SOBRE CRIMES, MULHERES FATAIS E INVESTIGADORES: do romance noir ao filme neo-noir, um longo percurso



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volume 2 (2009) - ISSN 2175-3687 DIÁLOGO E INTERAÇÃO SOBRE CRIMES, MULHERES FATAIS E INVESTIGADORES: do romance noir ao filme neo-noir, um longo percurso Profa. Dra.Marilu Martens Oliveira (UTFPR) RESUMO: Busco mostrar as convenções narrativas e estilísticas do noir, focando o cinema noir americano, que teve seu apogeu entre os anos 40 e meados dos anos 50, do século XX. Herdeiro distante do folhetim e próximo do neo-realismo italiano, do realismo poético francês e do surrealismo alemão, além das narrativas pulps, o noir evoluirá, agradando ainda hoje, sob diferentes roupagens (neo-noir), a diferentes plateias. Essa estética resultou das condições sociais, históricas e culturais da América de então, retratada nas narrativas de gângster dos anos 30, frutos de uma América desiludida e amargurada, após o crash da Bolsa, em 1929, do aumento da criminalidade urbana e da Lei Seca. PALAVRAS-CHAVE: Romance noir. Filme noir. O neo-noir. ABSTRACT: It is intended here to show the noir stylistic and narrative conventions, focusing on American film noir, which had its heyday during the 40s and mid-50s, twentieth century. Distant heir of the feuilleton and close to the Italian neo-realism, the French poetic realism and German surrealism, in addition to pulps narratives, the noir evolves, pleasing, even today, under different guises (neo-noir), to different audiences. Such aesthetic is resulted from social, historical and cultural aspects of America of that time, portrayed in the narratives of gangster on the 30s, originated from a bitter and disillusioned America, after the stock market crash in 1929, the rising urban crime and the Prohibition. KEYWORDS: noir novel. Noir film. The neo-noir. 1. A TÍTULO DE INTRODUÇÃO O cinema, "que é a arte do tempo e do movimento", procura exprimir o "imponderável" (VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 1994: 32). Assim, aquilo que se sente, aquilo que se imagina, aquilo que existiu ou existe pode ser mostrado pelo cinema, que trabalha com o real e a fantasia, com a imaginação e a criatividade, com a estética e a técnica. Tudo está concretizado no filme, que é o resultado de um processo complexo, e pode ser conceituado como um objeto (o filme em si), como a proposta textual que esse objeto expõe ao espectador e ainda como o resultado da apropriação e interpretação por parte do público, ou seja, de quem o assiste. Ele é lido como um texto e Umberto Eco, referindo-se ao texto, chama-o de máquina pressuposicional: há uma intenção. Desta forma, os modos de construção da mensagem devem ser descobertos, para que haja seu aproveitamento empírico. Logo, há uma linguagem cinematográfica, ou seja, um sistema simbólico de produção/reprodução de significações acerca do mundo. [...] o filme, como um texto falado/escrito, é visto/lido como um texto/fala que à primeira letra/som sucedem-se outros, formando palavras que se sucedem em frases, parágrafos, períodos, até lermos/ouvirmos a última letra/som e termos o texto/fala completo, o primeiro quadro, os seguintes, as cenas, as seqüências, o filme completo. O significado de um texto/filme é o todo, amálgama desse conjunto de pequenas partes (ALMEIDA, 1994: 28-29).

A linguagem é composta por articulações sintáticas de signos representadores da realidade, e também o filme mostrará imagens-signos que não são encarados como tal, pela grande maioria das pessoas, mas como realidade. Para Lúcia Santaella (1988: 95), o cinema, através da máquina, produz a linguagem da imagem: signos híbridos. Focando tais signos, para uma melhor compreensão da estética do noir, farei breve retrospecto de suas origens, visto que tudo começou com o folhetim (MEYER, 1996), essa literatura de massa evoluindo para o romance de enigma (narrativa policial de detetive). O crime então será mostrado em tom maior, e surgirão novos leitores para as revistas pulps. Essas narrativas serão sucesso não só na América, e darão origem ao filme noir; que andará abraçado às mesmas, ao cinema expressionista alemão e aos filmes de gângster dos anos 30 (século XX), originários da grande desilusão americana provocada pela Depressão econômica (ARBEX JR., 1995). Surge, dessa forma, uma nova estética presente nos filmes B hollywoodianos (em especial nos filmes policiais) e, posteriormente, em alguns melodramas classe A. Os tempos são outros, porém com nova roupagem volta o filme noir. É o novo noir (neo-noir), e com ele filmes americanos (muitos calcados em romances e até em Histórias em Quadrinhos - HQ) como Los Angeles cidade proibida/los Angeles Confidential (LA), 1997, um dos mais representativos dessa safra; Chinatown/Chinatown (CHI), EUA, 1974, já um clássico; Dália Negra/The Black Dhalia (DN), 2006, instigante, sobre um crime real; O diabo veste azul/devil in a blue dress (DVA), 1995, que aponta o desajuste de veteranos da guerra, na Los Angeles de 1948; e Corpos ardentes/body Heat (CA), 1981, inteligente e sensual. E é essa permanência da estética que justifica e motiva a opção pelo tema. A observar que todas as narrativas se passam na cidade de Los Angeles, com exceção de CA, que acontece em uma pequena cidade da Flórida. 2. E TUDO COMEÇA COM O FOLHETIM No início do século XIX, no jornal, havia um espaço geralmente no rodapé da primeira página, destinado ao entretenimento: receitas de cozinha, anedotas, comentários sobre fatos variados como crimes, apresentações circenses e teatrais chamado de feuilleton (folhetim), varietés ou ainda mélanges. Um romance picaresco, Lazarillo de Tormes (de autor anônimo), é publicado nesse espaço, em fragmentos, e logo surgem as primeiras narrativas escritas especificamente para tal espaço: o romance folhetim (feuilleton tout court). Eugène Sue, Alexandre Dumas, Ponson du Terrail são considerados os "pais" do gênero e logo serão seguidos por escritores expressivos como Charles Dickens, José de Alencar e Machado de Assis. Marlyse Meyer (1996: 60), em sua obra Folhetim: uma história, aponta as características essenciais a tal tipo de narrativa: "mergulha o leitor in media res, diálogos vivos, personagens tipificados e tem senso de corte de capítulo". Poderia acrescentar, ainda: aventuras de um herói, surpreendentes reviravoltas, situações inesperadas: bem X mal, manutenção do suspense, provocando a curiosidade/interesse do leitor. A ensaísta informa, também, que o folhetim está ligado ao "seu irmão siamês" o melodrama, gênero teatral popular, pontuado pelo excesso verbal e gestual dos sentimentos e pela música. Surge o herói rocambolesco (de Rocambole, personagem criado por Terrail), dono de grande inteligência, calculista, frio, que usa recursos

variados, inclusive o crime e a sedução, para alcançar seu objetivo: dinheiro. Duas são as palavras-chave dessas narrativas curiosidade e entretenimento que irão incrementar a vendagem dos jornais e que serão chamadas de "literatura mercantil" e "narcótico popular" por Gramsci, "literatura industrial" por Saint-Beuve, e que levarão Walter Benjamin a falar do "caráter de mercadoria" da obra de arte. Se a literatura se torna mercadoria a ser vendida, deve agradar, ou melhor, conquistar o grande público. Esta é, para Muniz Sodré (1985:10), a causa de se recorrer ao universo mítico (contém os grandes arquétipos), que sempre foi eficaz, seduzindo as pessoas durante séculos. O bom e o mau, a santa e a pecadora, a luta entre os fortes e os fracos, o amor, o heroísmo, sempre fascinaram; que o digam as epopeias antigas, as canções de gesta, os romances corteses. Essa temática, que tem um público consumidor garantido, além de mostrar "um certo ethos nacional" (SODRÉ, 1985:79), é retomada pela moderna indústria cultural: cinema, teatro, rádio, televisão, revistas, romances best-sellers. Percebe-se, assim, que há uma maior preocupação, nesse tipo de produção cultural, com os conteúdos fabulativos do que com a reflexão sobre o fazer linguístico, sobre a técnica romanesca. O que o público quer está embutido naquilo que Baudrillard chama de fun-morality: "o imperativo de se divertir, de explorar a fundo todas as possibilidades de vibrar, gozar ou gratificar-se" (apud SODRÉ, 1985:16). Esse é o público cuja alfabetização foi meramente instrumental ou que, mesmo razoavelmente alfabetizado, não teve sua sensibilidade despertada por leituras constantes e acesso a obras artísticas mais elaboradas. Com a publicação, em 1841, de Assassinatos da Rua Morgue, escrito por Edgar Allan Poe, está "inaugurada" a narrativa policial, fruto de vários fatores: público criado pela leitura dos jornais; a cidade com suas ruas, passantes, multidões, verdadeiros labirintos nos quais o criminoso pode esconder-se e o artista expor-se (lembrando Baudelaire e Walter Benjamin); a polícia que, surgida no século XIX, e na França formada por ex-condenados, desperta a desconfiança da população; as ideias positivistas (os fenômenos são regidos por leis, que existiriam nos mundos orgânico, natural e humano); o criminoso, antes visto como inimigo pessoal, passa a ser um inimigo social e, muitas vezes, portador de patologias. Poe cria Dupin, o detetive moderno, cujo hobby é decifrar enigmas, que agirá de forma diferente da de Vidocq, ex-presidiário e depois policial, que escrevera suas memórias em 1828, explicitando sua maneira empírica de resolver os crimes. Auguste Dupin, detetive amador, tem suas aventuras narradas por um fiel amigo e age como uma máquina pensante. De dedução em dedução, lendo os diversos índices, chega ao criminoso. Aí está a concepção de novela policial, para Poe, criador da short-story: "a combinação de ficção com raciocínio e inferências lógicas" (REIMÃO, 1983: 19). François Fosca (apud ALBUQUERQUE, 1979:14), definindo o romance policial, afirma que é o relato de uma caçada ao homem, mas isso é essencial uma caçada em que utilizamos o raciocínio para interpretar fatos aparentemente insignificantes, a fim de chegarmos a uma conclusão. Narcejac (apud ALBUQUERQUE, 1979:14) também reforça o uso do raciocínio: O que é romance policial? [...] não é um romance como os outros, porque a lógica tem nele papel preponderante. A estrutura básica dessa narrativa será a ênfase na percepção do detetive sobre o crime (segunda história) e não esse em si (primeira história). Logo, o que importa é como decorre a investigação, os meios utilizados para chegar-se ao criminoso. Outros pontos interessantes, como lembra ainda Reimão (1989: 25-28), são a imunidade do

detetive (já que é uma narrativa memorialista, pressupõe-se que o investigador saiu incólume das aventuras) e os jogos intertextuais (retomada de personagens, críticas a outras narrativas). Na linha de Dupin, irá surgir a dupla mais famosa da literatura policialesca, Sherlock Holmes e seu assistente Dr. Watson, criação imortal de Arthur Conan Doyle. Holmes utilizará técnicas científicas (datiloscopia, exames de sangue e de outros materiais, como venenos e pós estranhos) para decifrar o enigma, que, como em todas as histórias do gênero, começa em sentido inverso, isto é, do fim para o começo (récit à rebours), do crime para a sua elucidação. Ernest Mandel (1988), em seu livro Delícias do crime: história social do romance policial, informa que os primeiros grandes escritores de romances policiais foram, além de Poe e Conan Doyle, Emile Gaboriau (com o inspetor Lecoq), R. Augustin Freeman (pai do romance policial científico), William Wilkie Collins, Gaston Leroux, Maurice Leblanc (criador do célebre "bandido nobre" Arsène Lupin) e Mary Roberts Rinehart. Os heróis desses livros eram investigadores brilhantes, oriundos da classe alta, que encaram o crime não como problema jurídico ou social, mas como um enigma a ser resolvido. Alguns críticos, entre eles Mandel, chamam ao período entre as guerras mundiais de "idade de ouro do romance policial", do qual fazem parte G. K. Chesterton (criador de Brown, padre detetive), Doroty Sayers (introdutora do esnobismo e do humor, via Lord Peter Winsey), S. S. Van Dine, Ellery Queen (pseudônimo dos primos Frederick Dannay e Manfred D. Lu), Erle Stanley Gardner (insere um novo cenário: o tribunal), Ngaio Marsh e a "grande dama do crime", Agatha Christie, criadora da encantadora velhinha-detetive Miss Jane Marple, do detetive belga Hercule Poirot e o amigo/memorialista Capitão Hastings, do casal Tommy e Turppence Beresford, entre outros. Christie inova ao romper várias regras consideradas básicas da narrativa policial: o narrador, auxiliar do detetive, é o criminoso; todas as personagens principais morrem; o público conhece o assassino desde o início; vários são os assassinos de um mesmo crime. Daí provavelmente o fato de suas obras serem, até hoje, tão apreciadas. De maneira geral, as obras desses autores do período áureo são convencionais, quase que seguindo pontualmente as três regras aristotélicas para o drama: unidades de lugar, ação e tempo. Por conseguinte, o cenário não mais será o espaço da rua, das cidades, mas o da sala de visitas da casa de campo ou da mansão vitoriana, ou o do escritório do magnata. Os heróis/protagonistas, na sua maioria detetives diletantes, pertencem à alta burguesia e até à nobreza. As narrativas têm, acima de tudo, a preocupação de testar a capacidade dedutiva do investigador e também a do leitor, acontecendo com frequência em um só dia ou em um final de semana. 3. O CRIME EM TOM MAIOR A evolução do romance policial acompanha a história do crime, segundo Ernest Mandell (1988). Provocado pela Lei Seca e pela crise no mercado financeiro, em território estadunidense, o número de delitos aumenta e diversifica-se: além da venda de bebidas e do jogo, a exploração da prostituição, o comércio de drogas, sequestros, guerras de quadrilhas, homicídios, assaltos a bancos, lavagem de dinheiro, subornos e chantagens envolvendo policiais, políticos e figuras das cortes de justiça. É organizado um sindicato do crime, que passa a ser conhecido como "A Organização". Por

consequência, cresce o aparato repressivo e as narrativas policiais transformam-se, pois o público, conhecedor dessas atividades criminosas, indiretamente exige mudança. Já em 1920, havia sido lançada a revista de mistério Black Mask, que teve entre seus colaboradores Erle Stanley Gardner e Dashiel Hammett, ícones do noir. No seu rastro surgiram outras publicações do mesmo tipo, conhecidas como pulps, porque eram impressas em papel barato, feito à base de polpa. Inicialmente nelas foram publicadas as narrativas que pertenciam ao policial clássico, depois ao thriller (histórias de fazer medo) e ao estilo hard boiled (brutal). Também as pulps evoluíram "de antologia de contos para revistas especializadas em gêneros como westerns, histórias fantásticas, de guerra, de detetives etc." (MATTOS, 2001: 23), que continuam a ser muito lidas, principalmente as de temática amorosa, como Sabrina e Bianca. É um pulo da sala de visita para as ruas da urbe industrializada, ou seja, para a "cidade apodrecida", onde vive o gângster e também o policial venal. Assim, a saída é o detetive particular (private eye). E Hammett publica, em 1930, O falcão maltês, cujo herói Sam Spade detetive cínico, detalhista, insensível, vulgar, rude, bêbado, mulherengo trabalha para viver e mostra que não é tão fácil desvendar um crime a partir de pistas. É o oposto dos heróis de até então e torna-se um modelo da literatura policial. Para Sandra Lúcia Reimão (1983: 61), o ponto fundamental "dos textos de Hammett é a crítica ético-político-social. [...] Hammett nos mostra o quanto o mundo do crime participa e é solicitado pela sociedade capitalista". Ele desvenda as falsidades da sociedade burguesa como o falcão, de seu livro, que era falso, um simulacro do real, fazendo seu leitor encarar a vida com olhos diferentes, característica fundamental nesse tipo de narrativa. Deve ser um olhar de estrangeiro, expressão que lembra Nelson Brissac Peixoto (1998: 362). É o olhar daquele que vê aquilo que os outros não mais percebem, nesse mundo pós-moderno em que "tudo é linguagem, signo. Daí a hiperrealidade em que parece ter-se constituído a nossa realidade", visto que o princípio da representação fundamenta o pensamento ocidental; "as imagens e os conceitos serviam para representar algo que lhes era exterior". Entretanto, as imagens, com sua generalização, "passaram a constituir elas próprias a realidade". E, o mais importante: "aquilo que era pressuposto do olhar é agora o seu resultado" (PEIXOTO, 1998: 362). Explica-se, assim, o cinema e a narrativa mais recente recorrerem ao olhar do estrangeiro e dos anjos, pois só estes "veem o essencial, as formas puras" (PEIXOTO, 1998: 263): reportar-se ao filme As asas do desejo, de Wim Wenders, onde o mundo é visto, por eles, anjos, em branco e preto, vivendo novas vidas, vidas primeiras, coisa que não é mais feita pelos mortais. Hammett e Raymond Chandler quebram as estruturas da narrativa policial clássica, deitando um novo olhar sobre o crime, que não terá mais motivações psicológicas, individuais, e será resultado da corrupção social e da brutalidade presentes no mundo moderno. Brutalidade que será refletida no personagem, o though-guy, no estilo dos autores: nu, pobre, "feito de imagens, de pedaços de diálogos e parece um relatório de polícia" (BOILEAU-NARCEJAC, 1991: 60). Até o nome do detetive, Sam Spade (Sam Espada), é sugestivo e ele transitará por becos sórdidos, bares e cabarés vagabundos e luxuosos, resultando um mundo de imagerie, onde a vida é moldada pela literatura, pelo cinema, pelos quadrinhos, pela TV, pelos games; como um arremedo do que já foi visto e vivido. Explica-se, deste modo, a ação acontecendo nas avenidas molhadas e escuras, iluminadas por poucas lâmpadas ou refletindo o brilho dos néons, caso de LA e de DN. Nesse mundo em que circula o detetive hard-boiled (DN, CHI,

LA) estarão também personagens/pessoas, ou seja, figuras que refletem a realidade: prostitutas, vagabundos, chantagistas, assassinos, policiais corruptos, criminosos variados que enganam, são espertos e violentos, o que leva o detetive a desconfiar de tudo e de todos, sem falar da femme fatale e de seu erotismo que agride a sociedade machista (CHI, LA, DVA, DN). Mandel (1988: 68) mostra que nesse tipo de narrativa, em que há "a revolução de trama, cenário, estilo e solução", além do novo enfoque em que aparece o private eye tem que se destacar a importância de novas tecnologias: "o que a fotografia e as estradas de ferro foram para os antigos romances policiais, o cinema e o automóvel são para o roman noir". E o que é essa perseguição a criminosos, em vertiginosa velocidade, em sequências apressadas, deixando de lado a morosidade do exame minucioso de pistas e provas? É o impacto da literatura popular no cinema, como posteriormente estarão em destaque os policiais e gângsteres e os suspenses sofisticados. O ator George Raft, iconizado como bandido em Scarface, em 1933, conduzirá a Philip Marlowe, detetive beberrão, amante da poesia e do xadrez, que será encarnado, em 1941, por Humphrey Bogart, que influenciará o francês Acossado (À bout de souffle, 1959), de Jean-Luc Goddard, com seu protagonista comum, feio, ladrão, fugindo do estereótipo do herói. Essas narrativas acabarão levando ao diretor Hitchcock, que produzirá, da década de 50 aos anos 70 do século XX, seus melhores filmes de suspense: Rear Window (Janela Indiscreta, 1954), Dial M for Murder (Disque M Para Matar, 1954) Vertigo (Um corpo que cai, 1958), Psycho (Psicose, 1960), Marnie (Marnie, Confissões de uma Ladra, 1964). 4. ROMANCE NOIR: BRAÇOS DADOS COM O FILME NOIR Hammett e Chandler, portanto, invertem a narrativa policial, mais preocupados com a caracterização e a atmosfera, com o "olhar" sobre a sociedade, do que com a intriga, e serão acompanhados por James M. Cain, Henderson Clarke, Day Keene, Don Tracy, Cornell Woobrich e pelos franceses Amila, Le Breton, Simonin, Bastiani, Giovani, entre outros. Na França, muitas das obras que seguiram essa tendência foram publicadas na Série Noire, organizada por Marcel Duhamel, cujas capas dos livros eram negras (noires). Em função disso, credita-se o nome "romance noir" aos livros de crimes editados com esse detalhe, enquanto que outros alegam que tal se devia à atmosfera dos relatos, à paisagem sombria, noturna, à violência, com jogos de claro/escuro, levando à sensação de claustrofobia, desespero, niilismo. Nesse sentido, aponta-se certa semelhança com o existencialismo sartriano, em voga na época. E realmente trata-se do Huis Clos, do homem num beco sem saída, desiludido com os ideais americanos tradicionais (american way of life), tendo uma visão black da existência. O final não é escapista à Hollywood. Mesmo que as coisas se resolvam, fica um travo amargo, como aquele deixado pela bebida e pelo cigarro na boca do private eye que, sempre em ação, saindo de um escritório na maioria das vezes decadente, vai lidar com o provável, pois não há mais certezas, na cidade grande perigosa. Ele é um loner que vagueia num mundo de sombras, um voyeur à espreita de crimes e criminosos (DVA, CHI, DN). Para Nelson Brissac Peixoto (1987), o investigador privado tem sua solidão duplicada pelo sentimento de abandono, pois sem amigos, não tem a quem recorrer, trabalhando sozinho. Entretanto não desiste, pois é um hard boiled. Nisso já se

diferencia dos investigadores tradicionais, geralmente bem nascidos e acompanhados por um assistente que narrará suas peripécias. Outra diferença é a apontada por Reimão (1983: 82): enquanto que o romance enigma é arquitetado em cima da racionalidade, do raciocínio matemático, o roman noir tem sua atuação no viver, criticando o mundo que o circunda. Este seria uma paródia, tanto no nível do discurso quanto no da narrativa, daquele. E o roman noir seria a fonte literária do filme noir, já que há também fontes cinematográficas, entre as quais é mais marcante o cinema expressionista alemão dos anos 20, que, através da deformação, da estilização, da abstração, procurava mostrar, também por símbolos, as emoções mais íntimas do artista diante do mundo. Usam-se, então, imagens oníricas, deformadas, grotescas, mórbidas, com iluminação contrastante (claro/escuro), estranhas angulações da câmera, muito exagero na maquiagem, vestimentas e interpretações. São modelares os filmes de Murnau (Nosferatu) e Fritz Lang (Metrópolis, Os Nibelungos). O cinema noir americano vai mostrar essa influência via penumbrismo, seqüências de pesadelo, personagens angustiadas, neuróticas, passagens de delírios e sonhos (LA, DN). Gomes de Mattos (2001, p. 30-33) aponta, ainda, as influências do filme de gângster, do neo-realismo italiano e do realismo poético. Os filmes de gângster, que vão se firmando nos anos 20, mostrando o clima reinante (tanto no aspecto imagético como da fábula), têm novo impulso nos anos 30, com o aumento do gangsterismo na vida cotidiana, além da incrementação que o advento do som proporciona. Scarface, grande sucesso das telas, mostra o sonho americano de sucesso marcado pela fatalidade, pelo crime, além do destaque dado à paisagem urbana, à violência e à morte. Há, porém, diferenças de enfoque: nos filmes de gângster, é o próprio self-made-man que age com vigor para chegar ao sucesso; a textura visual contrastante não é tão marcante; o final é feliz, para a sociedade (a polícia vence, o "bandido" morre), e a violência é enorme, com rajadas de metralhadoras, incêndios criminosos, bombas explodindo. Já no filmenoir a violência é sádica, é ritualizada (muito suplício, tortura, espancamento); o final não é feliz para ninguém, não há vencedores; a iluminação é contrastante; há abuso do uso de néon; as ruas são ermas e molhadas. Estádios de boxe, cais, becos, armazéns abandonados, quartos de hotéis de 5ª. classe, corredores sombrios, bares e apartamentos decrépitos ou opulentos, são pontos fulcrais, mostrando a grande cidade assustando e oprimindo, engolindo o homem. Quanto à outra influência, o realismo poético foi a denominação dada a alguns filmes franceses, feitos entre 1934 e 1939, que mesclavam o realismo com o lirismo, sobressaindo um sentimento de fatalismo amargo, de desesperança, numa atmosfera sombria. Embora muito se diga da força desses filmes sobre o noir, para muitos críticos, o noir teria sido mais marcado pelo expressionismo alemão e pelo neo-realismo. Este último mostrava, de forma quase documental, a Itália pós-guerra, com suas ruínas e população anônima representada por atores não profissionais. Ladrão de bicicletas (Ladri di biciclette, 1948, de Vittorio de Sica) e Roma cidade aberta (Roma, città aperta, 1946, de Roberto Rossellini) são paradigmas dessa vertente. Nos EUA, a influência fica nítida em filmes como A casa da rua 92 (The House on 92nd Street, 1945, de Henry Hathaway). Estilo semidocumentário, som direto, filmagem em locações reais (e não em estúdio), a investigação a cargo da lei (polícia, promotoria, imigração, departamento do tesouro etc) e não do private eye, daí o uso da expressão police procedures. Tal procedimento é bastante utilizado no filme Los Angeles cidade proibida (L. A. Confidential), calcado no romance homônimo de James Ellroy, um filme neo-noir de 1997, que reflete o tempo de sua produção, mas cuja ação

ocorre em 1953, o que se verifica inclusive pelo tratamento cromático, o qual indica o intento de produzir efeito de realidade (documento antigo) e narrado pelo redator venal da revista sensacionalista Hush-hush. Também envelhecida, amarelada, é a imagem em Dália Negra, com a ação acontecendo em 1947, narrada pelo boxeador Bucky Bleichert, e baseado em obra do mesmo Ellroy. Envolvendo policiais e gângsteres, LA em nenhum momento é maniqueísta, mostrando o lado dark da lei, o que é um contributo à reflexão e ao questionamento, o cinema apresentando-se como fonte da história, já que são comuns as relações entre ambos, normalmente abordadas em três aspectos: o cinema na história (propaganda ideológica), a história do cinema (historiografia cinematográfica) e a história no cinema (filmes como fonte de documentação histórica - caso de Los Angeles). Para Mattos (2001: 35), o verdadeiro filme noir é o que conjuga "as formas de ficção criminal americana [...] com o estilo visual expressionista", ressaltando-se o pessimismo, a corrupção, a angústia, a morte, o fatalismo, devendo a ação localizar-se nos anos 40 e 50, num ambiente urbano, já que o noir está ligado à conjuntura sóciocultural do período pós-guerra, marcado pela Guerra Fria e pelo Macarthismo, que gerarão insegurança, paranóia, medo, violência, angústia. Em decorrência da II Grande Guerra, a mulher invade o mercado de trabalho, torna-se mais assertiva, mais segura, independente econômica e sexualmente. Ela terá um tratamento particular no noir, ocupando uma posição de destaque no desenvolvimento da intriga. A femme fatale, a viúva-negra, é a morte, simbolicamente, e leva também à traição (de princípios, de amigos, do lar - esposa e filhos). Aliás, este é um dos temas da intriga policial: trai-se por dinheiro ou por mulher. Dark-lady, manipuladora, "sexualizada", é um obstáculo às conquistas do homem; é a sedutora má e tentadora, que leva à destruição (como a Matty Walker, de CA e a Madeleine Linscott, de DN), sobrepondo-se à antiga imagem de virgem, mãe, inocente, redentora. É o universo patriarcal posto em xeque, com a derrota do homem, muitas vezes. Num mundo em que era vista como fraca e sensível, "necessitando" da proteção masculina, surge poderosa graças ao seu poder sedutório. E isso tem implicações tanto no estilo visual feminino como no do ambiente, que se mostra sombrio, com janelas de luz franchada, e espelhos que refletirão o alter-ego, o duplo, o lado perverso emergindo das trevas, ou ainda, a insegurança, o olhar-se, o refletir sobre decisão a tomar. Este universo é marcado, portanto, por silhuetas, sombras, espelhos e reflexos, geralmente mais obscuros que a pessoa refletida, indicando sua falta de unidade. A mulher perigosa e sexual revela-se através de olhares lânguidos, muitas jóias, maquiagem elaborada e cabelos bem arrumados, para melhor atrair. É a expressão psicológica do medo do homem de suas saias justas de seda ou cetim. São bem representadas pelas prostitutas do cabaré de luxo Flor de Lis, que fazem plásticas para ficarem parecidas com atrizes famosas (LA). A fatal, mulher-aranha que enreda o macho em sua teia, é focalizada pela câmera quase sempre no centro do quadro ou no primeiro plano, olhando para o seduzido e para o espectador, ambos na mesma perspectiva do seu olhar, como Matty (CA), em suas roupas claras e provocantes, grudadas ao corpo pelo suor. Na grande maioria das vezes, a aparição dessa dark-lady é preparada para provocar impacto, caso também da prostituta Lynn Bracken (LA), em sua fase sexual (depois ela se torna a redentora), que surge com uma capa de veludo negro, forrada de cetim branco, rosto quase todo encoberto. Ela é o duplo: assemelha-se à belíssima Verônica Lake, antiga atriz do cinema americano. Também surpreendentes

aparecem, como a própria imagem da sedução, Kay (a redentora) e Madeleine (a fatal), em Dália Negra. Há, entretanto, no noir, outras mulheres: a doméstica, esposa ou namorada, passiva e compreensiva, que aparece em cenas claras, iluminadas: a redentora, que ajuda o herói/vítima, auxiliando-o com suas investigações, podendo redimi-lo de uma vida desregrada; a sexual, que não é fatal nem doméstica, também sedutora e ambiciosa, mas não mortífera. Assim, a mulher é uma das partes do tripé sobre o qual se assenta o noir, sendo, as outras, a vítima e o investigador, que poderá ser detetive, policial, cidadão comum, jornalista, o qual averiguará histórias complicadas, interrogando testemunhas e suspeitos, seguindo pistas (na sua maioria falsas) até o desfecho, que provocará espanto (LA, CHI, DVA). Geralmente a perda está presente na vida do investigador ou do investigado (vítima): é sozinho, não pode contar com amigos, não consegue ganhar muito dinheiro, nem encontra a mulher que procura (para si ou para os outros); ou teve alguma dificuldade familiar séria (perda de um ente querido, por exemplo) que o leva a ter problemas de ordem psicológica (DVA, LA). A vítima (no caso, o investigado e não o morto), na maioria das vezes, é o antiherói noir, acusado de algo que não fez, ou se fez é porque foi induzido a isso: dificuldades financeiras, impulsionado pela femme fatale ou por um lapso. Pode ser um masoquista, que não percebe o quanto a mulher é traiçoeira ou, se percebe, não consegue escapar: é o fatum; ou pode ser também alguém desmemoriado, ou mesmo o soldado que volta da guerra e se sente perdido ante o novo mundo que encontra. Dessa forma, os heróis são deprimidos, pessoas cínicas, desiludidas e perdidas, ambíguas, que quase nunca têm um happy-end. O filme noir caracteriza-se, ainda, por um estilo musical noir (melodias tristes e jazz, ao lado da trilha orquestral); decoração noir (luzes de néon, abajures, venezianas), figurino noir (homens vestem capas de chuva, chapéu com abas para baixo, ombreiras; mulheres com insinuantes negligés); linguagem noir (inspirada na fala hard-boile das obras de Chandler e Hammett); voz over (que traça estados mentais do herói, faz retrospectos flashback ou adianta acontecimentos, podendo, inclusive, o narrador já morto contar suas versões do fato, ou haver vários narradores e retrospectos); estilo visual noir (iluminação em chave baixa ou escura low key lighting cenário pouco iluminado, uso de abajures, lâmpadas isoladas, com sombras difusas, faixas de luz, frestas); maior profundidade de campo tanto a frente como o fundo nítidos, para mostrar a interação homem-ambiente; close-ups personalizantes (objetos na frente do quadro obscurecem a visão da cena, tudo levando ao desequilíbrio composicional, com o intuito de chocar e desnortear); tema noir (a boa ação é punida; vida medíocre conduz ao crime) e problemas emocionais (paranóia, desconfiança, ganância, corrupção, obsessão sexual) (MATTOS, 2001: 41-47). 5. CONCLUINDO: EXPLOSÃO DO NOIR O filme noir, após tanto sucesso, entrou em decadência devido a algumas razões: a introdução da cor nos filmes, pois o "preto e branco" era fundamental para mostrar o mundo dark norte-americano opressivo, desesperançado; a utilização da tela larga (cinemascope) atrapalhou, pois o noir exigia um ambiente pesado, clautrofóbico; o advento da televisão, com sua exigência de muita iluminação e close-ups, e a produção

de telefilmes, que irão substituir o filme B, antes praticamente só noir, além dos fatores sócioculturais, que foram desaparecendo. Na década de 70, entretanto, várias retrospectivas mostraram os clássicos noirs, tanto nos canais de TV a cabo como nos filmes de arte, e assim foram feitos tanto filmes novos como refilmagens, que, sob um olhar moderno, tentaram recapturar o que havia nos antigos noirs. Também no período seguinte, 1980-1990, há fatores favoráveis ao ressurgimento do interesse por elementos presentes no filme noir. São anos conturbados: pós Guerra do Vietnam, incrementação do terrorismo internacional, economia incerta, concretização do feminismo, aids e público cada vez mais interessado em crimes e notícias sensacionalistas. A isso soma-se o avanço tecnológico que permite grandes contrastes, como na iluminação expressionista, e que estarão presentes em filmes fantásticos, em paródias, em thrillers políticos e criminais psicológicos. Tais filmes passarão a ser chamados de novo noir, neo-noir, pós-noir (post noir) e noir moderno (modern noir), pois incorporaram uma nova realidade à tradição dos filmes antigos. Renasce a fênix, trazendo consigo novamente a magia, os sonhos, os medos, a violência, a paixão, enfim, as emoções que a sétima arte proporcionam. 6. REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, Paulo de Medeiros E. O mundo emocionante do romance policial. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. ALMEIDA, Milton José de. Imagens e sons: a nova cultura oral. São Paulo: Cortez, 1994. ARBEX JR, José. A outra América - apogeu, crise e decadência dos Estados Unidos. São Paulo: Moderna, 1995. BOILEAU, Pierre; NARCEJAC, Thomas. O romance policial. São Paulo: Ática, 1991. CARMONA, Ramón. Como se comenta un texto fílmico. 2 ed. Madrid: Cátedra, 1993. MANDEL, Ernest. Delícias do crime: história social do romance policial. São Paulo: Busca Vida, 1998. MATTOS, A. C. Gomes de. O outro lado da noite: filme noir. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. MEYER, Marlise. Folhetim: uma história. São Paulo: Cia. das Letras, 1996. PEIXOTO, Nelson Brissac. O olhar do estrangeiro. NOVAES, Adauto et al. O olhar. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. p. 361-366.

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