DANÇA E POLÍTICAS PÚBLICAS: PENSAMENTO TRÁGICO



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Transcrição:

DANÇA E POLÍTICAS PÚBLICAS: PENSAMENTO TRÁGICO Joana dos Santos Egypto de Cerqueira Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) joanacer@gmail.com Resumo Este trabalho teórico se propõe em apresentar percursos traçados ao longo da pesquisa de mestrado, em andamento Forças em luta para invenção de uma dança. Pesquisa esta orientada pela professora Dra. Silvana Tótora (Departamento de Política da PUC-SP). Busca estabelecer brevemente aproximações entre o fazer artístico relacionado à dança, a produção artística da vida e a perspectiva trágica nietzschiana apresentada especialmente no decorrer da obra Assim Falou Zaratustra. Para validar a perspectiva trágica condizente à dança, esses pontos de encontro irão considerar os embates de forças entre as faculdades de memória e esquecimento, no que diz respeito tanto à postura afirmativa da vontade de potência do artista quando em trabalho, como também sua condição atual diante políticas públicas de incentivo voltadas à cultura.

Este trabalho se propõe em apresentar percursos traçados e pequenos avanços ao longo da pesquisa de mestrado, em andamento Forças em luta para invenção de uma dança. Pesquisa esta orientada pela professora Dra. Silvana Tótora (Departamento de Política da PUC-SP). A inquietação que suscitou esta pesquisa de mestrado foi, a princípio, a relação de embate entre as faculdades de memória e esquecimento, que movem a invenção de uma dança; a coexistência e intimidade entre história e devir. Contudo, no primeiro movimento desta pesquisa, iniciada em 2012, fora investigada a emergência das leis de incentivo à cultura, no Brasil, até o desembocar da instituição da Secretaria da Economia Criativa, em 2012. Deuse especial atenção à análise da emergência do Programa Municipal de Fomento à Dança da cidade de São Paulo instaurado em 2005. Da mesma maneira, buscou-se considerar discursos e efeitos deste modo de conduta na vida dos artistas. Ou seja, constata-se, por hora, que certas adequações administrativas e práticas calcadas por cálculos econômicos passaram a atravessar processos de criação, haja vista previsões de orçamentos, prestações de contas, contras partidas sociais, etc... que compõem projetos de arte e de dança inscritos nas cotas dos editais. Ao longo da história, a dança percorreu diferentes contextos institucionais e políticos que merecem atenção analítica, porém o que compete a este momento, em particular, da pesquisa é relacionar circunstâncias presentes das políticas de incentivo à dança e ao mesmo tempo considerar um experimento intempestivo que o ato de dançar permite àqueles que trazem no gesto, no movimento e na composição de sua dança uma urgência da qual não

se pode abrir mão. Neste sentido pode-se esboçar uma qualidade micropolítica que atravessa a dança e sua feitura sobre aquele que a realiza. Interessa estabelecer pontos de análise que articulem tal circunstância histórico-política, que envolve a imersão e adequação do artista à modelos e categorias prescritas por políticas culturais, com a dança, ou seja, com o próprio ato de dançar enquanto prática de um excesso que não se contém em si. Nesse sentido passa a ser vigoroso questionar como e por que engendrar o presente com forças trágicas: impulsos artísticos apolíneo e dionisíaco entramados entre si (Nietzsche, 2007, p.75). Nietzsche, ao dizer da tragédia grega, não a encurrala no emaranhado estritamente histórico, ou seja, não a apresenta como referida exclusivamente a um período histórico da antiguidade. Ao contrário, ele extrai da história da filosofia socrática um sentido para a cultura moderna de sua época e, ao mesmo tempo empenha-se na possibilidade latente de fazer a vida urrar e afirmar-se. Seu olhar atento à tragédia grega propicia, a golpes de martelo, uma genealogia filosófica e política acerca da condição da cultura ocidental, a partir da história dos soterramentos diversos, os quais foram imprescindíveis para fazer emergir o conhecimento e a verdade; para fazer emergir o dualismo cartesiano irreconciliável; e, por fim, a cisão moral entre forças apolíneas e dionisíacas em suprimento do pensamento trágico, onde ambas se entrelaçam. Tal condição deve-se, especialmente, ao advento e efeitos do cristianismo. Este mesmo empenho de luta e perseguição do que é vital constitui a tragicidade do pensamento de Nietzsche. A fusão entre as forças apolíneas e dionisíacas correspondem às núpcias entre a embriaguez do sonho, da potência individualizadora e plástica

da imagem e da aparência dadas por Apolo, com o êxtase do caos, do gesto, da paixão delirante, da música e da dança, ofertadas por Dionísio. O primeiro carrega consigo, além de um caráter estético, um caráter ético por estabelecer linhas fronteiriças entre seres singulares (Tótora, 2005, p. 162). Enquanto o segundo está intimamente ligado ao transbordamento incomensurável da existência, do arrebatamento e do prazer. Não se tem por intuito, agora, discorrer de forma cronológica e linear aos desdobramentos que constituíram a história da filosofia ocidental e que serviram como base para convicções jurídico-políticas do presente. Porém, procura-se não ignorar o que permanece vivo: um combate latente que dispõem condições políticas próprias daqueles que estão interessados em inventar outros mundos por meio da dança e as contingências também políticas que cercam as produções voltadas à dança, no esforço de fazer atravessar, tais contingências, com um pensamento trágico. Hoje, pensar a dança ajustada às distintas funcionalidades e utilidades políticas e econômicas, dispensa o que nela é mais caro: sua potência catalizadora de questionamentos e transgressões. Quando, a inquietação incontornável daquilo que impulsiona o movimento e a busca por uma coerência estética deixam de ser a urgência primeva para dar lugar continuamente ao investimento e adequações calcadas na demanda e no reconhecimento de uma classe artística organizada politicamente pelo viés representativo e/ou empresarial, entende-se que tal potência transgressora tende a se enfraquecer. Para a instauração de outra atmosfera acoplada ao real ordinário, para a invenção de outro mundo intempestivo, por meio da dança, carece-se do artista

alterações para além da temperatura e estado de seu corpo e isso requer trabalho e rigor, tempo e espaço para incansáveis repetições, insistências em buscas aventuradas e, por conseguinte, sofisticação técnica tanto de uma escuta interna e externa do corpo-espaço como também da imagem inebriante trazida, por si, à tona. Existe aqui algo de arrebatador que faz desarranjar estados de consciências, implodir certezas e expandir, por vezes, dizeres inauditos e inomináveis. Concomitantemente, compete, muitas vezes, a estes mesmos corpos a imersão nas incontáveis horas dedicadas à postura ereta, sã, racionalmente coesa, com o apoio da base do crânio, na primeira vértebra cervical, com ísquios fixos a madeiras da cadeira; figuras razoáveis que arquitetam e idealizam projetos, os quais nem sempre são contemplados pelos editais de incentivo dos quais competem. Quando não, esse tempo espremido pode ser dedicado a reuniões ou mediações com gabinetes e secretarias de culturas, encontros e debates para discutir pautas e demandas da classe artística. Tudo a fim de garantir viabilidade de trabalho, possibilidade de espaço, meios para viver ou mesmo para sobreviver. Estes mesmos artistas embebidos pelo delírio e pela paixão são explodidos, um a um, por Apolo das mil faces de Dionísio, deus do excesso caótico da vida e de tudo que faz mover e transfigurar. O êxtase do estado dionisíaco, com sua aniquilação das usuais barreiras e limites da existência, contém enquanto dura, um elemento letárgico no qual imerge toda vivência pessoal do passado. Assim se separam um do outro, através desse abismo do esquecimento, um mundo da realidade cotidiana e o

da dionisíaca. Mas tão logo a realidade cotidiana torna a ingressar na consciência, ela é sentida como tal com náusea; uma disposição ascética, negadora da vontade, é o fruto de tais estados. (Nietzsche, 2007, pp. 52-53). A obra Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém, escrito por Nietzsche entre 1883 e 1885, alastra percursos seguidos por Zaratustra, em seus ocasos, convalescências e fricção com a vida mutável e selvagem. Além disso, manifesta fôlego para pensar a condição trágica daquele que persegue a vida artista. Longe de empregar tal obra como uma metáfora comparativa ou modelo a ser seguido por outros, ela é aqui mencionada por apresentar fineza poética e política de um combate intempestivo, solitário, tenso e perigoso em favor de um sim irrequieto para a vida que quer expandir-se infinitamente, mesmo que ela mostre sua face assustadora; mesmo que atravesse dias e noites medíocres, por vezes, nauseantes. Nesse sentido, Nietzsche desafia o pensamento de seu tempo com violência e ousadia para fazer emergir o terreno fértil da invenção, campo que atravessa os tempos e interessa a esta pesquisa. O pensamento trágico que Zaratustra irrompe aproxima-se do exercício equilibrista da fronteira bamba e abissal da existência: da aceitação da finitude da vida sem o consolo metafísico dado por um deus, pastor ou qualquer conhecimento científico do homem convicto, moderado. Além disso, a figura de Zaratustra trava um combate incansável contra seu inimigo mortal o espírito de gravidade e os niilismos que o acompanha o nada de vontade e a vontade de nada.

Em da visão do enigma, um desafiante combate é encadeado entre o espírito da gravidade, na figura de um meio anão, meio toupeira, e Zaratustra. Na empreitada de uma longa subida, o primeiro, sobre os as costas do outro, embota com audácia a fatalidade lógica de uma lei física que rege a atmosfera terrestre: toda pedra atirada para o alto, inevitavelmente cairá no chão ou em cima da tua cabeça. Este cochicho irritante cai como gotas de chumbo nos ouvidos de Zaratustra até que a coragem acometida, a coragem matadora, assassina inclusive da própria morte, vibra seu berro fremente: Alto lá, anão Ou eu ou tu Mas eu sou o mais forte dos dois: tu não conheces o meu pensamento abismal Esse não poderias suportá-lo (Nietzsche, s/d, p. 166). Uma anunciação forte demais assalta a noite. Algo arrebatador em demasiado funde-se na visão inebriada de um enigma. A visita arrebatadora de forças dionisíacas, durante o frenesi dos pés, marca a memória e, mesmo que não se deixe passar ilesos espaços e corpos por onde atravessa, traz consigo o delírio inebriante da inocência de um esquecimento muito antigo onde se desgarra do pessimismo, não se ilude esperanças e respostas salvadoras. Simultaneamente, esta mesma força agarra-se, inquietantemente, na crina solta da vida. O caos organiza-se provisoriamente com a meticulosidade, graça e beleza procedente de forças apolíneas. Por mais que esta força tenha vingado mais veementemente em relação às bases filosóficas que sustentam a cultura ocidental e todo soterramento do pensamento trágico, não cabe deslindar-se de sua máscara escandalosa. Neste galope, a trote, pretende-se questionar: O que artistas e dançarinos tem feito de si mesmos? Como tem perseguido danças e vivido pelas beiras dos guizos de seu tempo?

Referências Bibliográficas NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2007., F. Assim falou Zaratustra. Trad. Mário da Silva. Círculo do Livro. São Paulo, s/d. TÓTORA, Silvana. Tragédia em Nietzsche e Lúcio Cardoso. Revista Verve Nº08. São Paulo: Nu-Sol, 2005, pp. 160-186.