Por que debater sobre interculturalidade é importante para a Educação?



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Transcrição:

Por que debater sobre interculturalidade é importante para a Educação? Simone Romani * & Raimundo Rajobac ** Resumo O objetivo do artigo constitui-se na tentativa de refletir por que o debate sobre a interculturalidade é importante para a educação. Na atualidade nos deparamos com diferentes povos, grupos sociais e culturas. Diante disso somos desafiados a pensar o quanto é importante tematizar processos educacionais tomando como perspectiva os diferentes povos, grupos sociais, seus diferentes costumes e modo de ser. Para alcançarmos esse objetivo refletiremos sobre a questão da interculturalidade como um campo que debate sobre os processos identitários socioculturais diferentes. E, num segundo momento esclareceremos a questão da interculturalidade e educação. Palavras-chave: Educação, Cultura, Intercultura. * SIMONE ROMANI é Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação UPF; é professora efetiva de Educação Física vinculada a Secretaria Municipal de Educação de Guaíba/RS e Tutora bolsista no curso de Licenciatura em Música a distância da UFRGS. ** RAIMUNDO RAJOBAC é Professor efetivo no Departamento de Música da UFRGS. Doutorando em Educação pela PUCRS e Mestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Possui Licenciatura em Música (UPF), Filosofia (URI/UPF) e Teologia (ITEPA). 65

A questão da interculturalidade Acreditamos que o debate sobre processos educativos atualmente deve tomar como objetivo principal, a tentativa de aprofundar as principais discussões envolvendo problemas socioculturais e questões sobre as políticas de ação afirmativa. Dentre as várias questões levantadas nesse contexto, decidimos tratar nesse trabalho sobre interculturalidade e educação. Nesse contexto surge a seguinte questão: Por que debater sobre interculturalidade é importante para a educação? Tendo como fio condutor esta pergunta, e procurando apontar para a importância deste debate no contexto atual, iniciaremos esclarecendo o que pode ser entendido por intercultura, e no momento seguinte, tentaremos expor a aplicação desse conceito dentro do debate atual sobre educação. Para melhor entendermos o que significa intercultura, usaremos das ideias de Reinaldo Matias Fleuri. Segundo esse autor: A intercultura refere-se a um complexo campo de debate entre as variadas concepções e propostas que enfrentam a questão da relação entre processos identitários socioculturais diferentes, focalizando especificamente a possibilidade de respeitar as diferenças e de integrálas em uma unidade que não as anule. A intercultura vem se configurando como uma nova perspectiva epistemológica, ao mesmo tempo é um objeto de estudo interdisciplinar e transversal, no sentido de tematizar e teorizar a complexidade (para além da pluralidade ou da diversidade) e a ambivalência ou o hibridismo (para além da reciprocidade ou da evolução linear) dos processos de elaboração de significados nas relações intergrupais e intersubjetivas, constituídas de campos identitários em termos de etnias, de gerações, de gênero, de ação social (FLEURI, 2003, p.17). O próprio conceito de intercultura já apresenta a complexidade que é tratar deste assunto. Falar de etnia, raça, cor, gênero, entre outros, são temas que antes de tudo devem mudar o nosso modo de ver o mundo; o que exige a suspensão de nossos preconceitos, e a compreensão das diferenças e identidades culturais de cada povo. Isso se justifica pelo fato de o mundo poder ser comparado a um mosaico ou a uma tapeçaria composta de múltiplas contribuições culturais, em que cada uma contribui para o significado e a beleza do conjunto (HEPBURN, 2005, p. 254). Fleuri por sua vez, afirma que o adjetivo intercultural tem sido utilizado para indicar realidades e perspectivas incongruentes entre si: há quem o reduza ao significado de relação entre grupos folclóricos; há quem amplie o conceito de interculturalidade de modo a compreender o diferente que caracteriza a singularidade e a irrepetibilidade de cada sujeito humano; há quem considere interculturalidade sinônimo de mestiçagem. Também o adjetivo transcultural é utilizado segundo diferentes sentidos. É entendido às vezes como elemento transversal já presente em diferentes culturas, ou então, como produto original da hibridação de elementos culturalmente diferentes. Dessa forma, a dificuldade de se controlar o entrelaçamento da terminologia e de se interpretar corretamente o conjunto das diferentes propostas impede-nos de produzir esquemas simplificatórios eficazes. Mas, por isso mesmo, torna o debate particularmente criativo e aberto ao aprofundamento. (2003, p.19). Desse modo Fleuri segue dizendo que: Para além da polissemia terminológica e da evidente 66

diversidade de perspectivas que se expressam nas teorias e propostas relativas ao multiculturalismo, interculturalismo, transculturalismo, constitui-se um campo de debate que se torna paradigmático justamente por sua complexidade: a sua riqueza consiste justamente na multiplicidade de perspectivas que interagem e que não podem ser reduzidas por um único código e um único esquema a ser proposto como modelo transferível universalmente. Entretanto, o eixo conceitual em torno do qual se situam as questões e as reflexões emergentes neste campo, e que caracteriza os mais espinhosos problemas do nosso tempo, é o da possibilidade de respeitar as diferenças e de integrálas a uma unidade que não as anule. Isto vale, de fato, tanto para o discurso das diferenças étnicas e culturais, de gênero e de gerações a ser acolhidas na escola e na sociedade, quanto para a distinção entre os povos a ser considerado nos equilíbrios internacionais e planetários (FLEURI, 2003, p. 19-20). Como vimos, interculturalismo pode ser também interpretado a partir de várias outras terminologias, contudo, dentro dos vários significados que possam existir, podemos encontrar algo que é determinante, e que é identificado quando se tratam da existência de diversas culturas, diversos povos, religiões, línguas, políticas, costumes, tradições, etc. É nesse sentido que Vieira assegura que trabalhar com o tema intercultura impõe reflexões sobre conceitos como cultura, identidade, reconhecimento, interculturalidade, multiculturalidade, e pluralidade. Pelo fato destes não serem conceitos uniformes, e por apresentarem diferentes abordagens e implicações, essa questão torna-se mais relevante, considerando que, ao assumirmos determinado conceito, estamos também assumindo uma postura política. (2001, p. 117). Nesse sentido é importante salientar que quando se pretende definir intercultura, o conceito de formação intercultural ainda está em construção. Um contato superficial com o tema pode sugerir que a intercultura busca harmonizar a convivência entre diferentes culturas, excluindo ou minimizando conflitos, na medida em que uma cultura tolere a outra. Mas não se pretende desenvolver tolerância. Tolerar significa suportar, agüentar, e essa não é uma relação de igualdade, mas de superioridade de uma cultura sobre a outra. O que se pretende é desenvolver relacionamentos cooperativos entre as diferentes culturas, em que sejam mantidas - e respeitadas - as identidades culturais. A intercultura não busca a hegemonia, mas o reconhecimento da diversidade. Os conflitos permanecem inclusive em nome da democracia, mas devem existir em uma condição de igualdade, onde as diferenças não se reflitam em preconceitos e discriminações (VIEIRA, 2001, p. 118). Na atualidade deve-se ter consciência da diversidade que existe entre as diferentes culturas, está aí o motivo pelo qual todas devem ser respeitadas mutuamente em suas diferenças. Pode-se admirar os valores do outro, não simpatizar com eles ou mesmo se opor a eles. Mas é perverso desqualificar ou subjugar os valores do outro aos nossos. (VIEIRA, 2001, p. 118-119). Assim, por interculturalismo deve-se entender e reconhecer, portanto, que no mundo no qual vivemos existem diferentes identidades culturais, onde cada uma possui sua particularidade, sua especificidade, que devem ser respeitadas ao serem reconhecidas como diferentes. Favorecendo dessa forma, a inter-relação, e a interação entres os 67

sujeitos e entre os vários grupos nas diferentes culturas. Embora tal discussão conceitual seja recente, o encontro entre culturas não é novidade do mundo moderno. Desde os tempos mais remotos os homens se encontram e mantêm relacionamentos culturais diferenciados. Mas o encontro entre culturas acentuou-se vertiginosamente com o processo de globalização. Com a globalização, que não é exclusivamente um fenômeno econômico, mas também ocorre nas dimensões culturais e políticas, o desafio de novas relações interculturais vem se impondo gradualmente com mais força no cenário mundial. Nesse processo de globalização verificam-se duas tendências simultâneas e contraditórias: características nacionais, étnicas e culturais buscam impor-se ao lado e contra a universalização específica e progressiva das culturas, imposta pelo império do capitalismo moderno como sistema global. O esforço realizado até aqui se constituiu em esclarecer, mesmo que de forma geral, o que pode ser entendido sobre intercultura. A seguir tentaremos demonstrar porque a interculturalidade é de grande importância para o debate sobre a educação nos tempos atuais. 2. Sobre interculturalidade e educação A interculturalidade na educação aparece como uma proposta pedagógica que busca desenvolver relações de cooperação, respeito e aceitação, entre diferentes culturas e sujeitos, visando dessa forma, preservar as identidades culturais, com o objetivo de propiciar a troca de experiências, e o enriquecimento mútuo. Com essa convicção Vieira certifica que a educação intercultural exige uma revisão crítica dos métodos e conteúdos do aprendizado para que sejam contemplados aspectos da vida multicultural. Assim, não podemos, inocentemente, crer que o mero convívio entre pessoas de culturas diferentes possibilite uma prática de educação intercultural. Não seria difícil comprovar que esse modelo natural do convívio poderia gerar justamente o contrário. Faz-se necessária uma reflexão contínua com vistas à superação das relações etnocêntricas presentes não apenas no contexto macrosocial, mas ao mesmo tempo no microsocial, pois, ao falarmos na aceitação de múltiplas culturas, também precisamos estar atentos às diversas identidades de grupos e indivíduos de uma mesma cultura (2001, p. 120). Como podemos constatar a educação intercultural busca o diálogo entre as culturas e também acredita na possibilidade do aprendizado e dos processos pedagógicos que incluam a todas elas. Surge como exigência de respeito e disponibilidade para o entendimento mútuo, a rejeição ao etnocentrismo e a exigência de uma revisão crítica do aprendizado que leve em consideração o mundo da vida multicultural (HOHMANN apud VIEIRA, 2001, p. 110). Nesse contexto, cabe à escola criar os meios necessários e suficientes para que possa realmente acontecer a inclusão dessa diversidade cultural. Uma realidade tão presente em nossas vidas e principalmente na vida da escola. A escola encontra-se, portanto, desafiada a abrir os caminhos para a diversidade. O que se deve considerar, é que a escola não deve pensar uma educação voltada apenas para determinados grupos sociais, etnias, raças, etc. Nessa perspectiva afirma Sacristán: Uma das funções educativas da escola seria provocar e facilitar a reconstrução dos conhecimentos, atitudes e formas de conduta, numa reelaboração crítica e reflexiva da 68

cultura dominante, através, principalmente, de vivências de novas relações sociais dentro da escola que conduzam a novos modos de pensar e fazer. A escola não pode compensar as desigualdades, discriminações e injustiças produzidas pela sociedade capitalista. Mas é possível desmascarar o convencimento do caráter inevitável das injustiças e atenuar seus efeitos, substituindo a lógica da homogeneidade pela lógica da diversidade (apud VIEIRA, 2001, p. 126). Analisando dessa forma, a educação intercultural necessita urgente da revisão dos conteúdos e das formas do aprendizado, os quais devem visar aspectos da multicultural idade, buscando superar os preconceitos e discriminações. É preciso criar a consciência de que Pluralidade vive-se, ensina-se e aprende-se. É trabalho de construção, [...] o envolvimento de todos se dá pelo respeito e [...] constatação de que, sem o outro, nada se sabe sobre ele, a não ser o que a própria imaginação oferece (BRASIL apud VIEIRA, 2001, p. 126). Dessa forma, é necessário que se faça uma discussão ampla sobre a função social da escola para que se torne possível considerar e praticar alternativas educacionais emancipatórias e junto a tudo isso, proporcionar uma reflexão sobre o sistema escolar, o currículo, o material didático e a formação de professores. Por este caminho pode dizer que a educação intercultural apresenta-se como uma proposta político-pedagógica que visa à formação para a cidadania e a superação de preconceitos e discriminações que expropriam de seus direitos indivíduos e coletividades (VIEIRA, 2001, p. 126). Vieira segue dizendo que a opção pela intercultura exige uma reflexão sobre a formação da nossa identidade, que se constrói a partir do contato com o outro. Esse se torna elemento constitutivo da nossa própria identidade. Necessitamos, portanto, de reconhecimento. E o reconhecimento da multiplicidade cultural tem de refletir-se, na dimensão política, em acesso pleno à cidadania para todos os sujeitos. (2001, p. 121). Refletindo sobre a temática que nos interessa nesse trabalho, Hepburn oferece a seguinte contribuição: Em 1916, o filósofo e educador americano John Dewey escrevia a propósito do ensino nos Estados Unidos: A mudança, indiscutivelmente, confere, às escolas a responsabilidade de manter nosso verdadeiro espírito democrático nacional. As virtudes de estima recíproca e de tolerância, assim como as boas disposições em relação ao outro que no início de nosso país eram produtos inconscientes de fatores circunstanciais, hoje devem fundamentar deliberadamente uma educação que forja os recônditos mais profundos do caráter. Essas afirmações de Dewey podem inspirar atualmente nosso trabalho de elaboração de programas educacionais destinados às sociedades pluralistas do século XXI (apud DELORS, 2005, p. 255-256). De qualquer modo a educação deve basear-se numa boa disposição, tolerância e reciprocidade em relação ao outro. Tanto os professores, como também as políticas educacionais, tanto a nível municipal, estadual e nacional são as chaves para que esse processo de mudança e abertura aconteça. A formação de professores para o século XXI deve comportar o estudo de línguas, a sensibilização para outras culturas e a análise crítica e da resolução de conflitos. (HEPBURN apud DELORS, 2005, p.256). Hepburn afirma ainda que se aspirarmos a um destino comum, é preciso partir de uma base comum mais 69

ampla e conhecer melhor as tradições e as sociedades das populações vindas da Ásia, da África, da América Latina e da Europa Oriental e etc. Se os educadores conseguirem integrar de forma mais eficaz os estudos e a apropriação de várias culturas, o pluralismo e a cooperação florescerão (apud DELORS, 2005, p. 255). Considerando a importância do papel do educador dentro desse debate sobre interculturalidade e educação, temos que concordar com ideia de que o educador é propriamente um sujeito que se insere num processo educativo e interage com outros sujeitos, dedicando particular atenção às relações e aos contextos que vão se criando, de modo a contribuir para a explicação e elaboração dos sentidos (percepção, significado e direção) que os sujeitos em relação constroem e reconstroem. Nestes contextos, o currículo e a programação didática, mais do que um caráter lógico, terão uma função ecológica, ou seja, sua tarefa não será meramente a de configurar um referencial teórico para o repasse hierárquico e progressivo de informações, mas prever e preparar recursos capazes de ativar a elaboração e circulação de informações entre sujeitos, de modo que se auto-organizem em relação de reciprocidade entre si e com o próprio ambiente (FLEURI, 2003, p. 42-43). Iniciamos o trabalho lançando a pergunta sobre a importância da interculturalidade para o debate atual da educação. Após apresentar de uma forma geral o conceito de intercultura, partimos para refletir sobre suas implicações no processo educacional. Vimos que esse tema apresenta grandes desafios, tanto quando consideramos as dimensões mais pessoais (educadores), até as que envolvem as grandes estruturas e as questões políticas. Contudo, a necessidade de uma educação que inclua o diferente permanece como um problema emergente, e que precisa ser debatido cada vez mais quando tratamos de processos educacionais. Referências BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-descendente e Africana. Brasília, 2004. BRASIL. Senado Federal. Estatuto da igualdade racial. Brasília, 2006. CASHNORE, E. Dicionário das relações étnicas e raciais. São Paulo: Selo Negro, 2000. DELORS, J. (Org.). A educação para o século XXI: questões e perspectivas. Trad. Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2005. FLEURI, R. M. Intercultura e Educação. Revista Grifos, n. 15, p. 16 47, maio. 2003. HEPBURN, M. A. O multiculturalismo, as mídias e a educação. In: DELORS, J. (Org.). A educação para o século XXI: questões e perspectivas. Trad. Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2005, p. 254 256. MARCON, Telmo. Cultura e educação: perspectivas políticas emancipatórias. In: DALBOSCO, Cláudio A.; CASAGRANDA, Edison A.; MÜHL, Eldon H. (Orgs.). Filosofia e pedagogia: aspectos históricos e temáticos. Campinas: Autores Associados, 2008, p. 291-320. KINCHELOE, J. L.; STEIMBERG, S. R. Repensar el multiculturalismo. Barcelona: Octeadro, 1999, p. 25-51. PIERUCCI, A. F. Ciladas da diferença. São Paulo: Editora 34, 1999, p.14-57. VIEIRA, R. S. Educação intercultural: uma proposta de ação no mundo multicultural. In FLEURI, R. M. (Org.). Intercultura: estudos emergentes. Florianópolis: MOVER; Ijuí: Ed. Unijuí, 2001, p. 117-127. 70