados no chão, onde queimaram até restarem só as brasas. O homem apanhou algumas brasas e as cobriu de gravetos e abafou tudo colocando terra por cima. Algum tempo depois, ao descobrir o montinho, o homem viu pequenas lascas pretas. Era o carvão. O homem dispôs os pedaços de carvão entre pedras e os acendeu com a brasa que restara. Depois soprou até ver flamejar o fogo e no fogo cozinhou os alimentos. Assim, inspirado e protegido por Xangô, o homem inventou o fogão e pode satisfazer as ordens dos três grandes orixás. Os orixás comeram comidas cozidas e gostaram muito. E permitiram ao homem comer delas também (...) (PRANDI, 2001, p.257-258) Assim, Xangô se transforma no orixá que ensina o fogo ao homem e a partir deste momento, o homem começa a cozinhar, a preparar comidas cozidas, porém, os primeiros a receber este alimento são os próprios orixás. Nesta relação com o sagrado, com as próprias divindades, surgem os elementos fundamentais da cozinha: o fogo e o fogão. Desta forma, o espaço da cozinha pode ser considerado um espaço sagrado de transformação, onde as comidas são transformadas em oferendas. Vários são os elementos que estão relacionados neste processo: as palavras, os cânticos, as pessoas envolvidas, os objetos, tudo deve estar em perfeita harmonia para que o orixá possa retribuir as dádivas oferecidas pela comunidade religiosa. alimento. É importante ressaltar que todo ritual no candomblé tem uma relação com o Seja uma simples limpeza espiritual, até uma celebração mais complexa, a oferenda aos orixás é constituída de comida. LIMA (2010) destaca a relação que existe entre as comidas rituais e a tradição yorubá-nagó, responsável pelo modelo da comida sacrifical do candomblé. Segundo este autor: (...) foi certamente na estruturação das primeiras casas de santo da Bahia, do modelo nagô, no fim do século XVIII começo do XIX, como disse, que essa comida de santo terá sito recriada, codificada, reconstituída entre nós,

165 OS ORIXÁS, O IMAGINÁRIO E A COMIDA NO CANDOMBLÉ com as inevitáveis substituições, se por acaso os ingredientes, ou mesmo os animais, não fossem encontrados no novo cenário ecológico dos orixás e voduns (...) (2010, p.26) Assim, percebe-se que houve um processo de hibridismo cultural na redefinição das comidas dedicadas aos orixás, a partir do momento em que as substituições foram acontecendo, resultando em reelaborações das comidas, redefinições de alimentos que vão ser destinados às divindades africanas. Isto pode ser observado a partir do momento em que encontramos entre as bases de muitas comidas de santo, por exemplo, a farinha de mandioca e o milho, elementos da América, que foram incorporados ao inhame africano, ao quiabo, e a tantos outros alimentos, surgindo as várias oferendas. Este processo é resultante do próprio contato entre as culturas, proporcionada pelo intercâmbio não só de homens, mas também de alimentos. É importante entender estas combinações entre práticas e elementos culturais diferenciados, resultando em novas formas, ou seja, novas comidas, a partir de um processo que CANCLINI (2008) denominou de processo de hibridação, onde o que deve ser observado é todo o percurso de transformação dessas comidas. No candomblé, isto se verifica na composição dos pratos destinados aos orixás, onde encontramos elementos resultantes de várias culturas, principalmente a indígena e portuguesa. BASTIDE (2001) se refere a este processo de hibridismo cultural em torno das comidas no candomblé como sincretismo: (...) Devemos observar que o sincretismo introduziu-se na cozinha como no restante da vida religiosa. O lugar ocupado pelo milho ameríndio, ao lado da mandioca, prova-o claramente. Há uma mistura das sobrevivências místicas da África, em particular o azeite de dendê e a pimenta da costa, com os elementos tomados de empréstimo à cozinha dos brancos e dos índios (...) (2001, p.333) É importante observar que é possível que este hibridismo cultural que aconteceu e ainda acontece na redefinição do cardápio dos orixás tenha uma relação com os processos vividos na atualidade pelo candomblé, onde a modernidade e suas

JANAINA COUVO TEIXEIRA MAIA DE AGUIAR 166 transformações interculturais podem influenciar neste processo de adaptações. destacado por SOUZA JÚNIOR (2009): Isto é (...) Deve-se perguntar, então, se certas adaptações e substituições regemse pela necessidade, portanto, é um fato, ou se podem, simplesmente, ser tomadas como condições para a sobrevivência desses orixás na contemporaneidade (...) (2009, p.205) Assim, entender estas transformações nas comidas dos orixás é entender que a cozinha é um espaço que também passou por adequações. Existe todo um discurso voltado para a valorização do tradicional, porém, encontramos cada vez mais a presença de fogão industrial, panelas de alumínio e outros instrumentos modernos que coabitam este espaço juntamente com os objetos de madeira e barro, como as colheres de pau, as gamelas de madeira, os potes, panelas e alguidares de barro, entre tantos outros objetos que são necessários para o preparo dessas oferendas. Entretanto, mesmo diante de todas estas inovações, o axé, a crença nos orixás, permeia todo o universo sagrado que está presente na cozinha, ou seja, são as palavras, as músicas, os rituais que são realizados durante o preparo de cada comida que traz a força e o sagrado de cada oferenda preparada para as divindades. É a cozinha do santo, espaço este que não é utilizado para outra situação a não ser para o preparo as oferendas do candomblé. (...) Cozinha do santo é assim, mais que um lugar determinado que, em terreiros de estrutura maior, se tem para preparar somente os pratos dos orixás e, sim, um espaço criado e redefinido a cada momento, no terreiro, através da separação dos objetos, utensílios e mudanças de comportamentos (...) (SOUZA JÚNIOR, 2009, p.82) Dar um presente, dar uma oferenda, dar uma comida ao orixá. Estas são as denominações que os iniciados no candomblé utilizam para o momento em que procuram construir uma relação mais próxima com seus orixás individuais, através da relação entre o dar, receber e retribuir, tão presente no candomblé e que tem enquanto elemento de mediação fundamental, a comida. Neste sentido, a cozinha ganha um status de santuário,

167 OS ORIXÁS, O IMAGINÁRIO E A COMIDA NO CANDOMBLÉ onde tudo gira em torno do sagrado, e todos com o pensamento firmado em energias positivas, que são repassadas ao alimento que está sendo preparado. Segundo BASTIDE (2001), A cozinha é um espaço marcado por ritos, que são seguidos por uma série de interdições e tabus em torno do preparo das comidas destinadas aos orixás. Existem os tabus relacionados a cada orixá em particular e aqueles relativos a rituais específicos, que limitam por um determinado tempo algumas comidas, temperos e frutas ou mesmo excluem por definitivo da dieta alimentar do iniciado. Assim, temos orixás fun-fun, orixás do branco, que só podem receber comidas brancas, ou seja, feitas com milho branco, sem dendê, outros que podem recebe comidas feitas à base de dendê, com a presença do sal, que só podem receber oferendas preparadas com milho amarelo, inhame, feijão fradinho, que no preparo só pode ser utilizado o azeite doce, entre outras prescrições que devem ser seguidas cuidadosamente, para evitar os castigos em virtude de uma comida muito temperada ou mesmo preparada de forma errônea. Segundo o autor, (...) Cada divindade tem suas repugnâncias alimentares, bem como suas preferências. E todas essas repugnâncias explicam-se. Há uma lógica dos ewós. Alguns tem suas origens nos mitos, na vida dos próprios deuses, quando eles eram reis africanos (...) (2001, p.336) Desta forma, os tabus alimentares são bastante respeitados no candomblé, havendo uma preocupação constante com o agradar o orixá, e isto está vinculado a uma oferenda preparada da forma correta, sem deslizes que possam resultar na insatisfação da divindade. Estas restrições abrangem tanto os alimentos quanto os temperos utilizados no preparo das comidas, assim como também a ingestão de algumas frutas, que se transformam em quizilas, ou seja, interdições. Diante da importância deste espaço no terreiro, um papel importante neste processo de preparo das oferendas e também fundamental dentro da estrutura do candomblé está relacionado à pessoa que irá assumir a cozinha. Trata-se da Iabassê, a senhora da cozinha. É ela quem assume toda a responsabilidade no preparo e organização

JANAINA COUVO TEIXEIRA MAIA DE AGUIAR 168 de cada prato a ser ofertado às divindades, tendo todo o cuidado com os preceitos alimentares. Desde a ida ao mercado efetuar a compra dos alimentos até a elaboração da oferenda, esta iniciada assume toda a responsabilidade pela comida dedicada aos orixás. É auxiliada por outros iniciados, porém, nos momentos essenciais na elaboração das iguarias sagradas, a Iabassê está à frente. Na definição deste cargo essencial para o terreiro, é importante ressaltar que não qualquer pessoa que pode assumir. Segue toda uma série de preceitos e orientações para definir quem será a pessoa escolhida para o cargo. Assim, de acordo com SOUZA JÚNIOR (2001), este é um cargo que está voltado preferencialmente a mulheres que já estão na menopausa, com certa idade, pois existe todo um tabu em torno do sangue menstrual, que limita os espaços da mulher no candomblé durante este período. Além disso, outro aspecto importante está relacionado à dedicação a cozinha, que deve ser exclusiva para a Iabassê, o que exige a sua presença diária no terreiro. Assim, para o autor, (...) Como detentora da colher de pau, guardiã da culinária, ofício recebido desde os primórdios do tempo por todas as mulheres, a Iabassé, de forma especial, tem a função de cuidar das panelas de cada orixá, daí a exigência do seu profundo conhecimento, decorrente dos muitos anos de aprendizado, observância e respeito ao silêncio e a criatividade (...) (2009, p.119) Este é um cargo ocupado na maioria dos terreiros de candomblé, por mulheres, e que são orientadas e acompanhadas pela Ialorixá. Porém, é importante ressaltar que homens também assumem a liderança na cozinha do santo. Este fato foi analisado por BASTIDE (2001), que ressalta que a presença feminina no ca ndomblé e principalmente na ocupação de cargos importantes nos terreiros, não deve ser considerada universal. (...) A função de preparar os pratos místicos nem sempre é atribuída a uma mulher e sabe-se, com efeito, que os homens, quando se encarregam disso, são cozinheiros ainda mais hábeis. Assim se explica o que vimos em um terreiro jeje, um cozinheiro muito aplicado em sua função, e que me falou,

169 OS ORIXÁS, O IMAGINÁRIO E A COMIDA NO CANDOMBLÉ como um verdadeiro apaixonado, dos preparativos das cozinhas dos deuses (...) (2001, p.334) Assim, sejam homens ou mulheres, trata-se de uma grande responsabilidade está à frente da cozinha no candomblé, pois é uma função que vai exigir todo um conhecimento das questões relativas à atividade prática do preparo das oferendas. cuidado com as palavras, os gestos, as roupas e demais acessórios utilizados pelos iniciados é uma constante, principalmente pelos que estão na organização direta das comidas. Tudo que acontece em volta da cozinha deve estar em sintonia com o momento sagrado, mantendo um equilíbrio de todos no terreiro, para que os orixás recebam os presentes e possam retribuir com sua proteção ao terreiro e a todos os que estão participando do ritual. O CONSIDERAÇÕES PARA UM BANQUETE... É importante perceber que o fato de dar um presente ou dar uma comida ao orixá está relacionado a toda uma relação construída com base em uma obrigação centrada em três elementos fundamentais: o dar, receber e retribuir, onde o iniciado, ao preparar uma comida para seu orixá, espera algo em troca e consequentemente isto vai exigir uma retribuição das dádivas recebidas. Nesta relação construída à base de obrigações, é importante ressaltar que, segundo MAUSS (2008), existe a necessidade da circulação das dádivas, ou seja, as dádivas dadas devem ser retribuídas, o que pode ser observado nos pejis dos terreiros de candomblés, onde a todo o momento é possível encontrarmos iniciados colocando suas oferendas, renovando seus laços com seu orixá individual, o que demonstra esta constante circularidade em torno dos presentes recebidos e retribuídos. Assim, segundo LODY (2004): (...) O candomblé é, sem dúvida, o reduto de grande significado para a sobrevivência da cozinha, onde as atitudes rituais e as maneiras de preparar os alimentos estão repletas de significados econômicos e sociais, sendo de alta importância para uma comunicação em linguagem própria a comida (...) (2004, p. 31)

JANAINA COUVO TEIXEIRA MAIA DE AGUIAR 170 Em torno da comida, os rituais internos acontecem. Em meio a segredos, ritos bastante elaborados fazem parte deste momento em que a comunicação é construída entre o devoto e o orixá, ou entre a comunidade religiosa do terreiro e suas divindades protetoras. E em algumas situações, estes rituais se desdobram em momentos em que ocorre a socialização através da comida. A relação de sociabilidade entre os devotos e suas divindades se estende a toda à comunidade do entorno do terreiro e aos visitantes, através dos rituais públicos, as festas. Este é o momento em que a relação mediada pela comida assume um significado mais amplo, promovendo a socialização entre os iniciados, a comunidade e os orixás. REFERÊNCIAS BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. CANCLINI, Nestor Gárcia. Culturas Híbridas. 4ª Ed. São Paulo: EDUSP, 2008. LIMA, Vivaldo da Costa. A Anatomia do Acarajé e Outros Ensaios. Salvador: Corrupio; 2010. LODY, Raul. Santo Também Come. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Pallas, 1998. MAUSS, Marcel. Ensaio Sobre A Dádiva. Portugal: Edições 70, 2008. PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. SOUZA JÚNIOR, Vilson Caetano. O Banquete Sagrado Notas Sobre Os De Comer Nos Terreiros De Candomblé. Salvador: Atalho, 2009. VERGER, Pierre Fatumbi. Lendas Africanas dos Orixás. 4ª Ed. Salvador: Corrupio, 1997. Recebido: 12/05/2012 Aprovado: 25/06/2012