As Cores do Festejo Kalunga na Época de Seca do Cerrado Colors of Kalunga Celebration at the Cerrado s Drought Times Júlia de Capdeville 1 Ao norte do estado de Goiás, no Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, vive a maior comunidade quilombola do Brasil em extensão territorial, formada por 58 comunidades num espaço de 37 mil hectares distribuídos por três municípios (Cavalcante, Teresina e Monte Alegre). Esse quilombo se divide em três grandes concentrações de comunidades: o Vão de Almas, Vão do Moleque e Engenho. A expansão territorial e a dificuldade de acesso a algumas partes dele, em especial ao Vão de Almas e Vão do Moleque - que tem estradas de acesso muito precárias - dificultam reuniões frequentes entre esses quilombolas. Os encontros normalmente se dão nas festas religiosas católicas. Entre as mais populares estão a de São João e a Folia de Reis. Mas a mais conhecida e dita a festa que é boa mesmo é a que acontece em Agosto no Vão de Almas, época de seca severa, quando os Kalunga de diferentes partes do território e moradores de cidades próximas, migram para uma cidadela construída dentro deste vão chamada Capela. Durante sete dias a Capela vive duas celebrações: a Romaria do Divino Espírito Santo e a festa de Nossa Senhora D Abadia que constituem uma performance cultural que explora todos os sentidos do corpo humano. Esse trabalho é um registro imagético dos momentos de festa e de seu preparo dentro em 2013. Pretende-se com ele registrar os elementos de um catolicismo negro, as belezas dessa comemoração, as danças, a performance, as cores, o povo kalunga e esse espaço de seu território. 1 Universidade de Brasília, Brasil.
Ao norte do estado de Goiás, no Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, vive a maior comunidade quilombola do Brasil em extensão territorial, formada por 58 comunidades num espaço de 37 mil hectares distribuídos por três municípios (Cavalcante, Teresina e Monte Alegre). Esse quilombo se divide em três grandes concentrações de comunidades: o Vão de Almas, Vão do Moleque e Engenho.
Antes da festa é tempo de preparação para peregrinar. Além de todos apetrechos necessários para uma semana longe de casa com toda a família comida, panelas, colchões, barracas é momento também de cuidar da aparência. Cada um separa suas melhores roupas, os homens seus melhores bonés e chapéus. As mulheres, das mais novas as mais velhas, ou trançam seus cabelos negros em fios de nylon ou levam seus lenços favoritos.
Os peregrinos se encaminham para uma cidadela construída por eles mesmo especialmente para a festa, chamada Capela. Assim como as casinhas do Vão de Almas, as dali são de adobe e folhas secas. Já a Capela, que dá nome ao espaço da festa, é de alvenaria.
Durante sete dias, duas festas e dois reinados são vividos na Capela. Cada casal de rei e rainha comanda uma festa, a do Divino Espírito Santo e a de Nossa Senhora D Abadia. A primeira é trabalhada com cores quentes e enfeites coloridos, contrastando com o branco da pomba que representa o divino espírito santo. Na segunda, as roupas são brancas, mas os enfeites coloridos como a outra. Ambas as festas são católicas, e ilustram bem o que é um catolicismo brasileiro, colonial, negro.
Esse catolicismo negro, também conhecido como catolicismo popular, é marcado pela afrodescendencia da cultura brasileira. Apesar de perceptível em todo o país, dentro dos quilombos a alteridade é maior possibilitando reconhecer várias características que diferem o catolicismo brasileiro de um catolicismo oficial.
As danças, ritmos, letras e seus símbolos dentro da comunidade Kalunga, as cores, a bebida, as contas que enfeitam os pescoços das mais velhas salientam os traços da cultura negra colonial comum ao Brasil, dentro desse quilombo.
No que diz respeito aos ritmos e danças, nessa festa acontece uma dança peculiar às outras que acontecem na comunidade: a Sussa. Essa é uma dança de mulheres, cantada e performada por mulheres e suas saias em um crescente movimento giratório.
Tudo que enfeita a festa é feito pelos próprios Kalunga. Desde as bandeiras dos santos, até as vestes dos reis e das susseiras. Normalmente quem se envolve na feitura da decoração, são as pessoas mais velhas, os reis e rainhas e suas famílias. A escolha do casal que regerá a próxima festa acontece no último dia de festa nessa semana de Agosto.
Esses dias de festa são todo o tempo que os Kalunga tem contato com um mediador do catolicismo: o Padre. A presença dele não é algo incorporado ao dia-a-dia da comunidade, o que se observa na distribuição de espaço da capela: não existe um altar com espaço para ele. Na frente dos bancos da Igreja ficam as imagens dos santos, os enfeites feitos de papel crepom, balão, velas e tecidos e um pequeno corredor onde uma pessoa pode transitar vagarosamente para não derrubar a decoração. O espaço que o Padre normalmente se movimenta é pelas laterais da Igreja.
Durante uma semana, a Capela pouco dorme, o forró toca de sol a sol. Os sinos tocam cedo da manhã e à noite chamando para a missa com as rezadeiras Kalunga que cantam em latim. Os vizinhos, distantes no mínimo por meio quilômetro antes da festa, moram por uma semana lado a lado. Esse é um momento de reza e festa, mas principalmente de encontro. Essa semana é muito importante para reforçar os laços com os kalungueiros como eles mesmos se chamam das partes mais distantes do território. É por meio do festejo popular, que se promove o momento de reencontro.