Futebol, memória e identidade nacional nas copas do mundo



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Anpuh Rio de Janeiro Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro APERJ Praia de Botafogo, 480 2º andar - Rio de Janeiro RJ CEP 22250-040 Tel.: (21) 9317-5380 Futebol, memória e identidade nacional nas copas do mundo Resumo Felipe Di Blasi Neste trabalho analisamos a participação da mídia impressa na construção da identidade brasileira pelo viés do futebol. Dialogamos com as literaturas sobre nacionalismo, identidade, memória e globalização, investigando as narrativas jornalísticas emitidas nas Copas do Mundo de 1958, 1962, 1966 e 2002. Como hipótese, observamos que os processos de globalização estariam abalando os sentimentos nacionais e, conseqüentemente, deslocando as narrativas sobre talento e identidade geradas sobre o futebol brasileiro. No caso do futebol ser um dos elementos constituintes da identidade nacional, esta alteração não mais uniria o futebol a características como molejo, ginga, malandragem. Enfim, a idéia sobre o talento peculiar do jogador brasileiro, o futebol arte, estaria perdendo espaço como parcela da afirmação da identidade nacional. Introdução O esporte é compreendido como um dos instrumentos de transmissão de valores, devido aos ideais pacificadores que foram implantados desde o início das práticas esportivas i. No caso brasileiro, destacamos o futebol como nossa principal prática esportiva, nosso símbolo capitalizado internamente e lançado no mercado internacional das identidades. Com esta capitalização do futebol estamos afirmando, para nós mesmos e para outras culturas e nacionalidades, a parcela de nossa identidade que emergiu desta cultura esportiva, respaldada ao longo de décadas de prática e afirmação no cenário mundial, pelo capital simbólico ii adquirido para tal projeção e reconhecimento. (...) Eu tive a oportunidade de viajar por mais de 20 anos, com equipes do mundo árabe, equipes européias, asiáticas e até mesmo africanas e a gente sabe como é importante o futebol brasileiro. É o nosso melhor produto, e o Brasil mais bem acabado é o futebol. Temos que valorizar isso porque é o nosso lado cultural que mais o europeu e o estrangeiro conhecem, porque ele dá exemplo de qualidade para o mundo todo. iii É necessário realizar uma historiografia de como a imprensa trata a relação futebol identidade em diferentes momentos, a fim de que possamos dispor de parâmetros para entender o processo de

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 2 transformação da relação entre futebol e identidade nos dias de hoje. Neste sentido, este estudo tem como objetivo analisar parte do processo da afirmação de sentimentos identitários construídos a partir do futebol em relação à nação brasileira. Tentaremos demonstrar o modo como a imprensa que é por excelência um veículo de formação da opinião pública, de socialização de gostos, serviu de ferramenta para o desenvolvimento de sentimentos identitários tratou as participações vitoriosas da seleção brasileira nas edições das Copas do Mundo de 1958 e 1962, comparadas ao tom das narrativas da Copa de 2002. Soares & Helal, no artigo O declínio da pátria de chuteiras: futebol e identidade nacional na Copa do Mundo de 2002 iv, partem da hipótese de que o processo de globalização v estaria deslocando ou esvaziando o ufanismo nacionalista presente nas narrativas jornalísticas quando o assunto é a seleção de futebol. A análise empreendida por Helal & Soares (2003) indica que a mídia impressa sobre a Copa de 2002 apresenta uma nova perspectiva no tratamento do tema, em função dos complexos movimentos da globalização presentes no campo do esporte. Por esta razão, acabam por encontrar mudanças de foco na linha editorial do esporte, pois acreditam que a ênfase dada ao tema da nação passa a perder espaço para temas de caráter mais específico do esporte e de generalidades em torno do evento. Por exemplo, segundo os autores, os jornais apresentam matérias sobre torcedores da seleção brasileira que nada entendem de futebol, e afirmam que esse meio começa a dar espaço para a crítica ao futebol do passado. Nesta direção, destacam a coluna escrita pelo jornalista Aydano André Motta intitulada Aos estetas do futebol a vapor (JB: 23/06/2002, caderno de esportes, p. 3), na qual o colunista tece críticas às interpretações feitas ao futebol brasileiro a partir das memórias do passado (Helal & Soares 2003). Todavia, os próprios articulistas apontam para possíveis lacunas ou bias de suas análises: Temos que admitir que estamos partindo do pressuposto, presente em vários estudos sobre futebol e identidade, que a narrativa jornalística tinha no passado, principalmente a partir da Copa de 50, um caráter mais homogêneo e totalizante em torno do projeto nacional. No entanto, poderíamos questionar até que ponto as narrativas jornalísticas sobre as participações nesses eventos assumiram esse caráter homogeneizante no passado. Pois, se partirmos de outro pressuposto presente nos estudos culturais que afirmam não existir cultura pura e nem homogênea, e que tais construções são fruto de embates, pensamos que seja necessário revisitarmos os jornais por ocasião de outras Copas, com o olhar voltado para as transformações da narrativa esportiva no sentido comparativo, para a construção de uma sociogênese desta especialidade jornalística. (Helal & Soares 2003, p.12). Uma das características marcantes da globalização é sua rápida disseminação e seu poder de influência, em larga escala, sobre todos os campos da vida social. A globalização apresenta se mais forte nas sociedades ocidentais, porém caminha para o Oriente, disseminando valores políticos, sociais, religiosos, etc e provocando uma espécie de ocidentalização do mundo. Com a globalização, surgem

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 3 questões sobre a interpretação dessa interação entre representantes de diferentes povos e nações. Abalando de forma sutil o entendimento de estabelecidos e outsiders de cada cultura, o global pode estar acabando com tradições locais e forçosamente interferindo nas culturas mais resistentes, de forma a que sua interpretação tenha como parâmetro a cultura globalizada; conduzindo o pensamento dos que estão inseridos no paradigma globalizado (estabelecidos) a interpretar a cultura dos outros (outsiders) como de menor valor. A globalização pode assim ser definida como a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa. Este é um processo dialético porque tais acontecimentos locais podem se deslocar numa direção anversa às relações muito distanciadas que os modelam. (Giddens, 1991 p.69). Para explicar a visão de Giddens sobre a globalização, é necessário remeter os estudos ao processo de modernização. O autor não interpreta a modernização como o começo de uma nova era, ou sequer época da humanidade. Para Giddens, a globalização é a continuação de tendências originárias do processo de modernização iniciado na Europa do século XVIII. A entrada na era moderna, como visto anteriormente, substituiu as formas de sociedades tradicionais estáticas baseadas na agricultura por códigos modernos de comunicação, mensuração do tempo e espaço (advento do relógio), adoção de fichas simbólicas (dinheiro, capitalismo) e sistemas peritos (competência profissional, que organiza as áreas material e social em que vivemos). As sínteses sobre a formação dos nacionalismos apresentam, ao mesmo tempo, pontos em comum e lacunas, quando pretendem definir concretamente como as identidades culturais das nações são construídas, jogando com os sentimentos nacionais e criando a coesão social de que tanto necessitam. Se pensarmos na necessidade, tanto psicológica quanto sociológica, o homem necessita entender-se como um ser único (na perspectiva psicológica), tendo sua identidade própria e pertencente a uma comunidade de interesses (sociológica) que o situem como indivíduo pertencente a um grupo de referência. Um dos meios da construção e afirmação das identidades é a invenção de tradições que reafirmem o sentimento único do grupo social em questão (Hobsbawm, 1997). A história, segundo o autor, pode ser utilizada como uma ferramenta para o resgate de valores que fundamentem e reafirmem o pertencimento dos indivíduos a uma sociedade. E, mesmo quando não há um link histórico suficientemente convincente, este pode ser criado para que ocorra a afirmação e inculcação de valores naturalmente nos indivíduos que cresçam socializados nesta organização social. Neste sentido, a palavra identidade recebe a árdua e subjetiva tarefa de traduzir o sentimento de agrupamentos humanos que, unidos sob signos preestabelecidos intelectuais, afetivos, cognitivos, religiosos e morfológicos, entendem-se e promovem-se politicamente, em âmbitos local e/ou nacional e global. Analisando sob a

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 4 ótica global, a identidade transforma-se na moeda corrente entre os Estados nacionais. A identidade é o primeiro pilar a ser fundado na socialização e o último a ser derrubado quando há uma ruptura histórica que determine a dissolução de um Estado nacional. Como o marco zero do nacionalismo, a mudança da sociedade agrária para industrial durante a modernização criou uma nova organização social do trabalho e da existência. O novo modelo político-econômico necessitava ser entendido e assimilado como o centro dessa organização social, da qual todos se tornaram dependentes. Foi necessário criar uma engenharia de símbolos que inspirasse o sentimento nuclear nos indivíduos para que a economia obtivesse sucesso. Uma reeducação social montada sobre ideais. Esta nova organização capitalizava internamente o pertencimento ao grupo e, externamente, para outras nações, a sua estética nacional. O esporte, por sua vez, vira moeda desse mercado no qual o embate em campo esportivo entre Estados Nacionais, legitima o poderio econômico rankeando as nações. Voltando à temática futebolística, citarei alguns fatos ocorridos recentemente com diferentes times. No dia 14 de fevereiro de 2005, o time Arsenal de Londres entra em campo para um jogo contra o Crystal Palace sem jogadores ingleses. Todos os atletas inscritos para o jogo eram estrangeiros e o técnico era francês. A seleção brasileira que foi à Alemanha neste mundial de 2006, apresentou-se também muito globalizada, sendo que de seus 23 jogadores convocados, apenas dois atuam em equipes brasileiras. Da mesma forma que outros elementos vão se adequando aos novos trâmites do mundo globalizado, com o futebol não seria diferente. Neste sentido, o esporte também segue por caminhos tênues no que diz sentido à valorização do que é local, tradicional ou peculiar às características de cada país ou região. O papel da mídia impressa Visando a compreender a participação dos periódicos diários na engenharia de símbolos nacionais e o modo como agem acerca do jogo dos sentimentos identitários, observamos que a imprensa trabalha configurando uma estética nacional representativa ao jogar com as identidades formadoras dos Estados nacionais. Como exemplos, a Copa do Mundo de futebol e as Olimpíadas são eventos que funcionam na linguagem do mercado das nações, ou seja, esse mercado gera um evento esportivo, relacionando os estados nacionais com diferentes objetivos pacificadores, econômicos, hegemônicos, etc. Os ideais pacificadores que envolvem esses eventos não dão conta das diferentes expectativas com que os países se lançam às competições. O caráter competitivo de cada nação acaba gerando, interna e externamante, um capital simbólico sobre as conquistas, e projetando a hegemonia desta ou daquela nação no cenário esportivo mundial. Atualmente, os objetivos econômicos alcançaram um campo ótimo de atuação no esporte, em que contratos milionários com patrocinadores e a troca de atletas entre países são práticas comuns.

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 5 Durante os eventos esportivos internacionais, a imprensa utiliza a linguagem deste mercado das nações. Na esfera econômica, os índices do PIB e da balança comercial compõem o discurso oficial dos Estados e órgãos internacionais. O mesmo parece ocorrer quando a imprensa apresenta o ranking nas Olimpíadas sobre a conquista de medalhas por cada Estadonação. Isto é um produto construído pela imprensa que contraria o espírito olímpico do encontro entre atletas de diferentes nações, pois, para o COI, não está em jogo o ranking entre os Estados nacionais. Ao contrário, a FIFA monta o ranking de países por suas medalhas conquistadasvi e a imprensa divulga e maximiza os mais variados rankings, entre atletas, números de gols, etc. Na imprensa brasileira, essas construções sobre a linguagem estética do nacional nos remetem a três entradas: 1) Os jornais emitem suas narrativas na linguagem econômica e simbólica do nacionalvii. A Copa do Mundo em si assim como outros eventos desportivos é um mercado para o capital simbólico dos Estados-nação; 2) Essa economia simbólica do nacional teve sua desenvoltura, no Brasil, pelo futebol e outras expressões culturais, em que foi configurado um campo fecundo para a estética dos sentimentos nacionais; 3) Num passado quase recente, essa estética do nacional apresentou indícios de homogeneidade. Porém, devido aos processos de globalização segundo uma vasta e atual literatura, supõe-se que sua característica homogeneizante se encontra fragmentada atualmente. Ao acompanhar a trajetória da emissão de narrativas sobre os eventos de Copa do Mundo, notamos como o prestígio adquirido legitima interna e externamente a atuação do Brasil nesse mercado internacional de valores. Esses dados nos remetem ao seguinte modelo: Participação e observação nas dinâmicas do mercado comum Legitimação interna Legitimação externa Mercado das Nações Feedback realimentando os valores nacionais As nações são geradas sobre signos que as legitimam internamente, depois, esses signos são capitalizados externamente e, quando legitimados, são adotados e reconhecidos nos trâmites dos mercados nacionais. A entrada e interferência nos mercados nacionais geram um feedback, realimentando, em cada nação, seus valores nacionais, constituintes da identidade e do nacionalismo.

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 6 Conclusões preliminares Na relação entre os Estados nacionais, em âmbito global, principalmente comercial, e no mercado de valores de suas identidades de referência, procuramos entender como os processos de globalização, mediados principalmente pela rapidez de informação, podem interferir na política identitária dos Estados nacionais. Ao observarmos internamente os processos por que o Brasil passou, mesmo que tardiamente, quando comparados às sociedades européias, percebemos a semelhança das trajetórias na formação do Estado nacional. Esta formação tem elementos nos símbolos e valores para formar a identidade, e na memória, como ferramenta de edição para que ela seja mantida. A escolha da Copa do Mundo como lente para analisar a sociedade é justificada pela grande adesão que este esporte teve em nosso país, pois gostamos de propagar que este é o país do futebol. Os jornais configuraram a porta de entrada ao objeto de estudo por encerrarem a memória sobre os fatos ocorridos nos eventos estudados. Essas características da emissão de matérias na mídia impressa durante os eventos de Copas do Mundo indicam que, mesmo em tempos de globalização, o nacional não perde seu valor quando ilustrado pelos jornais. Apesar dos inegáveis processos de relação comercial entre os países e toda a diversidade de informação que acaba por aproximar culturas distintas pela adoção de práticas culturais fragmentadas, o local tende a preservar-se da descaracterização interna, utilizando a memória como ferramenta de manutenção dos valores e símbolos nacionais. Apesar de a globalização interferir internamente nas nações, existem mecanismos de preservação interna que são adotados, mantendo seu sentimento e valores particulares. Só assim, garantidas internamente, as nações podem lançar-se no mercado global, interagindo neste mercado dos Estados nacionais, cada uma com sua moeda cultural específica, seja no campo político, econômico ou esportivo. Referências bibliográficas: ABREU, A.A. A modernização da imprensa (1970 2000). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. ALABARCES, Pablo. Fútbol y patria El fútbol y las narrativas de la nación en la Argentina. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2001. ANDERSON, B. Nação e consciência nacional. São Paulo, Ed.Ática, 1989. GUIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 7ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. HELAL, R. & SOARES, A.J. O declínio da pátria de chuteiras: futebol e identidade nacional na Copa do Mundo de 2002. Anais Recife COMPÓS 2003 (CD-rom XII reunião anual da Associação de Pós-Graduação em Comunicação 2003). HOBSBAWM, E.J. Nações e nacionalismos desde 1780. Rio de Janeiro. Ed. Paz e Terra,1990.

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 7 HOBSBAWM, E.J. & RANGER, T. (orgs.) A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992. Notas i Na Grécia antiga, todos os conflitos de ordem política entre os povos eram cessados em prol da realização dos jogos olímpicos. Na Inglaterra, dos séculos XVII, XVIII e XIX, o esporte foi utilizado como alternativa de ócio construtivo, de prazer. (ver Mandell, 1986). ii Atualmente, somos detentores do título de pentacampeões mundiais de futebol. iii Declaração de Carlos Alberto Parreira, em entrevista para a pesquisa de Salvador, 2004. iv Este artigo foi apresentado em Recife, na XII Reunião Anual da Associação de Pós-Graduação em Comunicação, COMPÓS 2003. v De acordo com este trabalho, globalização deve ser entendida como: (...) processos que atuam em escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de tempo-espaço, tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado. (HALL, id, p.67). vi Ver os relatórios da FIFA emitidos após as Copas do Mundo. vii Esta linguagem refere-se à capitalização interna dos símbolos nacionais, que serve de moeda no mercado das nações.