Reflexões sobre a violência contra a criança Este trabalho parte de minha experiência como psicanalista em hospitais gerais e propõe pensar algumas questões a partir do atendimento de casos de violência contra criança. Relatarei brevemente estes atendimentos para articulá-los às questões que me suscitaram: primeiramente a posição que a criança muitas vezes ocupa de estar submetida ao gozo do Outro. Vale ressaltar que os atos de violência relatados no trabalho suspeita-se que foram inflingidos pelos pais, ou seja, por aqueles de quem menos se espera e dos quais só se espera amor, o que causa um verdadeiro horror na equipe médica que neste momento recorre à equipe de saúde mental. Isto nos conduz a uma segunda questão: desta vez, a posição que o psicanalista ocupa na instituição, como aquele que pode escutar o gozo do Outro e que, portanto, pode fazer alguma diferença em uma instituição médica. A reflexão sobre estas questões nos conduz inevitavelmente ao problema da ética, ressaltando o diferencial da psicanálise em relação ao campo da ética tradicional, seja ela platônica, aristotélica ou mesmo kantiana, uma vez que em todas elas há o postulado da existência do Bem supremo. Freud joga por terra tal postulado, quando em 1929, em O mal-estar na cultura, questiona o mandamento judaico-cristão de amar ao próximo como a si mesmo mostrando a estranheza de tal mandamento, a impossibilidade de cumprí-lo e mesmo o perigo de sua enunciação, dada a maldade do próximo. Passarei ao relato dos atendimentos: na primeira situação trata-se de uma menina de oito anos que chegou ao hospital desacordada. Enquanto os médicos tentavam salvá-la eu atendia sua mãe, pois a mesma gritava histericamente pelos corredores. Por histericamente quero dizer que havia um certo exagero mesmo para a situação, uma certa teatralidade. Ao longo do atendimento algumas informações íam sendo trazidas pelas
residentes: a menina chegou com o pescoço quebrado e sem calcinha. A equipe começou a suspeitar de violência. A versão da mãe era que a menina entrou embaixo da cama para pegar um lápis, encostou na tomada, levou um choque e ficou agarrada à tomada, o que os médicos achavam estranho e pediam que eu investigasse. A fala de uma das residentes quando eu disse que não era detetive me chamou a atenção: essa maluquice de matar criança é com você, disseram ainda que eu tinha mais jeito para fazê-la falar. Percebi que do mesmo modo como para mim beirava o insuportável ver aquele corpo de menina ali morta recebendo choques, a doutora não podia escutar uma mãe dizer que havia matado sua filha, isso cabia ao psicanalista, que, de fato, para poder trabalhar no hospital deve ser capaz de suportar a escuta do gozo, da pulsão de morte em suas várias facetas, seja ela no gozo do sintoma no corpo, no suicídio, na anorexia, na drogadicção, nos casos de violência. Não foi possível salvar a criança e a chegada do avô e do pai ao hospital foram marcantes. O primeiro, pai da mãe, entrou na sala dizendo: o que você fez com a minha neta?, o que praticamente confirmava a suspeita da equipe. Ele relatou que a mãe batia na menina freqüentemente e era negligente nos cuidados. Para mim ela apenas havia dito em seu discurso um tanto quanto confuso: eu quebrei tudo. O pai da menina comovia a todos com seu sofrimento, o que não acontecia com a mãe, mesmo com seus gritos. Em outro hospital alguns anos depois, um novo atendimento me remeteu a este primeiro: mais uma vez uma menina de dez anos de idade chega desacordada e não conseguem salvá-la. Aparentemente um acidente, queda da escada. A saúde mental foi chamada, pois a mãe estava desesperada. Noto na mãe o mesmo exagero e teatralidade da primeira situação relatada. Aos poucos a história foi se complicando, o tombo foi do segundo degrau apenas e a causa da morte não foi traumatismo, mas parada cardíaca. Encontraram um líquido cor-de-rosa na barriga da menina o que fez a mãe, por alguma
razão, levantar a hipótese da filha ter sido envenenada, mesmo estando sob os cuidados da avó. Além disso, os médicos não sabiam como dizer para a mãe que sua filha não era mais virgem, me pedindo para fazê-lo e desta vez comentavam a atitude do pai que não demonstrava nenhum sofrimento e apenas pediu para cortar um cachinho da menina. Como pode um pai chegar a matar o próprio filho? É o que todos se perguntam perplexos. A psicanálise pode oferecer uma resposta para isso? Por que o psicanalista é aquele que num hospital pode escutar e falar com os possíveis agressores e familiares? Será que estas situações não lhe causam horror também? É claro que sim, entretanto o psicanalista, para poder intervir, tem o dever ético de se posicionar de forma diferente da equipe médica que para se defender de suas próprias pulsões agressivas tem as mais diversas reações frente a estas situações: desde rechaçar completamente a família, reconhecer a impossibilidade de atendê-los ou até mesmo declarar a vontade de agredir os possíveis agressores. Digo dever ético, pois o problema passa pela diferença da ética na qual se sustentam a medicina e a psicanálise. As éticas tradicionais: platônica, aristotélica, estóica, entre outras, todas elas sustentam a idéia do Bem Supremo e o signo de sua existência é a sensação de bem estar vinculada a nossos atos, isto é fazer o bem traz felicidade, fazer o mal traz infelicidade, o homem sente-se bem fazendo o bem. Aristóteles na Ética a Nicômaco diz: Devemos tomar como signo de nossas disposições morais o prazer ou o sofrimento que se somam a nossos atos 1. Esta relação entra o Bem supremo e o bem-estar se deve à suposição que há na natureza uma inclinação para o bem. Aristóteles define o Bem na Ética a Nicômaco como aquilo para que tendemos em todas as circunstâncias 2. É no registro desta ética que se 1 Julien, P. O estranho gozo do próximo, ética e psicanálise, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro,1996, p. 26. 2 Idem, ibidem.
encontra a medicina - na crença do Bem supremo e em sua concordância com o bem-estar. Como afirma Philippe Julien há nisso um discurso que sustenta toda palavra educativa de ordem médica: [...] Presume-se uma feliz harmonia entre a dor sentida e o mal real, concordância esta que remete à ordem providencial desse.microcosmo que é o corpo humano 3. Entretanto, na tradição filosófica Kant apesar de manter a idéia do Bem supremo prepara o terreno para Freud, pois rompe, em certa medida, com a ética da antiguidade. Para Kant não há a relação direta entre virtude e felicidade como na ética aristotélica, o bem-estar não é um signo do bem. Além disso, nem o macrocosmo nem o microcosmo ditam o caminho a seguir para atingir o bem. A lei, para Kant, se impõe como tal não por seu valor benéfico, mas pelo ato mesmo da enunciação, por seu imperativo que é categórico e incondicional. Contudo foi o corte promovido pela ciência moderna que historicamente possibilitou a invenção freudiana. O sujeito da psicanálise é o sujeito moderno, o sujeito dividido de Descartes, um sujeito desprovido de atributos de valor. Como ressalta Philippe Julien a ciência moderna efetua a dissolução do Cosmo, concebido como uma hierarquia de valor, perfeição e harmonia, substituindo-o por um universo espacialmente infinito, idêntico em suas leis e qualitativamente indiferenciado. [...] Com Galileu, Descartes e Newton, todos os estados do mundo tornaram-se equivalentes, portanto não há por que buscar numa física, na natureza, qualquer referencial da ordem das causas finais ou de consideração do melhor para esclarecer e sustentar nosso ato ético 4. O que dirige então a ação humana? Como se dá a busca pela felicidade? Em 1929, ao falar sobre a felicidade, no Mal-estar na cultura, Freud mostra que o mal-estar não 3 Idem, ibidem 4 Idem, p.29.
provém da civilização pelos sacrifícios que esta exige, mas é intrínseco ao homem. É o princípio do prazer que determina o objetivo da vida, que rege desde a origem as operações do aparelho psíquico [...] e, no entanto, o universo inteiro tanto o macrocosmo quanto o microcosmo entra em desacordo com o seu projeto. Este é absolutamente inexeqüível; toda a ordem do universo opõe-se a ele; ficaríamos tentados a dizer que não fez parte do projeto da criação que o homem seja feliz 5. Essa desarmonia é inerente ao sexual que nos impele a buscar uma satisfação impossível. O inconsciente, fundado na sexualidade, introduz no centro da experiência humana uma falha e coloca no centro da questão ética o desejo e sua articulação com a Lei. O caminho pode ter sido aberto pela ciência moderna, por Kant e outros mas Freud deu um passo a mais. A distinção do princípio do prazer e do princípio da realidade como reguladores dos processos psíquicos tem um estatuto ético e ele ainda foi além, postulando um mais além do princípio do prazer, a pulsão de morte. No seminário sobre a ética Lacan retoma estas formulações freudianas para propor uma ética para a psicanálise cujo referencial seja o Real. Lacan trabalha a noção de Coisa, das Ding, a partir do Projeto para uma psicologia científica, onde Freud fala do Complexo do Nebenmensch, o complexo do próximo, que se decompõe em dois elementos, um dos quais se impõe por uma estrutura constante, mantém-se unido como coisa [das Ding], enquanto o outro pode ser compreendido por um trabalho de recordação, isto é, pode ser rastreado até uma informação proveniente do próprio corpo 6. Freud revela as duas faces deste próximo com o qual nos relacionamos ao fazer a distinção entre o outro como meu semelhante, com o qual me identifico e o Outro inominável, incomparável, estranho, e ao mesmo tempo tão íntimo, das Ding. 5 Freud, S. (1929) O mal-estar na cultura, Amorrortu editores, Buenos Aires, 2001, vol.xxi, p.76. 6 (1895) Projeto para uma psicologia científica, Amorrortu editores, Buenos Aires, 2001, vol.i, p.24.
Quando Freud, no Mal-estar na civilização questiona o mandamento cristão de amar ao próximo como a si mesmo, ele o faz a partir da dialetização destas duas faces do outro. O mandamento se sustenta pela vertente da identificação imaginária com o outro especular que reconheço como meu semelhante, que compreendo e suponho que me compreenda. Esta operação de identificação é necessária, pois é a base da construção do eu, é pela identificação com a imagem do outro, pelo valor cativante que ela tem para a criança, na medida em que fornece uma imagem unitária do corpo, que se forma a matriz simbólica na qual o eu se precipita 7. Portanto se muitas vezes há um recuo em agredir o outro é pela necessidade de manter essa imagem íntegra, pois é nela que se apóia a identificação que sustenta o eu. Lacan ressalta que a agressividade é característica das relações fundadas no imaginário: A agressividade é a tendência correlativa de um modo de identificação que nós chamamos narcísico e que determina a estrutura formal do eu do homem e do registro de entidades característico de seu mundo 8. Portanto, o mandamento de amar ao próximo como a si mesmo comporta essa agressividade característica da identificação imaginária. A formação do ideal do eu possibilita algum distanciamento na relação com o outro, dando um certo apaziguamento na questão da agressividade, embora se mantenha sempre um nível de tensão na vida moral. Contudo a agressividade não está vinculada apenas ao registro imaginário, mas ao real. Lacan mostra que a imagem é oca, furada, esburacada pelo real da Coisa. Ele retoma no complexo do Nebenmensch a outra face do próximo, o Outro fora do significado. No vazio da imagem, para além do plano da identificação, desponta algo que é da ordem da 7 Lacan, J. (1949) O estádio do espelho, in Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro,1966. 8 (1948) Agressividade em psicanálise, in Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro,1966, p.110.
crueldade. Este Outro do qual não há referencial, me aparece sob o signo do capricho, do arbítrio, do sem crença nem moral que me possa dar alguma garantia. [...]Aí, não há referencial, não há garantia quanto ao que o Outro quer de mim, quanto a seu bem-querer ou seu mal-querer. Nesse ponto, freudianamente falando, o sujeito depara com o enigma do gozo do Outro não do prazer, que é apenas a evitação do desprazer, segundo a lei do bem, mas daquilo que Freud denomina de mais além do princípio do prazer, ou seja, em bom português, o gozo 9. O que o Outro quer de mim? Como me situar para responder a isso se do Outro não há referencial nem garantias? O gozo do Outro, na medida em que ele está mais além do plano da moral, pode implicar algo que é totalmente o avesso do meu bem, isto é, meu mal e vice-versa. A questão se desloca do amor ao próximo ao gozo do Outro: Talvez esteja aqui o sentido do amor ao próximo, seu gozo nocivo, seu gozo maligno, é ele que se propõe como verdadeiro problema para o meu amor 10. Nem sempre o que recebemos do outro é seu amor, nem quando este outro é o mais próximo de nós, pois o gozo habita a todos, até mesmo as mães e os pais ou seria melhor dizer: principalmente as mães e os pais que são a metáfora do primeiro Outro para a criança? Esta relação pais e filhos é totalmente impregnada pelo imaginário, pelo narcisismo, e portanto permeada pela agressividade, exigindo grandes recursos simbólicos daqueles que se aventuram nela. E quando o espelho se parte? Quando a Lei fracassa e a barreira do bem cai por terra? Seria esta a razão de tantas vezes, como agora estamos assistindo divulgado pela mídia, pais matarem seus filhos e vice- versa? 9 Julien, P. O estranho gozo do próximo, ética e psicanálise, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro,1996, p. 43. 10 Lacan, J. O seminário, livro 7, A ética da psicanálise, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro,1959-60, p. 229.
É na vertente real do próximo que Lacan situa a indagação freudiana sobre o mandamento cristão do amor ao próximo, na medida em que Freud introduz uma falha no campo da identificação e que a lei do bem extrai sua força da identificação com o outro que é meu semelhante, e revela sua fragilidade no ponto mesmo em que essa identificação fracassa, com a revelação do gozo do Outro 11. Se a lei do bem fracassa em fazer barreira ao gozo do Outro, que lei poderá dar limite a este gozo? Talvez este trecho do seminário sobre a ética nos dê alguma pista: Podemos nos fundamentar nisto, que cada vez que Freud se detém horrorizado, diante da conseqüência do mandamento do amor ao próximo, o que surge é a presença dessa maldade profunda que habita no próximo. Mas, daí, ela habita também em mim. E o que me é mais próximo do que esse âmago em mim mesmo que é o de meu gozo, do que não me ouso aproximar? Pois assim que me aproximo é esse o sentido do Mal-estar na civilização surge essa insondável agressividade diante da qual eu recuo, que retorno contra mim, e que vem, no lugar mesmo da Lei esvanecida, dar seu peso ao que me impede de transpor uma certa fronteira no limite da Coisa 12. É a Lei, Lei simbólica, a Lei da castração que faz a fronteira, o limite da Coisa. Infelizmente esta, por vezes, também falha e não pode ser transmitida por um mandamento ou por livros de psicanálise, sua transmissão é pelo significante, o do nome-do-pai e depende do assentimento de cada um. Philippe Julien, em O estranho gozo do próximo, coloca a questão: Como, pois encontrar o próximo? O único caminho é fazer-se suficientemente próximo de seu próprio 11 Julien, P. O estranho gozo do próximo, ética e psicanálise, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro,1996, p. 47. 12 Lacan, J. O seminário, livro 7, A ética da psicanálise, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro,1959-60, p. 227.
gozo, mediante o assentimento nesse vazio central em seu cerne, que é justamente aquele do lugar do gozo do Outro, na medida em esse lugar é o real da Coisa (das Ding), fora do significado. Freud chama-o de uverdrängt (o recalque originário e irredutível): falta um significante, aquele que permitiria saber do gozo do Outro. É esse assentimento na mesmice desse vazio que compete gerar, de modo a que se responda a questão: como estar tão perto de sua própria maldade que nela se depare com seu próximo? 13. Não se trata de uma possível identificação aos agressores, mas tornarmo-nos próximos do que nos é mais estranho e mais íntimo, nosso gozo, aproximarmo-nos deste vazio que nos habita, uma vez que o movimento de exclusão desse Outro, desse estranho, é uma exclusão íntima, exclusão interna, extimidade. Philippe Julien propõe como saída para o impasse da relação com o próximo, em primeiro lugar fazer o luto do Bem, ou seja, o caminho não seria minimizar a maldade do Outro, para reencontrar uma possível bondade. O móbil é outro: enfrentar o mais de perto possível a desumanidade do Outro, sem se refugiar no próprio despeito, e sem tampouco contentar-se com a queixa e a indagação na denúncia infindável do escândalo 14. Além disso é preciso reconhecer a Lei. O Outro é o mediador, o agente da lei que é valida e igual para todos. Esse reconhecimento da Lei opera um deslocamento da questão: o que ele quer de mim? para: o que ele quer?, tornando impessoal essa relação com o Outro, que na verdade trata-se da relação com a Lei. A psicanálise é convocada, também nas instituições médicas, a responder sobre os caminhos do reencontro possível com o próximo. Reconhecer a extimidade do Outro é fundamental para o trabalho do analista no cotidiano de um hospital e de tantos outros 13 Julien, P. O estranho gozo do próximo, ética e psicanálise, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro,1996, p.47. 14 Idem, p.108.
serviços onde nos deparamos tão de perto com a violência, pois apenas deste modo é possível suportar ouvir os sujeitos, inclusive em situações menos extremas onde alguma intervenção sobre o gozo ainda é possível. Este certamente é um desafio ao analista diante de situações tão graves quanto crianças agredidas, violentadas, até mesmo mortas por seus próprios pais, no dia-a-dia de um hospital, desafio impossível sem o recurso de sua análise pessoal.