A PROPAGANDA DOS SEGUIDORES DE GETÚLIO: aspectos da participação política na campanha presidencial de 1950



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Transcrição:

A PROPAGANDA DOS SEGUIDORES DE GETÚLIO: aspectos da participação política na campanha presidencial de 1950 JEFFERSON JOSÉ QUELER (doutor em História pela UNICAMP, e-mail: jeffqueler@hotmail.com) Getúlio encherga longe, E prevê os acontecimentos, Por isto queremos ele, A todo e qualquer momento. Isto escréve um operário, Seu fan e adimirador Que lhe quer como Prezidente, E não como Senador. O Autor, W. B. B. Para ser publicado no O Radical. (Arquivo pessoal Getúlio Vargas, CPDOC FGV GV ce 50. 08/ 09. 00/ 53) A propaganda política, em geral, tem surgido nos debates públicos no Brasil com um sentido marcadamente negativo, com o significado de obscurecimento da verdade ou de manipulação. De forma semelhante, a historiografia tem se empenhado em destacar os efeitos de uma publicidade via meios de comunicação de massa na fragilização das instituições democráticas em nosso país. Em ambos os casos, os anos em que Getúlio Vargas esteve na Presidência da República são apontados como um momento em que tal recurso foi intensamente empregado, figurando como um dos fatores que colocaram sérios obstáculos ao desenvolvimento da cidadania. Penso que esse tipo de abordagem tem contribuído muito para o estudo da história do Brasil republicano, mas gostaria de levantar um contraponto a ele, ao indicar um tipo de propaganda política espontânea levada a cabo por simpatizantes de Vargas entre meados da década de 1940 e início da de 1950, seja por meio de versos, músicas ou manuscritos entregues de mão em mão: práticas que podem ter contribuído para a conformação de uma peculiar esfera pública naquele momento. *** Em se tratando de propaganda política na história do Brasil República, diversos foram os trabalhos que chamaram a atenção, cada um a seu modo, para o seu papel na conformação de uma cultura política autoritária no país (GARCIA, 1982; GOULART, 1990; CAPELATO, 1998). Em especial, essas análises elegeram o Estado Novo como

objeto privilegiado de estudo, momento em que uma máquina publicitária análoga àquelas de regimes fascistas europeus foi implantada: o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) interviu na imprensa, no rádio, no cinema, entre outras esferas político-culturais da sociedade brasileira, de modo a disseminar imagens positivas do governo Vargas e do regime ditatorial por ele encabeçado durante aquele período Nessa tendência de pensamento, o trabalho de Maria Helena Capelato é particularmente importante para a nossa reflexão por duas razões: primeiro, por indicar como a cultura política autoritária brasileira não foi simplesmente absorvida através das cartilhas do Estado Novo ou das produções do DIP, na medida em que diz respeito a um traço de longa duração em nossa sociedade, perpassada de alto a baixo por ela; segundo, por admitir que tanto esta característica quanto a máquina publicitária governamental não eram imunes a desvios ou resistências de indivíduos e grupos sociais (idem, p. 31-32 e 184). Tais considerações abrem-nos caminhos para analisar as conjunturas tanto do Estado Novo quanto da subsequente redemocratização do país, de maneira a problematizar posições presentes no debate político daquele momento que, de certa forma, foram endossadas pela historiografia. Veja-se, por exemplo, o que o Brigadeiro Eduardo Gomes, candidato à Presidência em 1945, afirmava no calor dos acontecimentos em seus discursos (1946, p. 61-62). Em Salvador-BA, em 25 de agosto de 1945, declarou que a ditadura anterior fora decisiva na desvalorização do homem brasileiro : anulou seus direitos, dificultou sua subsistência pela alta generalizada dos preços, negligenciou-lhe condições mínimas de higiene e assistência sanitária; fatores que teriam colocado as pessoas atingidas por eles em condição de dependência em relação à máquina oficial. Sem contar que dois terços da população permanecia analfabeta, o que prejudicava o desenvolvimento econômico e cultural do país, bem como criava uma situação em que as grandes massas se alheiam dos assuntos gerais por não poderem acompanhar os debates esclarecedores. De forma semelhante, diante do grande número de manifestações pelo país clamando pela participação de Vargas na Assembleia Constituinte ou por sua candidatura presidencial - no que ficou conhecido como queremismo -, liberais alinhados ao Brigadeiro alegavam que os supostos efeitos manipuladores da propaganda empregada em anos anteriores persistiam (FERREIRA, 2005, p. 29). Nas palavras de Raul Pilla, o povo brasileiro deveria aparecer aos olhos do estrangeiro:

não só um povo de escravos, mas um povo que da escravidão se compraz (...) Vivemos mais de um decênio sob ditadura integral (...) e, aberto o ensejo para a democratização e a conseqüente liberdade, o que se vê é (...) um movimento para perpetuar o ditador. (O Jornal, 04. 09. 45 apud: CABRAL, 1984, p. 201) Evidentemente, como é comum na luta política, Pilla não levava em conta, ou não expressava publicamente, as percepções dos trabalhadores frente às realizações do governo Vargas, especialmente ganhos materiais e simbólicos vislumbrados na legislação trabalhista (FERREIRA, 2005, P. 29). Nesse sentido, é muito significativo o caso de Alcebíades V. Tôrres, operário da fábrica Cerâmica Brasileira e liderança de comitê queremista, que interligava 600 empregados dessa empresa e os moradores dos morros da Mangueira e do Jacarezinho. Em situação em que questionou a legislação que impedia a candidatura de Vargas, ele opinou: Se isso é crime (...) não existe mais mentira do que a democracia! Se estamos no caminho de liberdades populares, como se apregoa, por que evitar que o povo escolha e eleja aquele que é o chefe da pobreza, o amigo dos humildes que nos garantiu e só é atacado pelos que estão furtando o povo e lucrando de barriga cheia? (O Radical, 15. 08. 45 apud: idem, p. 40) O que Tôrres demanda é a adequação de Vargas à frente de um regime liberaldemocrático, na condição de fiador de benefícios percebidos como conquistados. Ao que parece, os direitos sociais estabelecidos havia pouco foram conjugados a demandas por direitos políticos. É o que também pode ser sugerido a partir da fala de Jayme Boa Vista, outra liderança queremista, em ocasião em que vinha do Rio Grande do Sul para o Rio de Janeiro fundar um diretório pró-candidatura Vargas, em julho de 1945: todos os que (...) têm contato com o grande público, com a massa de empregados e dos operários, com os elementos dos comércio honesto e fora dos trustes e do lucro extraordinário, todos sabem que o nome do Sr. Getúlio Vargas é uma garantia de equilíbrio e de realização efetiva dos interesses populares (...) candidatura natural e querida do povo, que teve no próprio povo seu órgão de propaganda. (O Globo, 30. 07. 57 apud: CABRAL, 1984, p. 103, grifos meus) Eis um possível contraponto à ideia de que as manifestações em prol de Vargas naquela conjuntura, fossem meramente movidas pelos efeitos da propaganda política organizada pelo DIP: os próprios simpatizantes do então presidente parecem ter feito propaganda voluntária em nome dele. E tal afirmação, a meu ver, não era simples figura

de retórica, dado que abundam os exemplos de que práticas como essa efetivamente ocorriam. Veja-se o folheto de cordel tratando da figura de Vargas com a assinatura de Rodolfo, em meio a composições do gênero reunidas pelo escritor Orígenes Lessa, em que são elencadas razões para o nós queremos (1973, p. 110): Para que a nossa Pátria Pela mão dos estrangeiros Não seja ludibriada (...) E a nossa Democracia Venha com mais garantia (...) Para abaixar os alugueis E a carne de dez mil reis (...) Para que o agricultor Seja também amparado... (...) P ra acabar com a bandalheira Destes tipos coroneis Que põe a mão na algibeira E mandam o trabalhador Fazer força meu leitor Pagando qualquer besteira (...) Ao que tudo indica, esse versos circularam entre outras pessoas e desempenharam determinado papel em propagar um significado positivo acerca da figura de Vargas. Neles, há indícios de que aspirações e interesses de trabalhadores rurais são veiculados, sejam eles materiais ou garantias contra abusos de seus empregadores. Não se trata de um pedido velado para a extensão da legislação trabalhista ao campo, a qual regulava até então, preferencialmente, as relações entre patrões e empregados nas indústrias e nas cidades? De qualquer forma, Vargas é associado a uma intervenção mais forte do Estado na sociedade, seja para protegê-la de intervenções estrangeiras, seja para coibir arbitrariedades praticadas pelas elites contra as camadas sociais mais desamparadas, seja para melhorar o padrão de vida destas últimas. Esse parece ser o sentido de Democracia com mais garantia. Na campanha presidencial de 1950, um tipo de publicidade semelhante também teve considerável circulação. Em panfleto pró-vargas intitulado Oração dos Getulistas, em uso irreverente de uma fórmula religiosa, há logo no início do texto a advertência de que estavam sendo espalhados em todos os Estados do Brasil, um escrito do qual se pede que sejam tirada contra copias para mandar aos cinco amigos mais patriotas (GV ce 50. 08/ 09. 00/ 53, p. 17). Na sequência, uma paródia de oração: Creio em Getúlio Vargas, todo poderoso, criador das leis trabalhistas. Creio no Rio Grande do Sul e no seu filho, nosso patrono, qual foi concebido pela

revolução de 1930. Nasceu de uma Santa Mãe, investiu sobre o poder de Washington Luiz; foi condecorado com o emblema da República, desceu ao Rio, no terceiro dia homenageou aos mortos, subiu ao Catete e esta sentado em São Borja donde há de vir julgar o general Dutra e seus Ministros (...) Amem O foco desta composição recai claramente na personalização de Vargas enquanto criador da legislação trabalhista. Evidentemente, essa perspectiva não considera a participação de grupos sociais na elaboração de tal conjunto de leis, o que é perfeitamente compreensível em se tratando de um texto voltado para a luta política imediata, com o claro propósito de mobilizar seus eventuais leitores. Apelos como esse encontraram ressonância na sociedade, poderíamos nos perguntar? Sim, a julgar pela existência de outras versões do Credo para promover Vargas. Em outro caso, o Creio em Getulio Vargas é seguido por qualificativos distintos daqueles do exemplo anterior, ao tratar o líder como o maior dos estadistas americanos, creador das leis Trabalhistas e da grandeza da Pátria (GV ce 50. 08/09. 00/ 53, p. 28). Outra diferença surge ao se afirmar que ele está exilado em São Borja de onde há de vir a julgar o imperialismo estrangeiro e seus cumplices. Dessa forma, chamados para a produção de cópias, ou versões, de propagandas como a anterior parecem ter sido atendidos. Cabe ressaltar que diferenças podem ser observadas nos casos analisados, tanto na adjetivação quanto na introdução de elementos novos, como a declarada intenção de Vargas de defender o país de excessivas interferências estrangeiras. Dessa forma, esses narradores anônimos parecem não se incomodar em imprimir em suas narrativas as suas marcas, como a mão do oleiro na argila do vaso, segundo célebre analogia de Walter Benjamin (1994, p. 205); algo distinto dos padrões de credibilidade assumidos pelas notícias dos jornais, em que se almeja atingir uma suposta impessoalidade. Outro folheto que parece ter sido disseminado voluntariamente refere-se a uma lista de razões para se votar em Vargas, abrangendo desde suas realizações no governo quanto perspectivas para sua recondução à Presidência (GV ce 50. 08/09. 00/ 53, p. 45). Na parte inferior do documento, há a indicação de que ele foi impresso na Tipografia Marly, em Campo Belo-MG, bem como uma conclamação em nota: Todo Patriota deverá tirar 500 copias desta na Tipografia de sua cidade e distribuir aos seus amigos. Uma folheto semelhante a este último também parece ter sido impresso em Minas Gerais, desta vez no município de Manhumirim (GV ce 50. 08/09. 00/ 53, p. 53). Na

parte inferior esquerda do documento, há a menção de que o folheto era Distribuído pelos amigos de Getulio Vargas no município, sendo eles Boaventura Josino da Cruz, Othon M. Chaves, Manoel de Aguiar Drumend, José M. Vaz, Oldrado Andrade, João Rabelo, Arcebino Breder e Gumercindo Heringer. Além de o folheto elencar quarenta razões para se votar em Vargas, diferente das trinta e sete do caso anterior, incorpora ainda reportagem que teria sido publicada no jornal O Radical em 1 de junho de 1949. Nela, destaca-se que os cancionerios populares Baianos percorrem as ruas de todas as cidades do Estado cantando a boa nova da volta do velho e querido amigo, defensor dos humildes de todo o país. E exemplos de versos são apresentados, com críticas à situação política vigente e a esperança de que Vargas voltasse à Presidência: Quero ver ele não voltar Já basta de caristia Já basta de se aumentar Já basta de cumilões Já basta de esperar Já basta de estripulia Valha-me a Virgem Maria Se GETULIO não voltar. Trata-se, pois, de um exemplo muito interessante de como a propaganda política voluntária feita por simpatizantes de Vargas em nome dele era disseminada. Novamente, é possível perceber como o material empregado nessa atividade era constantemente reelaborado e sofria acréscimos e alterações. E podemos dar crédito a essa reprodução de matéria do jornal O Radical, uma vez que entre os documentos analisados surgem versos de Salvador-BA, datados de novembro de 1949 e assinados por Zé da Bahia, o qual assevera que Êstes versos estão sendo distribuídos aqui, profusamente (GV ce 50. 08/09. 00/ 53, p. 66). Nas duas últimas estrofes, lemos o seguinte: Chegam anos, passam anos, Aumentando os desenganos Das massas desalentadas... Milagres de sofrimentos, Revoltas de pensamentos, Sois esperanças doiradas! Findou-se 49, E o povo não se demove Dêste seu querer viril: Quer por que quer o Getúlio, Com barulho, ou sem barulho, P ra governar o Brasil!

Uma espécie de publicidade que era, em geral, ritmada e cantada, como na canção popular-política cuja letra e música são assinadas por Freire Júnior (GV ce 50.08/09. 00/ 53, p. 32): QUE COISA LOUCA! Stá na hora, minha gente! De pensar no Presidente! Um nortista, um sulista... Isso é indiferente... Todos trazem seu cartucho Muita papa e pouca roupa Mas cuidado com o gaúcho Que o gaúcho não é sopa. Ele voltará! Ele voltará! É o que se ouve de boca em boca. Ele voltará! Ele voltará! Se isso acontecer... Que coisa louca! Que coisa louca! Que coisa louca! Que coisa louca! Além de ter enviado a partitura da música junto com a letra, o compositor encerra com o indefectível convite para que ela fosse por outrem reproduzida: Procure o piano mais próximo, toque e cante!. Teriam outras pessoas tocado e cantado essa canção? Em outro folheto, intitulado Padre Nosso Getulista, os versos são mesclados a demandas políticas. O protetor nosso que está em São Borja é chamado a garantir os direitos nossos de cada dia e para que não nos deixeis cair no comunismo, mas livrainos do capitalismo (GV ce 50.08/09. 00/ 53, p. 37). Em defesa da vitória trabalhista, o autor parece associar a figura de Vargas a princípios programáticos: Trabalhadores se lembrem do nosso Brasil antigo antes de Getulio Vargas (...) Trabalhador aquele tempo eram antes sem valia trabalhava como escravo sem nenhuma garantia (...) O Getulio fez justiça acabou com o banditismo amparar os trabalhadores pôs freio ao capitalismo deu exemplos de justiça

e provas de socialismo Ele implantou no paiz o regime e a disciplina criou as leis trabalhistas foi inspiração divina (...) Essas menções a frear o capitalismo e dar provas de socialismo não estariam relacionadas a diretrizes políticas de Vargas afinadas com experiências norteamericanas e europeias, em que elementos semelhantes àqueles preconizados pelo socialismo, como o planejamento e um certo redistributivismo, eram utilizados para se reformar o capitalismo, mais precisamente, na estruturação do Estado de Bem-Estar Social? É importante assinalar ainda que o autor dos versos coloca seu nome e endereço nas linhas finais do texto, identificando-se como Francisco Alves do Nascimento, de Paranavaí-PR, com o que conclama seus leitores a discutirem diretamente com ele suas ideias, bem como a distribuírem cópias de suas rimas entre amigos e vizinhos. O curioso é que o folheto vem com a assinatura de José Izidoro Leão e Joaquim Patrocínio Leão, da Estrada de Ferro Paulista em Tupã-SP, os quais se apresentam como copiadores e distribuidores dos folhetos Getulista : sinal de que o apelo do autor para que seus leitores fizessem propaganda voluntária em nome de Vargas foi bem-sucedido. Essa possível circulação de ideias e experiências políticas entre Brasil, Europa e Estados Unidos era negada em folheto da própria propaganda política pró-vargas: Não queremos regimens importados de alem-mares, queremos as tuas leis e teu amparo, as tuas idéias são nossas, são de acordo com o nosso clima, com o nosso modo de pensar, somos todos CRISTÃOS e DEMOCRATAS (GV ce 50.08/09. 00/ 53, p. 43). Mesmo assim, é possível entrever a presença da chamada Doutrina Social da Igreja nessas demandas, em que se clama por um capitalismo mais humano e pelo impedimento da luta de classes: Precisamos de uma transformação geral, a lavoura está em ruína, os campos abandonados, nada mais se vê, a não ser fome e miséria por toda a parte, somos brasileiros e humanos, temos também o direito de viver (...) Combatemos os fomentadores de greves, evitando a desgraça e a ruína dos nossos lares, com o pensamento fito na nossa Bandeira: Ordem e Progresso Não se trata de algo semelhante ao que propunha o catolicismo social em voga no continente europeu? De qualquer forma, é importante sublinhar que tal conjunto de princípios e práticas foi empregado na formulação do programa do Partido Trabalhista

Brasileiro (PTB), legenda pela qual Vargas se apresentava como candidato (NEVES, 2001, 167-205). *** Conclusão: Conforme pudemos notar, há muitas evidências de que a propaganda política produzida na conjuntura da redemocratização do Brasil, especialmente em 1950, não provinha apenas dos meios de comunicação de massa, dos partidos ou de empresas. Havia também uma espécie de publicidade subterrânea, que circulava de boca em boca, de mão em mão, seja na forma de músicas, de versos de cordel ou de panfletos que eram copiados e redistribuídos voluntariamente por simpatizantes da candidatura de Vargas, com a intenção de elegê-lo presidente. Tais composições eram utilizadas para exaltar as características pessoais dele enquanto líder, ou para destacar o que seriam as vantagens de se votar nele, o que abrangia tanto interesses pessoais quanto programas políticos. Em suma, esse tipo de propaganda parece ter contribuído para a dignificação da política como a melhor forma de resolver os problemas presentes na sociedade brasileira naquele momento. *** Bibliografia: BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994. CABRAL, Elza Borghi de Almeida. O queremismo na redemocratização de 1945. Niterói: UFF, 1984 (dissertação de mestrado). CAPELATO, Maria Helena. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no peronismo. Campinas: Papirus, 1998. FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular (1945-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. GARCIA, Nelson Jahr. O Estado Novo: Ideologia e Propaganda Política: a legitimação do Estado autoritário perante as classes subalternas. São Paulo: Edições Loyola, 1982.

GOMES, Major-Brigadeiro Eduardo. Campanha de Libertação. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1946. GOULART, Silvana. Sob a verdade oficial: ideologia, propaganda e censura no Estado Novo. São Paulo: Marco Zero, 1990. LESSA, Orígenes. Getúlio Vargas na literatura de cordel. Rio de Janeiro: Documentário, 1973. NEVES, Lucília de Almeida. Trabalhismo e desenvolvimentismo: um projeto para o Brasil (1945-1964) in: FERREIRA, Jorge (org.) O populismo e sua história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.