Refluxo gastroesofágico e sua relação com a prática do canto lírico Palavras chave: Voz, Refluxo gastroesofágico, Laringoscopia, Radiografia. Introdução Na atividade de canto, existe a necessidade de um controle apurado da saída do ar, de forma que haja pressão suficiente para o processo de fonação, e este é dado pela ação da musculatura respiratória, que inclui o diafragma 1,2. Para tanto, o diafragma deve ter sua descontração regulada, sendo mantido para baixo para promover o apoio requerido pelo canto. Uma vez conseguido o apoio, a região intercostal é mantida aberta durante toda a vocalização, e a saída do ar é dada pela contração da musculatura abdominal 1,3. Em condições de aumento de projeção ou quando há a necessidade de mudanças rápidas da pressão subglótica, quando se pretende alcançar, por exemplo, grandes saltos de freqüência, como ocorre no canto lírico, é necessário o aumento do uso do apoio respiratório abdominal, e o diafragma é usado de forma mais consistente 4,5, o que ocasiona mudanças nas dimensões da parede abdominal e da caixa torácica, favorecendo o aumento da pressão intrabdominal 3. Um dos mecanismos que provoca episódios de refluxo gastroesofágico (RGE) é o aumento transitório da pressão intrabdominal, quando esta supera a resistência da barreira anti-refluxo 6. A presença de RGE pode ocasionar problemas vocais, com sério comprometimento da performance e da atividade profissional dos cantores 4. Na hipótese de que a prática do canto lírico, por provocar o aumento da pressão intrabdominal, pode estar relacionada a episódios de RGE, a presente pesquisa teve, como objetivos, verificar a presença de sintomas e de sinais laríngeos sugestivos de RGE em um cantor lírico, e a ocorrência de episódios de RGE durante a atividade de canto. Métodos Este estudo foi registrado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de origem (nº 0028.0.243.000-06). A seleção do sujeito foi feita por contato pessoal, em curso de Bacharelado de Canto, e teve como critérios de inclusão: esclarecimentos sobre a pesquisa, leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; idade acima de 18 anos; ter pelo menos um ano de atividade de canto lírico constante. Como critérios de exclusão, considerou-se: ser fumante, consumir bebidas alcoólicas; ter feito ou estar fazendo qualquer tipo de tratamento clínico para RGE.
Foi utilizado um questionário fechado, para se obter informações sobre a classificação vocal, o tipo respiratório utilizado, o tempo de atividade de canto, e os sintomas típicos e atípicos sugestivos de RGE. Participou do presente estudo um cantor de 26 anos, sexo masculino, tenor, com dez anos de atividade de canto. Num segundo momento, foi realizado o exame videolaringoscópico por um médico otorrinolaringologista, por meio do qual verificou-se a existência de sinais extraesofágicos sugestivos de RGE. Os critérios de afirmação da presença de RGE foram os sinais laríngeos: edema de terço posterior das pregas vocais; eritema da parede posterior da cricóide; eritema ou edema do espaço interaritenóideo 7,8. Posteriormente, foi realizado o exame de raio-x de esôfago com contraste de bário 9 para detecção de episódios de RGE, durante as atividades de canto. Durante o exame, feito com o cantor posicionado em pé, foram realizadas as seguintes manobras de canto: emissão de notas musicais em acorde arpejado (tônica-terça-quinta-oitava), em staccato (notas destacadas), e em legato (notas ligadas) com sustentação da nota superior por cinco segundos, procedendo-se à modulação da tonalidade, até atingir o limite confortável da extensão do cantor avaliado; sustentação de três notas musicais isoladas, pelo tempo de fonação do cantor avaliado, pré-definidas conforme sua classificação vocal, e pertencentes a cada registro vocal (grave, médio e agudo), procedendo-se à variação de intensidade, do piano (fraca intensidade) ao forte na mesma emissão. Cada nota foi repetida por três vezes. Após, foram feitas manobras de sustentação de notas e de tosse, na posição de decúbito ventral. Resultados O tipo respiratório utilizado pelo cantor foi o costo-diafragmático. Dentre os sintomas típicos ou atípicos sugestivos de RGE, apenas a tosse foi referida pelo cantor, na freqüência de 1 vez por semana. O resultado do exame videolaringoscópico foi normal, não sendo encontrados os sinais laríngeos sugestivos de RGE adotados neste estudo. No exame de raio-x de esôfago, não foi verificada a presença de episódios de RGE durante a execução das manobras de canto na posição em pé, nem nas manobras de tosse e de canto em decúbito ventral. Discussão O tipo respiratório costo-diafragmático é o mais indicado para o uso da voz profissional 10. No entanto, apesar deste tipo respiratório favorecer o aumento da pressão intrabdominal 3, em um estudo não foi encontrada correlação entre o tipo respiratório
utilizado pelos cantores líricos, seja costo-diafragmático ou abdominal, e a presença de sintomas de RGE 11. A classificação vocal também não foi considerada como fator de favorecimento à existência de episódios de RGE, visto que em alguns estudos 11,12 não foi encontrada correlação entre essa variável e RGE. Desta forma, considera-se que, na seleção do cantor deste estudo de caso, essas variáveis não interferiram nos resultados encontrados. Afirma-se que a existência de RGE deve ser suspeitada na presença de tosse crônica, em pacientes não fumantes 9. Em uma pesquisa 13, a tosse esteve presente em 68,6% dos pacientes. Os resultados deste estudo de caso mostraram que a tosse foi o único sintoma presente, manifestando-se uma vez por semana, sendo, portanto, um fator a ser considerado na investigação da possibilidade de presença de RGE nos cantores líricos. No entanto, uma avaliação cuidadosa do histórico dos cantores deve ser realizada, visto que os vários sintomas e sinais podem ser devidos também a outros fatores como abuso vocal 9,14,15, fumo 9,14,15,16, alergias 9,15,16, e agentes infecciosos 14. Além disso, somase o fato de que a ausência de sinais no exame videolaringoscópico, como o observado neste caso, não exclui a presença de RGE 17,18. Em estudo 19 com estudantes de canto, os fatores de risco encontrados para o desenvolvimento de RGE foram o consumo de tabaco, álcool e cafeína, o alimentar-se tarde da noite, e a presença de hérnia de hiato. Em outro estudo, encontrou-se associação significativa entre o hábito de fumar e o risco de apresentar sintomas de RGE, sendo que este aumenta com a dosagem e a duração do hábito 20. A presença de sintomas laringofaríngeos pode ser prognóstico de RGE, tendo sido encontrada, significativamente mais freqüente, em pacientes com RGE 21. Pacientes que apresentam RGE têm alta probabilidade de apresentar manifestações extraesofágicas 22. E, ainda, encontrou-se forte correlação entre os sintomas otorrinolaringológicos e o RGE 17. A não ocorrência de RGE durante a atividade de canto, no exame de Rx-esôfago de do sujeito deste estudo, contrariando os resultados de outro estudo 4, pode sugerir que devem existir outros fatores contribuintes que levem à maior susceptibilidade individual a episódios de RGE, que não o aumento da pressão abdominal durante o canto. Para que o RGE ocorra, a competência da junção gastroesofágica (JGE), determinada pelos seus componentes, o esfíncter esofágico inferior e a crura diafragmática, deve estar prejudicada 6. O aumento da pressão desses componentes, que se reflete como um aumento da pressão da JGE, atua como um mecanismo adicional de proteção contra o refluxo 23. Desta forma, fatores que levem à menor pressão de contração esfinctérica da JGE, são relacionados à presença de RGE. Estes fatores são: relaxamentos transitórios do
esfíncter esofágico inferior, esfíncter esofágico inferior hipotensivo, e rompimento anatômico da JGE associado à hérnia de hiato 6. Um estudo 24 descreveu o caso de uma soprano de 49 anos que apresentou episódios de RGE apenas durante as atividades de aquecimento vocal à ph-metria monitorada. No entanto, durante a manometria observou-se incompetência do esfíncter esofágico inferior, o que vem reforçar a possível existência de fatores de susceptibilidade individual contribuindo para a ocorrência dos episódios de RGE durante o canto lírico. O RGE pode ocasionar perda da extensão vocal, voz rouca e com pouca projeção, crepitação do som nos inícios de frase, e pigarro nas vozes de cantores 25 e comprometer a sua carreira. Desta forma, a presença de sintomas e sinais de RGE nesta categoria de profissionais deve ser criteriosamente investigada, a fim de proporcionar um tratamento adequado, e/ou minimizar os seus efeitos, quando presentes. Conclusão A tosse foi o único sintoma presente, manifestando-se mais de uma vez por semana. Não foram encontrados sinais laríngeos sugestivos de RGE ao exame videolaringoscópico. Não foi verificada correlação entre a prática do canto lírico, por meio dos exercícios vocalizados, e a ocorrência de episódios de RGE, ao exame de raio-x de esôfago com contraste de bário. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Märtz MLW. Preparação vocal do ator. In: Ferreira, LP & Silva, MAA. Saúde vocal. São Paulo: Roca; 2002. p. 96. 2. Coelho HSNW. Técnica vocal para coros. São Leopoldo: Sinodal; 1994. 3. Thorpe WC, Cala SJ, Chapman J & Davis PJ. Patterns of breath support in projetion of the singing voice. J Voice. 2001;15(1):86-104. 4. Cammarota G, Elia F, Cianci R, Galli J, Paolillo N, Montalto M et al. Worsening of gastroesophageal reflux symptoms in professional singers during performances. J Clin Gastroenterol. 2003;36:403-4. 5. Leanderson R, Sunderberg J, von Euler C. Role of diaphragmatic activity during singing: a study of transdiaphragmatic pressures. J Appl Physiol. 1997;62:259-70. 6. Kahrilas PJ. Supraesophageal complications of reflux disease and hiatal hernia. Am J Med. 2001;11(8),suppl1,3:51-55. 7. Jacomelli M, Souza R & Pedreira Jr. Abordagem diagnóstica da tosse crônica em pacientes não-tabagistas. J Pneumologia. 2003;29(6):413-420.
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