DESIGUALDADE, DIREITO E CIDADANIA: UMA PROVOCAÇÃO MODERNA



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Exemplo: O pedido tem a finalidade de atender as necessidades previstas. O pedido tem a finalidade de atender às necessidades previstas.


Transcrição:

DESIGUALDADE, DIREITO E CIDADANIA: UMA PROVOCAÇÃO MODERNA Rita Helena Sousa Ferreira Gomes 1 Resumo: O artigo é a adaptação de uma apresentação realizada na mesa redonda no I ENEDES e que tinha por tema Direitos humanos, Desigualdade e Cidadania. O texto visa, então, tratar de tal assunto de uma perspectiva pouco usual, a saber, a partir da filosofia hobbesiana. O intento primordial é provocar no leitor uma percepção da proposta política de Thomas Hobbes como algo de interesse para os cidadãos e não, como comumente se acredita, apenas para o soberano. Por seu caráter introdutório e voltado para não especialistas no pensamento hobbesiano, o artigo fundamenta-se essencialmente na tradução brasileira de 1974 do Leviatã ou da matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Palavras Chaves: Desigualdade, Estado, Liberdade, Filosofia hobbesiana Abstract: The following article is mostly based on an academic debate which had place on the I ENEDES. The round table that instigated this paper was called Human Rights, Inequality and Citizenship. Therefore, this article aims to analyses this theme on a unusual perspective: taking as reference the hobbesian philosophy. Thus, the main goal of the paper is to provoke the reader to note that Thomas Hobbes political proposal is interesting to the citizens and not just to the sovereign as is commonly believed. As this article has clearly an introduction character and does not has the intention to be directed to specialists on Hobbes thoughts, it is essentially based on the 1974 Brazilian translation of Leviathan, or Matter, Form, and Power of a Commonwealth Ecclesiastical and Civil. Keywords: Inequality, State, Freedom, Hobbesian Philosophy 1 Professora Adjunta IV. Universidade Federal do Ceará/Campus Sobral. Atualmente Professora visitante da Simon Fraser University (SFU) Vancouver/Canadá E-mail: ritahelenagomes@gmail.com Página 24

O artigo que segue resulta do convite de participação no I Encontro Interdisciplinar de Estudos sobre a Desigualdade Social (I ENEDES) realizado na cidade de Sobral em 2013. Na ocasião, fui chamada a contribuir com a mesa temática Direitos humanos, Desigualdade e Cidadania e decidi pensar essa questão a partir da filosofia maldita - principalmente no que tange à dimensão dos direitos dos cidadãos - hobbesiana. Essa escolha, porém, exige certos esclarecimentos, haja vista que a noção de direitos humanos tem suas raízes na época iluminista e nos ideias que aquele movimento sustentou; mais ainda, em certa medida, o recorte teórico hobbesiano chega mesmo a ser antagônico às concepções da era da Ilustração. Não considero, porém, que minha opção tenha sido uma fuga do tema do debate proposto. Foi, isso sim, uma provocação, o oferecimento de um olhar que se funda em uma percepção diferente acerca dessas grandes palavras chaves que nortearam a mesa e que, por isso mesmo, nos permite pensar de outros ângulos e, com um pouco de esforço e sorte, nos faz perceber o que, via de regra, é esquecido. Assim, tal como o resultado das discussões no ENEDES me pareceu frutífero, ouso agora provocar outros públicos, o que justifca, em última instância, a redação desse artigo. A poucas linhas, afirmei que a filosofia hobbesiana era maldita, poderia mesmo ter dito que Hobbes é um filósofo maldito. Mas entendo que a palavra maldito pode ser lida em duas acepções: 1) como almaldiçoado, perverso; e, 2) como daquele que se fala mal. Aqui, certamente, quero enfatizar como a visão de Hobbes como um pensador perverso está ligada a um mal dizer ( mal ler, se se prefere) sobre suas ideias. A filosofia hobbesiana, pois, é mal-dita, no sentido de que foi e continua sendo alvo de críticas ralas, que, por definição, insistem em não ouvir o autor, mas em supor a partir de um punhado de citações mal arranjadas o que ele defendeu. Talvez, caiba nesse momento que se questione: Quantos de nós, por exemplo, sabem de Hobbes alguma outra coisa para além da frase: O homem é o lobo do homem? Quantos sabem que essa frase é reproduzida por e não de autoria de Hobbes? Mais grave, quantos dos que bradam ser Hobbes um pensador do facismo, sabem colocar a famosa afirmação no devido contexto? Quanto dessa percepção preconceituosa (préconceito) invade as leituras supostamente especializadas? Enfim, preciso solicitar a você leitor uma breve suspensão de possíveis ideias formadas sobre o que é a filosofia política de Thomas Hobbes, para provocativamente mostrar que como um bom clássico da política, ainda podemos aprender com ele. Página 25

A política, para tornar-se uma ciência confiável tal qual a geometria, precisava, de acordo com nosso filósofo, partir de elementos simples evidentes e racionalmente ir se construindo. Para Hobbes, o elemento primeiro da política é o homem. Daí porque, sua obra magna, Leviatã, começa com um livro dedicado à antropologia (ou, ainda, psicologia). Em sua análise do humano, Hobbes cava sua má-fama, vez que apresenta a natureza humana de modo pouco lisonjeiro. O homem, em sua condição natural, é prioritariamente preocupado consigo mesmo e suas relações com os outros é marcada pela desconfiança, competição e pelo desejo de distinguir-se pela glória. O estado de natureza hobbesiano, pois, é um estado de guerra, no qual a vida é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta (HOBBES, 1974, p.80). Mas, esse homem-lobo que habita naturalmente em nós não está desprendido de seu ambiente. O que há, então, no estado de natureza que faz aflorar as condições que instauram o clima de insegurança (desconfiança, competição, glória)? Nele reinam a igualdade e a plena liberdade que, em última instância, vão configurar a esfera dos chamados direitos naturais. Hobbes muito modernamente supõe que os homens são iguais, tendo em vista não se diferenciarem a ponto de poderem ter expectativas (bem fundadas) de que possam fazer/desfrutar de algo que outro também não possa. A igualdade tal qual Hobbes a apresenta, não significa uma homogeneização completa dos indivíduos, mas sim um equilíbrio entre seus poderes que desemboca num justificado direito concedido pela natureza de fazer tudo aquilo que lhe pareça útil para suas necessidades/sobrevivência. Dada essa igualdade de direitos por natureza, não há como justificar, seguindo os passos da teoria hobbesiana, nenhuma propriedade. Tudo pode ser usufruído por todos na medida que se considere a contribuição do seu uso para a satisfação de suas necessidades 2, eis que, o indivíduo não é dono nem do próprio corpo 3, pois outro pode considerá-lo útil para si. Essa análise da igualdade natural, resulta numa conclusão: num espaço onde cada homem decide suas ações única e exclusivamente pautado em suas percepções, suas interpretações e seus desejos frente ao mundo e aos demais, não há obrigações (regras) no 2 Vale ressaltar que garantir a sobrevivência num estado de guerra, extrapola a dimensão do saciamento de nossos desejos básicos de comer, beber, movimentar-se, etc. Numa tal situação cabe a justificativa, por exemplo, de acúmulo e de bens que podem parecer superficiais, posto que num ambiente no qual a desconfiança e a defesa se impõem, todas as armas e estratégias (ou praticamente todas) são validadas racionalmente. 3 Renato Janine Ribeiro (1999)apresenta essa problemática da propriedade em Hobbes no início de seu Capítulo III e, dentre as várias elucidações a esse respeito, coloca: Mas como dizer que o homem natural é dono de si memso? Ainda não há propriedade; nem este homem natural coincide consigo mesmo, nem tem como reconhecido um bem como exclusivo em troca da renúncia a outro. A um tempo clama direito a tudo, e todos reclamam o que ele ocupa, até o seu corpo; nada é próprio, tudo é comum. (RIBEIRO, 1999, p.83) Página 26

sentido forte do termo. No estado natural hobbesiano os indivíduos estão atomizados e, normalmente, seu encontro com o outro é violento (ou potencialmente violento). Assim, para o filósofo de Malmesbury, da igualdade e da liberdade plena só podemos extrair a guerra de cada um contra cada um. O estado de natureza hobbesiano é, em certo sentido, subumano, não só por causa da situação precária em que nos coloca, e sim, principalmente, porque em tal circunstância estamos impossibilitados de efetivamente desenvolvermos nossa humanidade. Tornamo-nos humanos, segundo Hobbes, na vida social. A humanização não é naturalmente posta, mas requer esforço, constante empenho do indivíduo para ouvir a voz da racionalidade. Razão esta que o empurra para fora da vida na multidão e o introduz num mundo coletivo, compartilhado. O mundo de signos compartilhados, em Hobbes, é o mundo possibilitado e sustentado pela política, ou seja, pela construção do Estado. O Estado, deste modo, só pode se instaurar pela via da desigualdade, do desequilíbrio de poder e da restrição da liberdade individual. O Estado cria uma vida em comum porque tem poder para fazer com que os indivíduos o obedeçam, tem poder para determinar e fazer cumprir o que define. O Estado tem poder desigual porque é resultado do somatório dos poderes individuais que lhe foram atribuídos pela via da autorização e representação. O conceito de desigualdade de poder, portanto, mostra-se essencial para compreensão da política hobbesiana, pois está na base do Estado e da própria justiça. Lembremos que, antes da edificação do leviatã, não há regras comuns exteriorizadas, ou seja, não há leis propriamente ditas. As leis, segundo nosso autor, pressupõem uma obrigação e, logo, a existência de uma instância capaz de punir aos que transgredirem o mando. Como obrigar se não se pode garantir que aquilo que foi requisitado seja cumprido? E como garantir o cumprimento de algo se, num ponto limite, não se puder castigar o desobediente? Sendo assim, não há como imaginar, dentro do quadro teórico hobbesiano, um aparato jurídico que exclua a dimensão da força (poder). E dizer que algo ou alguém é forte (poderoso) requer uma comparação. Só há fortes, porque há aqueles que não conseguem resistir a força que se apresenta. O valor de um homem, tal como o de todas as outras coisas, é seu preço; isto é, tanto quanto seria dado pelo uso do seu poder. Portanto, não é algo absoluto, mas algo que depende da necessidade e do julgamento de outrem. (HOBBES, 1974, p. 58) Em outras palavras, para a existência da esfera jurídica a desigualdade é pressuposto. Só há, assumindo uma perspectiva não metafísica de justiça, possibilidade de discernir o justo do injusto em termos comuns, quando acontece um desequilíbrio no poder. A igualdade Página 27

jurídica, portanto, é antecedida pela instauração de uma desigualdade qualitativa. Em termos paradoxais, poderíamos afirmar que a igualdade de direitos de uma sociedade só se faz em nome de uma desigualdade fundadora, a desigualdade de poder entre aquele que determina e impõe a Lei e aqueles que devem obedecer à ela. A desigualdade está na base do conceito de autoridade, na base do Estado 4. Assim, sabendo que a esfera jurídica é um braço da esfera estatal, nos colocamos diante de uma situação embaraçosa se estivermos presos ao senso-comum, a saber: mesmo a igualdade jurídica se funda na desigualdade de poder. Notadamente, não se trata aqui de inferir que o direito exista para ampliar as desigualdades, mas que as igualdades possíveis e defensáveis juridicamente só o são porque há uma máquina desigual o suficiente para fazer com que aquilo que ela diz seja tomado como lei, regra e obrigação. Também no tocante à liberdade, Hobbes não é ingênuo. O excesso de liberdade é nocivo. A liberdade individual em sua plenitude está associada, para esse filósofo, ao caos, à desordem de um espaço onde todos falam e ninguém ouve, e, logo, todos são, de certo modo, mudos. Da mesma forma que acontece com a análise da igualdade natural, a liberdade irrestrita dada pela natureza, nos dissocia. Por mais estranho que possa parecer, a liberdade natural nos encaminha ao seu extremo oposto: somos todos livres, logo ninguém é livre. A liberdade plena dada a cada um é na verdade inútil. Ao instaurar uma desigualdade, o Estado passa a ser o único que permanece com a liberdade natural, restando aos cidadãos uma liberdade limitada aos desígnios do soberano 5. Por isso, o assombro causado pelas palavras hobbesianas aos leitores liberais (e neoliberais). Pode ocorrer que um Estado cercei excessivamente as ações e escolhas de seus cidadãos, e, ao fazê-lo, não cometer nenhum injustiça, pois o autorizamos de antemão a tanto. Contudo, se esse risco existe, não é correto dizer que Hobbes o defende. Ao contrário, são muitas as passagens em que o pensador britânico alerta ao estadista que não convém assim agir. Leiamos o autor: Pois o objetivo das leis (que são apenas regras autorizadas) não é o de coibir o povo de todas as ações voluntárias, mas sim dirigi-lo e mantê-lo num movimento tal que não se fira com seus próprios desejos impetuosos, com sua precipitação, ou indiscrição, do mesmo modo que as sebes não são 4 Sobre esse assunto, recomendamos a leitura de Polin (1953), em especial do capitulo III ( La force et son emploi politique). 5 Interessa pontuar que a questão da liberdade dos cidadãos no Estado proposto por Hobbes, deve considerar também os chamados direitos naturais inalienáveis demarcados pelo autor nos seus diversos textos políticos. Compreendendo, porém, as limitações estabelecidas nesse artigo, me furtarei de alongar minhas considerações nessa seara, deixando somente algumas recomendações aos leitores interessados: Ribeiro (1999), Baumgold (1993), Bernardes (2002), Skinner (2008). Página 28

colocadas para deter os viajantes mas sim conservá-los no caminho. (HOBBES, 1974, p. 210/211) Também é inacurado crer que a desigualdade entre Estado e cidadãos impeça os últimos a questionar, em certas situações, o primeiro: Se um súdito tem uma controvérsia com seu soberano, quanto a uma dívida ou a um direito de posse de terras ou bens, ou quanto a qualquer serviço exigido de suas mãos, ou quanto a qualquer penalidade, corporal ou pecuniária, baseando-se em qualque lei anterior, tem a mesma liberdade de defender seu direito como se fosse contra outro súdito, e perante juízes que o soberano houver designado. (Idem, p.138) O que importa notar, pois, na leitura de um filósofo que amarra todas suas inferências políticas partindo da necessidade de criar artificialmente a desigualdade de poder é que isso não tem como consequência lógica a validação da desigualdade social entre os cidadãos. Os cidadãos são, em seu conjunto, os autores e receptores do Leviatã. Não há, na base do contrato fundador do Estado, um indivíduo que valha mais ou menos que outro. Se existem desigualdades entre os cidadãos no seio da sociedade essas são frutos da gestão estatal que tem direito de decidir como proceder frente às questões de interesse público (a própria delimitação do que é ou não de interesse público cabe ao Estado), e não da estruturação política enquanto tal. Se por um lado, os cidadãos não são naturalmente distintos, por outro o Estado, para atender aos contornos da natureza humana desejosa de reconhecimento e glória, pode criar títulos de honra e dignidade, atribuindo distinções aos súditos 6. Pode ainda distribuir desigualmente as propriedades, entendendo por propriedade não só as terras, mas também os materiais necessários à vida. O que pretendo grifar, no entanto, é que afirmar que um cidadão tem propriedade sobre algo (no caso, refiro-me prioritariamente aqui às terras), é o mesmo que dotá-lo da proteção de seu direito de usufruir deste algo excluindo os demais cidadãos, mas sem retirar o direito do Estado sobre tal objeto concedido. Ou seja, toda propriedade está sob a égide estatal, mesmo que aparentemente tenha como dono um cidadão. E Hobbes justifica essa manutenção do direito do Estado ante a propriedade individual, asseverando que é apenas porque o Estado existe que a propriedade pode existir 7. Porém, significará isso que no Estado-leviatã está chancelada e recomendada a desigualdade demasiada na distribuição? As palavras de Hobbes parecem dizer que o oposto, 6 Tenhamos em mente que Hobbes vive numa sociedade ainda marcada pelas categorias e valores da nobreza. 7 Como vimos, no estado de natureza não há propriedade. Somente com a instalação do Estado é possível rotular algo como meu ou teu. Página 29

tendo em vista que em suas reflexões sobre as coisas que enfraquecem ou destroem o Estado ele adiciona: Também existe às vezes no Estado uma doença que se assemelha à pleurisia, quando o tesouro do Estado, saindo de seu curso normal, se concentra com demasiada abundância em um ou vários indivíduos particulares, por meio de monopólios ou de contratos das rendas públicas, do mesmo modo que o sangue numa pleurisia, alcançando a membrana do tórax, causa aí uma inflamação, acompanhada de febre e pontadas dolorosas. (HOBBES, 1974, p. 202). Mais relevante ainda para dar seguimento às minhas articulações acerca da desigualdade social é notar que, em Hobbes, o motivo que leva à construção do Estado e, portanto, o que configura o seu objetivo maior é a segurança do povo. Não obstante, a definição apresentada para segurança não se limita à simples preservação, mas abarca as comodidades da vida das quais os indivíduos podem desfrutar sem prejuízo para o Estado. E por segurança se deve entender não a mera preservação da vida em qualquer condição que seja, mas com vistas à sua felicidade. Pois os homens se reuniram livremente e instituíram um governo a fim de poderem, na medida em que o permitisse sua condição humana, viver agradavelmente. (HOBBES, 1998, p. 199) Não cabe ao Estado, certamente, providenciar todas as comodidades, mas permitir com suas posturas/ações/leis que aos cidadãos seja viável adquirir por seu esforço o necessário (e o supérfluo) para estabelecer um vida cômoda. Dada esta compreensão, o Estado deve administrar igualmente a justiça, taxar igualmente os cidadãos e, inclusive, garantir o suprimento das necedidades aos cidadãos que sejam incapazes de conquistá-las com seu trabalho (Cf. HOBBES, 1974, p. 209 e 210). O igual tratamento dos cidadãos nas diferentes áreas do domínio estatal confirma a ideia de que a desigualdade fundamental para instauração do Estado, assim como a limitação da liberdade individual exigida para tanto, não implicam no estabelecimento de uma sociedade marcada pela desigualdade e pela anulação do que é peculiar a cada sujeito. Longe disso, Hobbes constrói um Estado forte tão forte que carrega o nome de um monstro bíblico para que, considerando as caracterísiticas da natureza humana, cada indivíduo possa trilhar sem o perigo da morte violenta seu caminho. Inegavelmente, esse caminho é delimitado pelas margens feitas pelo Estado, mas, dadas as condições naturais, quais as outras possibilidades? Se aparentemente a filosofia política hobbesiana contrapõe-se aos pontos altos da bandeira Iluminista liberdade, igualdade e fraternidade uma leitura mais aprofundada nos mostra que tais ideais não são excluídos do Estado, mas tão pouco podem ser tomados sem Página 30

ressalvas. Pelo que foi exposto fica explícito que: 1) só cabe falar de igualdade como algo benéfico aos homens se por trás dela houver uma desigualdade; 2) a liberdade saudável e possibilitadora da vida comum tem como fonte a restrição imposta pelas leis aos cidadãos; e, 3) a fraternidade só pode brotar num ambiente de paz e, logo, fundado no desequilíbrio e na limitada liberdade. Volto a sublinhar que o olhar hobbesiano é incompatível com a visão geral que guiou o movimento Iluminista. Por sua vez, como muito do que fazemos e dizemos hoje em termos de política e gerenciamento social finca suas raízes naquele, não é esquisito que se toma a Hobbes como um mensageiro do diabo. Todavia, de fato, o que faz dele tão diferente é o modo como enxerga o homem. Vê um ser humano pleno de paixões e com uma razão calculadora e não como um depósito de verdades metafísicas - que só através do esforço se desenvolve. Um humano que, mesmo podendo e preocupando-se com outros, não o faz sem esquecer-se de si. Um humano insaciável, que quer sempre mais e que tem, tantas vezes, sua racionalidade embotada por seus desejos. Seu leviatã é forte, porque o homem é fraco. Mas, não nos enganemos, nesse autor infame, o bem do Estado é o bem do povo. Como ele mesmo diz: Pois o bem do soberano e o bem do povo não podem ser separados. (Hobbes, 1974, p. 211) O povo se constitui simultaneamente à edificação do Estado. Povo é um conceito, na visão hobbesiana, que permite relacionar a pluralidade de corpos e desejos com a unidade mínima (que não é pequena!) requerida pela construção do coletivo. O Estado é a voz do coletivo, da comunidade. O individual se submete (e não se dissolve!) ao comum, não por uma obrigação exteriorizada, mas para seu próprio bem. A vida solitária é a vida do lobo. Em comunidade, podemos ser também deuses. Fica então a questão: Será que Hobbes nada tem a nos ensinar? Página 31

Referências Bibliográficas BAUMGOLD, D. Hobbes political theory. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. BERNARDES, J. Hobbes e a liberdade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. HOBBES, T. Levitã: ou da matéria, forma e poder num estado eclasiástico e civil. São Paulo: Abril Cultural, 1974. HOBBES, T. Do cidadão. 2ª. edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998. POLIN, R. Politique et philosophie chez Thomas Hobbes. Paris: PUF, 1953. RIBEIRO, R. J. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo. 2ª. edição. Belo Horizonte: UFMG, 1999. SKINNER, Q. Hobbes e a liberdade republicana. São Paulo: editora UNESP, 2010.. Página 32