9. Considerações finais

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Transcrição:

9. Considerações finais 9.1. Resumo do estudo O estudo realizado caracterizou VPA e VPS como configurações diferentes de significados textuais, ideacionais e interpessoais. Conforme se viu no capítulo 5, na maioria das ocorrências de VPA examinadas, o Sujeito/Objeto corresponde a elemento Dado no texto, o que permite concluir que a tematização de tal constituinte é a principal motivação para o emprego dessa estrutura. Nas ocorrências de VPS, ao contrário, o constituinte com função de Objeto só é Dado em um número relativamente pequeno de ocorrências. Essas diferenças de distribuição apontam para diferenças de funcionalidade das duas construções no interior dos textos. VPA apresenta-se como recurso para desvincular as funções de Sujeito e Tema, de um lado, da função de Agente, de outro. Possibilitando converter o Objeto em Sujeito e, portanto, em Tema não-marcado, constitui uma ferramenta valiosa para a organização informacional do texto. O Objeto que corresponde a referente Dado pode ser codificado como ponto de partida da mensagem; ao mesmo tempo, o Agente que corresponde a referente Novo pode ser posicionado no Rema, sem que isso configure ordem marcada. VPS, por sua vez, desvincula a função de Sujeito da de Tema, que passa a ser o Predicador na ordem não-marcada, representando, assim, uma possibilidade de enfatizar o Processo como ponto de partida da mensagem, e não o Agente ou o Objeto. Ao contrário de VPA, porém, VPS não desvincula a função de Sujeito da de Agente conquanto indeterminado, o Sujeito de VPS é ativo. O fato de que VPS não equivale a voz passiva facilita a ocorrência dessa estrutura com verbos de processo mental ou verbal acompanhados de Complementos que não são Participantes, mas metafenômenos representados por orações projetadas. Tais orações normalmente introduzem informação nova no texto. Logo, VPA e VPS contribuem de modo diferente para a organização informacional dos textos, o que equivale a afirmar que têm significados diferentes na metafunção textual. A não-identificação do Agente é o traço comum entre VPA e VPS, o que explica por que a descrição tradicional, a partir de uma concepção do componente semântico limitada ao domínio ideacional, insiste em afirmar a sinonímia entre as

143 duas estruturas. Se o significado é concebido apenas como representação da realidade, então VPS e VPA podem ser entendidas como formas semanticamente equivalentes, já que ambas representam um estado de coisas sem a explicitação de um participante causador ou responsável por ele. Contudo, se tanto VPS quanto VPA servem ao ocultamento da identidade do Agente, isso se dá mediante recursos diferentes. No primeiro caso, trata-se de simples omissão, possibilitada pelo fato de que o Objeto preenche a função de Sujeito; no segundo, trata-se da supressão da oposição de pessoa ou seja, em VPS há indefinição extrema das pessoas do discurso envolvidas. Isso significa que a inclusão ou não do falante e do ouvinte no estado de coisas expresso é vaga, imprecisa, resultando em diferentes efeitos de sentido no domínio interpessoal, como a facilitação do envolvimento do leitor com o ponto de vista do autor, ou a imprecisão quanto ao grau de participação do autor nos estados de coisas a que se refere. A neutralização da oposição de pessoa é o traço definidor da indeterminação do Sujeito. Embora o significado Sujeito indeterminado sempre acarrete o significado Agente não-identificado, o inverso não se verifica. Ou seja, trata-se de conteúdos semânticos distintos, pertencentes, o primeiro, à metafunção interpessoal, e o segundo, à metafunção ideacional. Sujeito indeterminado é um conteúdo semântico positivo: não se confunde com ausência de Sujeito, como ocorre no caso do infinitivo impessoal. Neste último caso, a falta de um Sujeito explícito pode acarretar sua interpretação ou como um Agente não-identificado, ou como um Agente co-referente com algum SN do período, conforme o co-texto. Por serem recursos diferentes, é possível a ocorrência do clítico se com o infinitivo. Essa ocorrência, semanticamente motivada, é um importante recurso léxico-gramatical naturalmente condizente com um sistema lingüístico que inclui infinitivo pessoal, e é uma evidência da especificidade do significado Sujeito indeterminado da construção com se, que a distingue de outras formas de ocultamento da identidade do Agente. Confirma-se assim, no português, a observação de Halliday, mencionada na Introdução da presente tese, de que aparentes sinonímias devem ser vistas com cautela, pois a tendência é que apresentem distinções semânticas sutis. No caso das estruturas em foco, este estudo buscou identificar seus traços de significado

144 comuns e divergentes, e formalizou sua descrição em um sistema de parâmetros binários. 9.2. Conclusões A abordagem tridimensional do significado, possibilitada pelo modelo sistêmico-funcional, resulta numa análise multifacetada que permite lançar luz sobre pormenores e sutilezas aparentemente intangíveis quando se trabalha a partir de uma concepção do nível semântico limitada à dimensão ideacional. A análise do significado em três dimensões leva a rever os critérios e motivações (raramente explícitos) empregados tradicionalmente para a alegação de sinonímias. No caso de VPA e VPS, há, de fato, alguma sinonímia, uma vez que, no componente ideacional, ambas se caracterizam pela não-identificação do Agente. No entanto, essa concepção mais complexa do significado explica por que a sinonímia é apenas parcial. Representando-se os significados das estruturas por parâmetros independentes, conforme proposto, abre-se a possibilidade de explicitar as semelhanças e diferenças entre elas e, assim, conhecer melhor o potencial semântico e léxico-gramatical do português. A situação particular do português coloca questões relevantes para a teoria sistêmico-funcional, alicerçada, em suas obras mais representativas, na língua inglesa. Assim, por exemplo, a existência de VPS, ao lado de VPA e VA, levanta o problema das relações entre o Tema e outras funções estruturais. Como se viu no capítulo 3, Halliday (1994a: 42ss.) afirma que o modo oracional é que determina que elemento da oração é escolhido como Tema: o Sujeito, em orações declarativas; o Predicador, em imperativas; o Finito, ou o pronome ou advérbio interrogativo (wh-), em interrogativas. Nesse sentido, o modo estabelece uma relação entre as metafunções interpessoal e textual. De forma análoga, a voz estabelece que elemento da estrutura ideacional será escolhido como Sujeito e, conseqüentemente, como Tema não-marcado em orações declarativas: o Agente, na voz ativa, ou o Objeto, na voz passiva. Ou seja, a voz, além do modo, também funciona como uma espécie de interface entre duas metafunções a ideacional e a interpessoal. Indiretamente, portanto, a voz também determina que elemento da oração (nesse caso, que elemento da estrutura ideacional) é escolhido como Tema.

145 No caso do português, que possui VPS, ao lado da voz ativa e da passiva, a escolha de Temas não-marcados se dá entre o Agente, na voz ativa, o Objeto, na voz passiva, e o Processo, na construção com se. Embora a construção com se não seja, de fato, voz passiva, ela está, dessa forma, relacionada ao sistema de voz possivelmente como uma voz ativa pronominal (por analogia com a designação tradicional voz passiva pronominal ). Nesse sentido, pode-se entender o sistema de voz como um contínuo semântico (o que é proposto por Shibatani 1985). VA e VPA representariam os extremos desse contínuo, caracterizados pela nitidez do papel ideacional de Agente ou de Objeto do constituinte Sujeito: Sujeito/Agente, em VA, e Sujeito/Objeto, em VPA. Em VPS, o papel do Sujeito é o de Agente daí ser VPS mais adequadamente descrita como voz ativa. No entanto, a não-identificação de tal Agente confere-lhe uma natureza difusa, o que aproxima VPS da construção com o clítico se no sentido espontâneo na qual o Sujeito não pode ser propriamente considerado nem Agente, nem Objeto. O Sujeito, neste caso, seria mais adequadamente descrito como Meio, em processo representado como nãoergativo, na terminologia de Halliday. A distinção entre as duas construções parece deslizar sutilmente de um Agente difuso para a ausência de Agente daí a ambigüidade que aparece em certos contextos. Ao lado dessas duas formas com se, o contínuo incluiria, ainda, a forma de sentido reflexivo/recíproco, em que os papéis de Agente e de Objeto se fundem no Sujeito. Esse esboço, apoiado no estudo realizado, permite não apenas situar VPS em relação a VA e a VPA no sistema de voz, mas também expressar as relações semânticas entre VPS e outros tipos de construção com se. A caracterização semântica proposta para as estruturas estudadas permite ainda levantar hipóteses sobre a distribuição observada nos textos. Como se apontou inicialmente, VPS praticamente inexiste nas notícias. Uma vez que a notícia busca criar uma impressão de realidade e de fidelidade aos fatos, é natural que a referência vaga, imprecisa, do Sujeito indeterminado seja inadequada e indesejável nesse tipo de texto. Por outro lado, assumindo-se a definição de Halliday para o significado do Sujeito como o responsável pela validade da proposição, pode-se explicar por que o Sujeito indeterminado é útil aos propósitos de textos argumentativos. A validade da proposição, no caso do

146 Sujeito indeterminado, não se acha ancorada em um elemento claramente definido. Isso permite ao autor jogar com diferentes matizes dessa validade, incluindo diferentes graus de comprometimento com aquilo que afirma. Por exemplo, diante de afirmações como presume-se que... ou espera-se que..., a negação, ou mesmo o questionamento da validade por parte do leitor ficam limitados, já que não há um elemento claro ao qual a predicação está sendo atribuída. Em VPA, tais efeitos não ocorrem. Ainda que o Agente seja omitido, o Sujeito é bem definido, o que fornece uma ancoragem nítida para a validade da proposição. VPA pode, por isso, ser empregada nas notícias sem criar a impressão de se estar faltando com a fidelidade aos fatos ou com a exatidão dos detalhes fidelidade e exatidão que são textualmente construídas, entre outras coisas, pela precisão das proposições e pelo apagamento da subjetividade do autor. O estudo realizado sugere, enfim, que a independência entre a estrutura temática (Tema + Rema), a estrutura de modo (Sujeito e Finito + Resíduo) e o sistema de transitividade (Processo e Participantes) multiplica o potencial semogênico da linguagem, uma vez que a escolha entre as combinações possíveis das diferentes funções estruturais é, ela mesma, produtora de significados. 9.3. Limitações As limitações mais graves do trabalho são de natureza quantitativa. Um conjunto mais amplo de ocorrências, da ordem de algumas centenas de cada tipo, forneceria uma base maior para as generalizações propostas. Além disso, análises quantitativas mais formais, com tratamento estatístico adequado, seriam úteis como complementação do estudo, ajudando a estabelecer certos pontos com maior segurança. Por exemplo, o fato de que VPS ocorre com freqüências muito diferentes em notícias, de um lado, e textos argumentativos, de outro, pareceu, desde o início, indicativo de uma singularidade semântica dessa estrutura em relação a VPA. No entanto, o trabalho realizado não chega a apresentar comprovação concreta de que tal fato não seria apenas uma particularidade incidental do conjunto de textos coletado. Deve-se ainda assinalar que tal conjunto de textos, além de pouco extenso, foi ainda restringido por ter sido coletado em um único jornal, o que obriga a relativizar a generalidade e o alcance das conclusões.

147 Essas limitações quantitativas se devem à opção por uma análise detalhada das ocorrências individuais em contexto, o que dificultou o manuseio de um número maior delas. Os aspectos quantitativos ficaram, desse modo, restritos a contagens manuais e cálculos simples de porcentagens. Mesmo assim, foi possível levantar alguns índices quantitativos relevantes. Além das restrições de caráter quantitativo, cabe observar que a ausência de uma tipologia textual precisamente definida também restringiu o alcance das análises, limitando o poder explicativo da proposta apresentada. Assim, não foi possível correlacionar de modo preciso os fatos observados acerca de VPA e VPS a propriedades específicas dos gêneros textuais. Incursões nesse terreno restringiram-se à sugestão de algumas hipóteses. Um ponto específico relevante, que não recebeu atenção na presente tese, são as formas oracionais marcadas, ou seja, com dissociação entre Sujeito e Tema, no caso de VPA, e entre Predicador e Tema, no caso de VPS. A caracterização semântica proposta refere-se apenas às formas não-marcadas, tomadas como realizações típicas em cada caso. Cumpriria saber em que medida as formas marcadas afastam-se de tais significados básicos, e que fatores seriam preponderantes na opção por VPA ou por VPS nesses casos. Desejável, ainda, para um estudo mais completo, teria sido a análise das ocorrências de VPA nos textos argumentativos e das ocorrências (ainda que raras) de VPS nas notícias. 9.4. Contribuições A contribuição teórica mais geral do presente trabalho é a exploração de possibilidades de abordagem do português em perspectiva sistêmico-funcional. Embora a obra de Halliday contenha uma concepção geral sólida e abrangente da natureza e do funcionamento da linguagem, seus detalhes são construídos, conforme o próprio autor faz questão de enfatizar, como uma gramática do inglês. Sendo assim, a transferência para o português de muitos de seus conceitos mais específicos não se faz sem problemas. A discussão dessas dificuldades, realizada principalmente no capítulo 3, contribui para a reflexão acerca do valor e do alcance das categorias do modelo em função das singularidades do português. No caso aqui examinado, o enfoque sistêmico-funcional permitiu levantar novos aspectos de uma questão que vem sendo, com freqüência, alvo do interesse

148 de estudiosos do português: o significado e a descrição da construção com o clítico se, e suas relações com a voz passiva. A contribuição teórica específica mais importante é a proposta de uma descrição semântica na forma de um sistema de parâmetros binários, que enfatiza a explicitação das semelhanças e das diferenças entre as estruturas, e não a classificação destas em categorias estanques. O sistema de parâmetros desenvolvido mostra-se adequado à representação das propriedades semânticas das estruturas que são objeto da presente tese VPA e VPS. Além disso, sua adequação se confirma pela possibilidade de abranger também VA e SI pl. Portanto, a contribuição se estende ao estudo das formas de definição/indefinição do Sujeito-Agente em português. A inclusão de outras formas, como o caso do Sujeito preenchido por alguém, na rede de opções possivelmente viria a demandar a ampliação do sistema de parâmetros. De todo modo, tal extensibilidade é um aspecto positivo da proposta apresentada. O trabalho abre também a possibilidade de respaldar teoricamente estudos sobre a distribuição e o funcionamento dessas estruturas gramaticais em textos. Em nível mais específico, isso constitui uma contribuição para o conhecimento dos registros em língua portuguesa e do discurso jornalístico brasileiro. Em nível mais geral, contribui para ampliar a compreensão sobre as relações entre gramática e discurso. Isso porque, por um lado, o significado do texto precisa ser analisado e explicitado em termos do significado dos elementos léxicogramaticais que o constituem; e, por outro lado, o potencial semântico das estruturas léxico-gramaticais só pode ser determinado a partir de sua funcionalidade em realizações concretas. No âmbito da aplicação prática, as conclusões obtidas fornecem embasamento para uma alteração da terminologia tradicional, numa contribuição para o ensino da língua materna. A gramática tradicional do português, apesar das inúmeras críticas de que tem sido objeto nos últimos anos, continua a ser a base do ensino da língua nos níveis fundamental e médio. Suas falhas, não há dúvida, são muito mais profundas que simples questões terminológicas, residindo na própria estrutura conceptual. No entanto, no que se refere ao assunto estudado, uma alteração da nomenclatura descritiva poderia ser de grande utilidade no sentido de simplificar a abordagem

149 pedagógica, e principalmente de aproximá-la mais da realidade lingüística da comunidade. O termo voz passiva deveria ser aplicado apenas à estrutura com verbo auxiliar ser (eventualmente, alguns outros equivalentes) e particípio do verbo principal. A designação sujeito indeterminado, por sua vez, abarcaria as construções sintáticas com verbo na terceira pessoa do singular e clítico se. Como se viu, o traço [ DS] é a marca que distingue VPS das demais alternativas sintáticas, inclusive acarretando o valor negativo dos parâmetros [+IA] e [+TO]. Ficariam, assim, incluídas, na designação sujeito indeterminado, tanto as construções com verbos transitivos diretos quanto aquelas com verbos transitivos indiretos ou intransitivos. Essa solução expressaria adequadamente as semelhanças formais e semânticas, hoje obscurecidas na abordagem tradicional ao se distinguir entre sujeito indeterminado e voz passiva sintética. A concordância verbal nas orações com verbos transitivos diretos poderia ser tratada como um caso de regras facultativas, entre outros que a gramática normativa registra. Seria reconhecida, dessa forma, a situação de mudança em curso nesse caso, o verbo pode permanecer invariável, na terceira pessoa do singular, conforme a tendência atual da língua, ou concordar em número com o sintagma nominal que o segue, conforme a tradição. À estranheza de uma tal concordância do verbo com o objeto direto, lembre-se que a gramática normativa reconhece casos de concordância verbal com o predicativo ou com certos adjuntos adnominais (como, por exemplo, em a maioria dos alunos tinham reclamações a fazer ). Ao contrário do que sugerem alguns, que se referem ao sentido de sujeito indeterminado como distinto do sentido de voz passiva, não há razões para supor que VPS tenha significados diferentes quando ocorre com ou sem concordância; mesmo porque, essas duas variantes só são identificáveis quando o SN com função de Objeto é plural. A construção com verbo na terceira pessoa do plural e Sujeito elíptico não deveria ser incluída na designação sujeito indeterminado, ao contrário do estado atual da gramática tradicional. Na realidade, não é necessário nenhum termo especial para designar essa estrutura, que sintaticamente é idêntica à elipse do Sujeito eles. O significado Agente não-identificado para essa construção pode ser abordado pedagogicamente de modo mais realista: como interpretação semântica possível da construção em função de fatores contextuais. Evita-se,

150 assim, o equívoco, recorrente na gramática tradicional, de atribuir a mesma análise formal a duas estruturas diferentes pelo fato de serem (em geral, apenas parcialmente) sinônimas. Essa alteração terminológica de fácil implementação ajudaria a conferir maior coerência à abordagem da língua nos níveis básicos de ensino. Mais importantes, porém, para a atividade pedagógica, são as questões levantadas acerca das relações entre as estruturas gramaticais e a organização dos textos. Conhecimento nessa área é fundamental na formulação de metodologias mais eficazes para o ensino da leitura e, principalmente, da escrita. Há tempos, a didática tradicional da língua materna vem sendo criticada por seu pressuposto implícito de que a habilidade de analisar orações e períodos leva naturalmente à habilidade de ler e produzir textos com eficiência. Reconhecida a falácia, torna-se indispensável encontrar meios de explicitar para os alunos os processos de organização do discurso, nos quais a funcionalidade das estruturas gramaticais tem papel central. Nesse contexto, estudos das relações entre gramática e discurso representam subsídios valiosos, tanto para a formação e aperfeiçoamento de professores, oferecendo-lhes alternativas à gramática tradicional, quanto para a elaboração de materiais didáticos com foco maior na funcionalidade que na forma dos elementos lingüísticos. 9.5. Pesquisas futuras A ampliação do estudo seria necessária para verificar se os significados e funções observados para VPA e VPS são os mesmos em outros gêneros de texto, inclusive na modalidade oral. A análise de VA, de SI pl e de orações com o Sujeito alguém, além de VPA e VPS, em um conjunto mais variado de textos permitiria avaliar melhor a adequação e, possivelmente, estender o alcance da proposta de descrição formulada. Caberia ainda verificar as relações entre VPS e outras estruturas com o clítico se, particularmente as de sentido espontâneo. Mais um desenvolvimento importante seria o estudo da correlação entre as estruturas gramaticais analisadas e os gêneros discursivos. Por um lado, interessaria averiguar possíveis relações entre a distribuição das construções gramaticais nos textos e a estrutura genérica destes. Por outro lado, o estabelecimento das variáveis da situação (campo, relações e modo) para os textos

151 em causa possibilitaria caracterizar as construções como marcas léxico- -gramaticais de registros particulares. Em síntese, tais desenvolvimentos representariam um desejável e necessário aprofundamento da investigação do português na perspectiva sistêmico-funcional.