O RECONHECIMENTO DA ÁGUA BRUTA COMO BEM ECONÔMICO E A SUA COBRANÇA COMO INSTRUMENTO PARA UMA EFETIVA POLÍTICA NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS



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Transcrição:

O RECONHECIMENTO DA ÁGUA BRUTA COMO BEM ECONÔMICO E A SUA COBRANÇA COMO INSTRUMENTO PARA UMA EFETIVA POLÍTICA NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS EL RECONOCIMIENTO DEL AGUA BRUTA COMO BIEN ECONÓMICO Y SU COBRANZA COMO INSTRUMENTO PARA UNA EFECTIVA POLÍTICA NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS RESUMO Ana Paula Martins Albuquerque Alexandre Aguiar Maia A Constituição Federal de 1988, em seu art. 170, VII, elevou ao meio ambiente à posição de valor constitucional, já que além de possuir um capítulo específico para a sua proteção, também prevê a sua defesa entre os objetivos da ordem econômica e financeira. Ocorre que dentre os recursos naturais essenciais à vida, a água, fundamentalmente, é um dos elementos mais preciosos. No entanto, encontra-se distribuído pelo planeta de forma desigual: em algumas partes há extrema abundância, já em outras, completa escassez. O ponto de conflito, contudo, é acerca do valor atribuído à água para que, em conseqüência, se possa cobrá-la. Mas, ao se falar em cobrança da água, tem que se ter em mente a viabilidade de se instituir um comportamento adequado em termos de racionalização. Eis, então, os motivos pelos quais os princípios da cobrança pelo uso da água devem ser fundamentados nos conceitos de usuário pagador e do poluidor pagador, adotados com o objetivo de combater o desperdício e a poluição das águas, de forma com que quem desperdiça e polui paga mais. Afinal, o reconhecimento de que a água é recurso natural limitado, finito e escasso, é que nos obriga a tratá-la como um bem de uso público, essencial à vida, dotado de valor econômico. A tributação ambiental, propriamente, ainda carece de sistematização e principalmente adequação ao rígido sistema tributário nacional, erigido na Carta Magna de 1988. É necessário, pois, desenvolver mecanismos de proteção ao meio ambiente de forma compatível às regras e princípios constitucionais. PALAVRAS-CHAVES: ÁGUA; VALOR ECONÔMICO; TRIBUTAÇÃO RESUMEN La Constitución de 1988, en su artículo 170, VII, ha alzado al medio ambiente a la posición de valor constitucional, puesto que, además de poseer um capítulo específico para su proteción, también previene su defensa entre los objetivos de la órden económica y financiera. Ocurre que entre los recursos naturales esenciales a la vida, el agua, fundamentalmente, es uno de los elementos más preciosos. Sin embargo, su distribución por el planeta se encuentra de forma desigual: en algunas partes hay Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008. 1184

extrema abundancia, mientras en otras, hay escasez. El punto de conflicto, todavía, se refiere al valor atribuído al agua para que, en consecuencia, se pueda cobrarlo. Pero cuando se habla de cobranza del agua, es necesario que se tenga en mente, la posibilidad de se establecer un comportamiento adecuado en términos de racionalización. Esos son los motivos por los cuales los princípios de la cobranza por el uso del agua deven ser basados en los conceptos de usuario pagador y de poluto pagador, adoptados con el objetivo de combatir el desperdicio y la polución del agua, de manera que quien desperdiciar y suciar, paga más. Al fin de cuentas, el reconocimiento de que el agua es un recurso natural limitado, finito y escaso oblíganos a tratarlo como un bien de uso público, esencial a la vida, que tiene um valor económico. La tributación ambiental, propiamente, aún necesita sistematización y, principalmente, adecuación al riguroso sistema tributario nacional, erigido en la Constitución de 1988. Es necesario, por lo tanto, desarrollar mecanismos de protección al medio ambiente de forma compatible com las reglas y principios constitucionales. PALAVRAS-CLAVE: AGUA; VALOR ECONÓMICO; TRIBUTACIÓN. 1 INTRODUÇÃO A Constituição Federal de 1988 elevou ao meio ambiente à posição de valor constitucional, pois além de um capítulo específico para a sua proteção, também incluiu a sua defesa entre os objetivos da ordem econômica e financeira (art. 170, VII, CF/88)[1]. Por tais razões, há quem assegure que o Brasil é o único país no mundo a ter em sua Lei Maior um capítulo todo dedicado ao meio ambiente[2]. E há quem defenda ainda ser o art. 225 da Carta Constitucional uma cláusula pétrea imune a qualquer tentativa visando alterá-la ou suprimi-la por meio de emenda constitucional, dado que não será objetivo de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais[3]. O direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado é considerado um direito de terceira geração[4] e, por ser constitucionalmente assegurado, o Estado tem a obrigação inelutável de garantir aos seus indivíduos. Em contrapartida, a Carta Magna incumbe, além do Poder Público, a toda a sociedade o dever de preservá-lo, tanto às presentes, como às futuras gerações. E dentre os recursos naturais essenciais à vida, a água, sem dúvida alguma, é um dos elementos mais preciosos. Entretanto, encontra-se distribuído pelo planeta de forma desigual: em algumas partes há extrema abundância, já em outras, completa escassez. O fato é que a disponibilidade da água para cada cidadão está diminuindo drasticamente, principalmente, em conseqüência do seu mau uso. E são essas situações de escassez deste recurso que lhe atribui o seu reconhecimento de um bem econômico. A água é, como se percebe, um recurso natural limitado e sua valorização econômica deve considerar o preço da conservação, da recuperação e, principalmente, da melhor distribuição desse bem, além dos custos de monitoramento da quantidade, bem como da qualidade da água que está à disposição dos usuários e os recursos que deverão ser destinados às demais ações de gerenciamento. 1185

O ponto de conflito, contudo, é acerca do valor atribuído à água para que, em consequência, se possa cobrá-la. Assim, a cobrança pelo uso da água configura-se como um dos instrumentos das Políticas Nacional de Recursos Hídricos (Lei n o 9.433/97) que objetivam assegurar que a água seja controlada, bem como utilizada nos padrões de qualidade e na quantidade adequada, por seus usuários atuais e, pelas gerações futuras. Por isso, quando se fala em cobrança pelo uso da água, não se deve vislumbrar apenas o imediatismo de se arrecadar recursos para reverter a degradação atual existente, e sim, a possibilidade de se instituir um comportamento adequado e termos de racionalização do uso desse recurso tão valioso[5]. A cobrança pelo uso da água, desse modo, é um instrumento de controle regulamentado na forma da lei[6]. Ocorre que para alguns doutrinadores, a obrigação de pagar pelo consumo da água provoca exclusão social e redução a seu acesso. O impacto social de tributos incidentes sobre a água é, para eles, inaceitável. Portanto, defendem que deve ser recusada qualquer forma de privatização, de mercantilização, bem como de comercialização baseada no "valor econômico" da água[7]. A simples análise da legislação, entretanto, não é suficiente para constatar a abrangência deste instituto, uma vez que existem muitos posicionamentos contrários à sua instituição por parte dos usuários, seja ao alegar que a água é um bem público e por esta razão não deveria ser cobrada, seja porque muitos, no sertão mais isolado, a consideram como dádiva divina ou santa, sendo inaceitável pagar para consumi-la[8]. Há ainda aqueles que não querem aumentar seus custos e outros, em contrapartida, que não acompanharam a evolução econômica que ocorreu em ritmo acelerado nos últimos tempos. Os sistemas econômicos estão em constante mudança e evolução, dependendo dos igualmente mutáveis sistemas ecológicos e sociais em que estão implantados. Para entendê-los, necessita-se de uma estrutura conceitual que também seja capaz de transformar, como ainda de se adaptar continuamente às novas situações[9]. De maneira em geral, a cobrança pelo uso da água é um instrumento de gestão e é uma das ferramentas das Políticas Nacional de Recursos Hídricos, juntamente com a outorga e os Planos de Bacias. Eis, então, o motivo pelo qual os princípios da cobrança pelo uso da água devem ser fundamentados nos conceitos de usuário pagador e do poluidor pagador, adotados com o objetivo de combater o desperdício e a poluição das águas, de forma com que quem desperdiça e polui paga mais. Afinal, o reconhecimento de que a água é recurso natural limitado, finito e escasso, é que nos obriga a tratá-la como um bem de uso público, essencial à vida, dotado de valor econômico. Há doutrinadores que defendem que o problema seja, especificamente, os instrumentos tributários, já que há uma enorme dificuldade na sua implementação, em razão da resistência à instituição e modificação de tributos. Alegam também que a sociedade, cada vez mais, exige uma reorientação da atividade tributária do Estado e que os tributos tanto podem ser utilizados para arrecadar os recursos necessários aos programas ambientais, para custear a prestação de serviços públicos e o exercício do poder de polícia destinado à proteção de recursos naturais, como ainda para orientar a atuação dos contribuintes em face ao meio ambiente[10]. Ocorre que por mais que a criação de novos tributos que tenham por hipótese de incidência um ato potencialmente lesivo ao meio ambiente pareça, para boa parte da 1186

doutrina, a solução mais coerente e viável, na concepção de outros estudiosos, só iria agravar ainda mais os encargos sobre o contribuinte brasileiro. O Brasil possui uma elevada carga tributária, de forma que falar em intervenção na atividade econômica através da instituição de um novo tributo pode parecer destituída de qualquer legitimidade. A tributação ambiental, propriamente, ainda carece de sistematização e principalmente adequação ao rígido sistema tributário nacional, erigido na Constituição Federal de 1988. É necessário, pois, desenvolver mecanismos de proteção ao meio ambiente de forma compatível às normas e princípios constitucionais. É preciso entender, ainda, que não é apenas na tributação ambiental que se encontra os instrumentos econômicos adequados para a proteção do meio ambiente. 2 O capítulo do meio ambiente na Constituição Federal de 1988: o conteúdo normativo do art. 225 Antes da Constituição Federal de 1988, não havia, nas Constituições brasileiras, previsão normativa específica acerca da proteção do meio ambiente natural. É, pois, a Carta Magna de 1988 a primeira a tratar deliberadamente sobre a questão ambiental. Pode-se dizer, assim, que ela é uma Constituição eminentemente ambientalista, assumindo o tratamento da matéria de maneira ampla e moderna[11]. Dessa forma, embora traga um capítulo específico sobre o meio ambiente, inserido no título Da ordem social[12], a questão ambiental perpassa todo o texto da Constituição, correlacionando-se com os temas fundamentais da ordem jurídica constitucional. Assim, há vários dispositivos expressos na Carta Constitucional em que os valores ambientais apresentam-se sob a forma de outros objetos da normatividade constitucional como, por exemplo, o art. 5, inciso LXXIII, que confere legitimação a qualquer cidadão para propor ação popular que vise anular ato lesivo ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Há, também, referências implícitas ao meio ambiente no texto da Constituição quando, por exemplo, o art. 21, inciso XIX, confere competência à União para instituir o sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e para definir critérios de outorga de direito de seu uso[13], está mencionando um dos recursos ambientais, como ainda está estatuindo sobre um instrumento da maior importância para o controle da qualidade das águas. O fato é que a Constituição Federal de 1988 tem o direito ambiental enquanto parte da ordem social, daí poder-se afirmar que se trata de um direito social do homem[14]. Eis o art. 225, da Constituição Federal de 88, in verbis: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: 1187

...... 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei. 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. 5º - São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais. 6º - As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas. De acordo com José Afonso da Silva, o referido dispositivo compreende três conjuntos de normas. O primeiro está no caput do artigo 225, da CF/88 em que se insere a normaprincípio, a norma-matriz[15], revelando, substancialmente, o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. O segundo conjunto, por sua vez, encontra-se no 1 do artigo 225, da CF/88 com seus incisos, que estatui sobre os instrumentos de garantia e efetividade do direito enunciado no caput do artigo. O doutrinador faz uma ressalva de que não se trata de normas simplesmente processuais, quais sejam meramente formais. São, na verdade, normas-instrumentos da eficácia do princípio, mas também são normas que outorgam direitos e impõem deveres relativamente ao setor ou ao recurso ambiental que lhes é objeto[16]. Observa-se que nessas normas conferem-se ao Poder Público os princípios e instrumentos fundamentais de sua atuação para garantir o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Finalmente, o terceiro caracteriza-se como um conjunto de determinações particulares[17], em relação a objetos e setores[18], referidos nos 2 a 6 do artigo 225, da CF/88 notadamente o 4, do referido artigo, nos quais a incidência do princípio constitucional do caput se revela de primordial exigência e urgência, dado que são elementos sensíveis que requerem imediata proteção e ainda direta regulamentação constitucional, a fim de que sua utilização se dê sem prejuízo ao meio ambiente. E porque são áreas e situações de elevado conteúdo ecológico é que o constituinte entendeu que mereciam, desde logo, proteção constitucional[19]. Na Carta Constitucional de 1988, pois, inicia-se uma nova jornada que permite propor, defender e edificar uma nova ordem pública, centrada na valorização da responsabilidade de todos para com as verdadeiras bases da vida, a Terra[20]. 1188

3 A água A água é a mais abundante substância simples da biosfera. Encontra-se em forma líquida (salgada e doce), sólida (doce) e de vapor (doce), nos oceanos e mares, geleiras, lagos, rios etc[21]. É, pois, indispensável às vidas humana, animal e vegetal. Por isso, é considerado um elemento precioso que sempre se revestiu, desde os tempos remotos, de dramaticidade quando a água superficial escasseava ou se achava a distância de aglomerados humanos, e os homens eram obrigados a procederem a escavações para obterem-na[22]. Acontece que esta preciosidade é desigualmente distribuída pelo Planeta: há extrema abundância em algumas partes e escassez em outras, acarretando naquelas o uso inconseqüente e, porque não, indiferente ao imenso valor que possui esse elemento, e em outras leva ao consumo racionado. A disponibilidade da água para cada cidadão está diminuindo drasticamente, em conseqüência do uso imoderado, do desperdício e da contaminação[23]. 3.1 O domínio sobre as águas Antes ao advento da Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei n 9. 433, de 8 de janeiro de 1997), o regime legal das águas era regulado pelo Decreto n 24. 643, de 1934, conhecido como Código das Águas. Com a Constituição Federal de 1988, o regime de dominialidade das águas modificou-se, extinguindo a propriedade municipal e privada, passando a admitir somente águas de domínio da União e dos Estados. Ainda que a doutrina refira-se às águas de domínio particular e águas de domínio público, a água caracteriza-se como um bem insuscetível de sofrer apropriação privada, uma vez que é indispensável à vida. Sob esse aspecto, a água é um bem livre para o consumo humano, animal e para fins agrícola e industrial. Mas não é livre para ser conspurcada a sua qualidade essencial, a sua pureza, indispensável ao consumo[24]. Eis o posicionamento atual da Constituição Federal de 1988 que reparte o domínio das águas entre a União e os Estados. São, assim, da União, de acordo com o art. 20, III, da Constituição Federal de 1988, os lagos, rios e qualquer corrente de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, assim como o mar territorial (art. 20, VI, CF/88), os potenciais de energia hidráulica (arts. 20, VIII e 176, da CF/88) e os depósitos de água decorrentes de obras da União (art. 26, I, da CF/88), como são os açudes construídos nas regiões castigadas pela seca. Dessa maneira, foi atribuída à União a competência para instituir o sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos, bem como definir critérios de outorga de direitos de seu uso (art. 21, XIX, da CF/88) e a competência privativa para legislar sobre as águas (art. 22, IV, da CF/88)[25]. 1189

E aos Estados foram atribuídas às águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União (art. 26, I, da CF/88). Incluem-se, portanto, os lagos em terreno de seu domínio e os rios que tenham nascente e foz no seu território, salvo os que estiverem nas condições mencionadas no art. 20, III, da Carta Magna de 1988, como de domínio da União. Abre-se, desse modo, aos Estados, Distrito Federal e Municípios, em comum com a União, a competência para registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos (art. 23, XI, da CF/88), sendo tais concessões de competência também da União (art. 21, XII, b, da CF/88). 3.2 A competência para legislar sobre as águas A Constituição Federal de 1988 centraliza essa matéria, conferindo competência à União para instituir o sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso (art.21, VIII, da CF/88). Reserva também a esse ente a competência privativa para legislar sobre águas e energia (art. 22, IV, da CF/88). Assegura, em contrapartida, aos Estados, Distrito Federal e aos Municípios, a participação nos resultados da exploração de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica (art. 20, 1, da CF/88). É, ainda, lei federal que incentiva a prioridade para o aproveitamento econômico, bem como social dos rios e das massas de águas represadas ou represáveis nas regiões de baixa renda, sujeitas à secas periódicas, nas quais a União, também, cooperará com os pequenos e médios proprietários rurais para o abastecimento, em suas glebas, de fontes de água e de pequena irrigação (art. 43, 2, IV, e 3 )[26]. José Afonso da Silva[27] defende não ser coerente atribuir aos Estados o domínio de águas superficiais e subterrâneas, sem lhes reconhecer a competência para legislar, ainda que fosse apenas suplementarmente, sobre as águas. Mesmo assim, as Constituições dos Estados não se omitiram na consideração da matéria. Pelo contrário, baseados na competência comum dos Estados para proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (art. 23, VI), assim como na sua competência para legislar concorrentemente sobre a proteção do meio ambiente e controle da poluição (art. 24, VI) e ainda sobre a responsabilidade por dano ao meio ambiente (art. 24, VIII), os Constituintes estaduais inseriram nas respectivas Cartas capítulos desenvolvidos sobre a matéria, reservando espaço para a proteção de recursos hídricos. É bem verdade que a normatividade dos Estados sobre águas fica adstrita ao que dispuser a lei federal a quem cabe definir os padrões de qualidade das águas e os critérios de classificação das mesmas. Não podem, dessa maneira, estabelecer condições divergentes para cada classe de água nem, muito menos, inovar no que tange aos critérios de uso. 1190

3.3 A água como um bem de valor econômico O instrumento da cobrança pelo uso das águas já estava contido genericamente na Lei nº 6.938/81, em seu art. 4º, VII, e determinando que a Política Nacional do Meio Ambiente visará a impor ao usuário uma contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos[28]. O reconhecimento da água como bem econômico decorre das situações de escassez deste recurso natural, fato esse que se apresenta com grande freqüência em inúmeras regiões do globo terrestre[29]. Mais que isso, a água tende a se tornar, a cada dia, um recurso natural mais precioso, a menos que sejam realizados progressos notáveis no campo da pesquisa e da sua aplicação econômica, aos processos de reciclagem e tratamento das águas residuárias, atualmente consideradas impróprias para o abastecimento humano e animal, em grande escala, e à irrigação de culturas. A água é, como se percebe, um recurso natural limitado. Sendo assim, passou a ser mensurada dentro dos valores da Economia[30]. Isso não quer dizer, contudo, que qualquer indivíduo possa, mediante pagamento de um preço, usar a água como lhe convier. A valorização econômica da água deve levar em conta o preço da conservação, da recuperação e, principalmente, da melhor distribuição desse bem, além dos custos de monitoramento da quantidade e da qualidade da água que está posta à disposição dos usuários e os recursos que deverão ser destinados às demais ações de gerenciamento[31]. Na lição de Cid Tomanik Pompeu[32]: Na fixação dos valores a serem cobrados, devem ser observados, dentre outros: a) nas derivações, captações e extrações: o volume retirado e seu regime de variação; b) nos lançamentos de esgotos e demais resíduos, líquidos ou gasosos: o volume lançado e seu regime de variação e as características físico-químicas, biológicas e de toxidade do efluente. Segundo o referido autor, os recursos arrecadados com a cobrança devem ser aplicados, prioritariamente, na bacia hidrográfica em que forem gerados, para serem aplicados no financiamento de estudos, programas, projetos e obras incluídos nos Planos dos Recursos Hídricos[33]. O ponto que é mais arguído pelos usuários é o valor atribuído à água. Este quantum deve albergar todos os custos já mencionados, mas também deve se basear na capacidade de pagamento dos usuários. Um estudo que demonstre a capacidade de pagamento dos diversos usuários e usos demonstrará a necessidade de subsídios para garantir um tratamento diferenciado viabilizador da instituição da cobrança, como se vê na água tratada e na energia elétrica. Como conciliar, porém, a teoria à prática, no que tange ao preço a ser cobrado pelo uso da água, notadamente em Estados secos como, por exemplo, o Ceará onde os custos para obtenção e reservação da água são elevados? Mitchell Lee Mathis[34], por sua vez, destaca que a cobrança pelo uso dos recursos hídricos não é tarefa simples, como bem se verifica atualmente nos demais Estados da Federação: 1191

The Pricing Problem ( ) Social, political, institutional and even religious forces can play as significant a role as economics in water management decisions. ( ) In practice, however, increasing the price of water is politically unpopular and policy makers are strongly motivated to avoid this instrument.[35] Diante de tão claros ensinamentos, constata-se que a cobrança pelo uso dos recursos hídricos objetiva reconhecer a água como um bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor, auxiliando, desta forma, a evitar o desperdício, além de obter recursos financeiros para o financiamento das ações referentes à operacionalização da gestão[36]. 4 A Política Nacional de Recursos Hídricos e a cobrança pelo seu uso Um dos papéis mais importantes do Direito no mundo atual é o de implementar políticas públicas mediante ação ordenada e coordenada da intervenção do Estado na atividade econômica. Dessa maneira, o Direito deixa de ser a cristalização das realizações sociais para ser um instrumento de transformação da sociedade[37]. Eis a relação entre o Direito e a implementação das políticas públicas, já que estas traduzem os meios indispensáveis para alcançar os valores estabelecidos pelos princípios jurídicos que veiculam os objetivos a serem alcançados pela sociedade como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que garanta o desenvolvimento nacional, erradicando a pobreza e a marginalização, e reduzindo as desigualdades sociais e regionais, abolindo qualquer espécie de discriminação[38]. Pode-se também exemplificar tais princípios que traduzem metas a serem alcançadas por toda coletividade aqueles que mencionam ser a Ordem Econômica pautada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, visando assegurar a todos existência digna, em conformidade com a justiça social, observados, vários princípios, dentre eles o da defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme impacto ambiental[39]. No que tange às águas, objeto de nossa investigação, a Lei n 9.433/97 (lei das águas), visando a regulamentar o inciso XIX da Constituição Federal de 1988, institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, definindo os objetivos e a composição do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH). Além disso, estabelece 1192

a composição e as competências de órgãos que aquele integra como, por exemplo, o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, os Comitês de Bacia Hidrográfica e as Agências de Água. A Lei n 9.984/00, por sua vez, dispôs sobre a criação da Agência Nacional de Águas (ANA), definindo sua natureza jurídica, competência e estrutura, dentre outras matérias[40]. Em janeiro de 2006, foi aprovado o Plano Nacional de Recursos Hídricos que reconhece a função dos Comitês de Bacia Hidrográfica enquanto espaços institucionais de gestão compartilhada entre o Estado e a sociedade, abertos à participação e à dinâmica social e não como mero apêndice da máquina estatal. Nas palavras de José Marcos Domingues: Além do princípio da participação, o Plano Nacional adotou o princípio da descentralização e o principio da subsidiariedade, cuja aplicação implica o dimensionamento da ação estatal a partir da instância mais próxima à realidade a ser atingida de modo mais eficiente pelo Poder Público na prestação de serviços e no respectivo custeio. O princípio da unidade de bacia refere-se à indivisibilidade geohidrológica das bacias hidrográficas, determinando que a gestão de águas considere toda a área de drenagem que se refere a um exutório comum, a fim de que seja efetiva e sustentável[41] [42]. O Código Civil de 2002, em seu art. 103, dispõe que o uso comum de bens públicos pode ser gratuito ou retribuído. De forma semelhante, o Código das Águas de 1934 já havia previsto a possibilidade de uso gratuito ou retribuído das águas, de acordo com leis e regulamentos da circunscrição administrativa a quem pertencesse (art. 36, 2 ). A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n 6.938/81, art. 4, VII), aplicada aos recursos hídricos, enseja a cobrança por sua utilização, desde que tenha finalidade econômica. Sendo assim, a possibilidade de exigência de retribuição financeira pelo uso de recursos hídricos ou por uso de bens públicos em geral, não configura inovação do art. 20 da Lei das Águas. Pelo contrário, o caráter inovador desse diploma consiste em caracterizar esta cobrança enquanto instrumento de gestão (art. 5, I, II, III, V e VI), a ser aplicado em conjunto com os demais instrumentos da política de recursos hídricos[43]. O fato é que a cobrança pelo uso de recursos hídricos tem como objetivos: a) reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor; b) incentivar a racionalização do uso da água e c) obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos Planos de Recursos Hídricos (art. 19). É aí onde o Direito Tributário possui relevante atuação nestas atividades, o que possibilita sua utilização enquanto instrumento de consecução das finalidades mencionadas. Nesse sentido, o liame entre Direito Tributário e a questão ambiental assume, a cada dia, uma significação maior em todo o mundo globalizado[44]. Afinal, a preservação de um meio ambiente saudável e a manutenção do desenvolvimento sustentável são finalidades incontestáveis. 1193

Assim, como gestor de políticas públicas de interesse da coletividade, o Estado tem o dever de buscar meios para atender à necessidade de proteção dos recursos naturais para as presentes e futuras gerações, atendendo disposição inscrita no art. 225 da Carta Constitucional de 1988. A interpretação sistemática da estrutura normativa do nosso país, obriga-nos a observar mandamentos por ela impostos, e além de compatibilizá-los entre si, assegurar a sua satisfação através de normas infra-constitucionais e das orientações políticas seguidas pelos poderes públicos [45]. Fica evidente que diante dessa realidade, não tem como excluir totalmente o Direito Tributário que, como parte do sistema, deve ter explorada sua finalidade social, ressaltando a função extrafiscal dos tributos, que podem ser amplamente utilizados em benefício dos interesses coletivos administrados pelo Poder Público. De fato, os tributos, em função de sua própria natureza, devem exercer uma finalidade eminentemente voltada ao bem comum, devendo, obviamente, ser otimizada sua utilização enquanto instrumento de implementação das políticas de proteção ao meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável. 5 A configuração da cobrança da água: a questão da outorga Pode até parecer, a primeira vista, absurdo admitir um ato administrativo que autorize o uso das águas superficiais e subterrâneas existentes nos corpos hídricos continentais (lagos, lagoas, rios, riachos, reservatórios artificiais, canais e poços). Mas, a simples existência deste bem em abundância em nosso país não nos garante acesso eqüitativo, seja pela má distribuição espacial, seja pela má qualidade, decorrente do descaso da Administração Pública e da população. Para corrigir esta situação, o constituinte estabeleceu na Carta Política de 1988, em seu art. 21, XIX, competência à União para definir os critérios de outorga dos direitos de uso de recursos hídricos[46], culminando com a Lei n 9. 433/97, em seus artigos 11 a 13, que traçou as diretrizes sobre a outorga de direitos de uso da água e estabeleceu que o regime de outorga de direitos de uso de recursos Hídricos tem como objetivos assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos da água e o efetivo exercício dos direitos de acesso à água. A leitura desse dispositivo, no entanto, não esclarece o instrumento, como também não estabelece seus objetivos, razões pelas quais alguns Estados iniciaram sua regulamentação em leis estaduais[47]. Essa norma legal é vinculante para as ações governamentais, nos âmbitos federal e estadual, no que se refere à outorga dos direitos de uso da água. Os governos não podem, pois, outorgar usos que agridam a qualidade, bem como a quantidade das águas, assim como também não podem agir sem eqüidade ao darem acesso à água que foi viabilizado mediante o instituto da outorga de direito de uso da água. Célio Augusto Tavares Sales[48] defende que a outorga é um instrumento de gestão que tem como objetivo o controle da quantidade e da qualidade das águas. A outorga é, dessa maneira, um ato administrativo através do qual o órgão gestor faculta ao solicitante o direito de usar determinada quantidade de água durante dado período e sob condições específicas. A outorga, instrumento de Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei n 9.433/97, art. 5, III), visa, repita-se, assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos das águas e o efetivo exercício dos direitos de acesso a ela (art. 11). 1194

No mesmo sentido, a Lei das Águas condiciona a outorga às prioridades de uso estabelecidas nos planos de Recursos Hídricos e à observância da classe em que o corpo da água enquadrar-se (art. 13). Enfim, a outorga é o instrumento que permite um controle dos usos das águas e da forma como afetam sua qualidade e quantidade, de maneira a conciliar as múltiplas demandas de uso[49]. Competente para outorgar é o Poder Público, qual seja o Executivo, e mais especificamente, aquele a quem a legislação específica designar esta atribuição. Neste sentido Paulo Affonso Leme Machado[50] leciona que: No sentido especificamente jurídico, a outorga vai exigir a intervenção do Poder Executivo federal (art. 29, I, da Lei 9.433/97) e dos Poderes Executivos estaduais e do Distrito Federal (art. 30, I, da lei mencionada) para manifestar sua vontade. A regulamentação da lei indicará os critérios gerais de outorga, como estes critérios integrarão as resoluções do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (art. 35, X, da Lei 9.433/97). A outorga não configura prestação de servidão pública, ao contrário, a outorga objetiva dar uma garantia quanto à disponibilidade de água. Apesar disso, em condições normais de abastecimento, a outorga de direito de uso desempenha papel fundamental no processo de alocação da água. A outorga de direito de uso da água é, desse modo, um dos instrumentos mais utilizados na gestão dos recursos hídricos. Não é certo afirmar que é o mais importante, pois todos são necessários ao gerenciamento deste bem. Com base na outorga, no entanto, é que se pode operacionalizar a cobrança pelo uso da água, o enquadramento dos corpos hídricos em classes de usos preponderantes, fornecer dados para o Sistema de Informações de Recursos Hídricos e, conseqüentemente dos Planos de Bacias e de Recursos Hídricos. A água constitui direito de todos para as primeiras necessidades da vida e seu uso tem função social preeminente, com prioridade para o abastecimento humano, aproveitamento social e econômico, inclusive como instrumento de combate a disparidade regional e a pobreza nas regiões sujeitas às secas periódicas. Além disso, é dever de toda pessoa física ou jurídica zelar pela preservação dos recursos hídricos nos seus aspectos qualitativos e quantitativos, e o uso da água será compatibilizado com as políticas de desenvolvimento urbano e agrícola e com o plano nacional de reforma agrária. No que tange aos princípios programáticos, a concessão, fiscalização e controle da outorga deverão destacar a necessidade de compatibilizar a ação humana em qualquer de suas manifestações, com a dinâmica do ciclo hidrológico, de forma a assegurar as condições para o desenvolvimento social e econômico, com melhoria da qualidade de vida e em equilíbrio com o meio ambiente, e assegurar que a água, recurso natural essencial à vida ao bem-estar social e ao desenvolvimento econômico, seja controlada e utilizada em padrões de qualidade e quantidade satisfatórios, por seus usuários atuais e pelas gerações futuras. 1195

A utilização da outorga busca respeitar também outras diretrizes da legislação, que estabeleceu a necessidade de planejamento e gerenciamento, de forma integrada, descentralizada e participativa, o uso múltiplo, o controle, a conservação, a proteção e a preservação dos recursos hídricos. 6 A observância dos princípios dos Direitos Tributário e Ambiental: o princípio do poluidor-pagador O Poder Público tem claramente a responsabilidade na preservação do meio ambiente. E por essa razão, o primeiro grande passo, indiscutivelmente, é uma consolidação na coordenação entre políticas e órgãos governamentais das áreas econômica e ambiental. Nas palavras de José Marcos Domingues: Tradicionalmente os órgãos formuladores de planejamento econômico, financeiro, energético etc., que controlam os recursos financeiros públicos, não têm como atribuição institucional a proteção ambiental e, não recebendo a adequada coparticipação ou interferência prévia dos setores ambientais abalizados, tendem a não sopesar ou não avaliar adequadamente as repercussões ambientais de decisões de política econômica, comercial, agrícola, energética e tributária[51]. A questão é que para promover a tal coordenação, há que se estruturar os serviços de fiscalização, monitoramento, planejamento e execução de políticas públicas. Tudo que gera despesas e ocasiona custeio da proteção ambiental. Eis o ponto em que se torna inarredável a imputação aos agentes poluidores, a responsabilidade da integração do valor das medidas de proteção ambiental nos seus custos de produção[52]. Essa diretriz é conhecida como o princípio do poluidor-pagador, expressamente previsto no art. 225,, 3, da Constituição Federal de 1988, tem forte influência no Direito Tributário para a gradação do tributo, conforme o índice de poluição provocado em razão do produto propriamente dito ou mesmo seu processo de fabricação[53]. Fundamental ressaltar que a aplicação do mencionado princípio, em matéria tributária, cinge-se ao campo da legalidade, no que se refere à poluição permitida pelo ordenamento, através de parâmetros estabelecidos em Resoluções do Conama e outros dispositivos quantificadores, ou de acordo com a tolerabilidade verificada em cada caso. Não existe tributo sobre a prática de fato vedado pela lei, pois, nesta situação, estar-se-ia aplicando uma sanção ao particular, o que não se coaduna com a idéia de tributação. No que se refere à cobrança pela utilização de recursos hídricos, especificamente, já está incorporada à tradição de vários países, em especial no tocante ao emprego dos corpos de água para transporte e diluição de despejos[54]. Cria-se, assim, sob o aspecto econômico, um preço pela utilização de recursos ambientais, que, do contrário, tendo 1196

custo-zero, tendem a ser desperdiçados pela falsa impressão de sua abundância ou caráter infinito, numa conduta irresponsável e perdulária que precisa ser alterada[55]. Daí a pertinência de se falar sobre a internalização dos custos ambientais, ou seja, da compatibilização destes com vistas à sua integração no valor dos produtos e serviços postos ao tráfico jurídico. Juridicamente, o princípio do poluidor-pagador pode realizarse tanto através do licenciamento administrativo, da imposição de multas, da determinação de limpezas ou de recuperação ambiental, como pela cobrança de tributos, enquanto fonte de recursos para custeio da proteção ambiental. De pronto, é fundamental elucidar que essa formulação impositiva do princípio do poluidor-pagador, de imputação ao poluidor do rateio do custo das ações estatais necessárias à preservação e recuperação ambientais, possui um sentido seletivo do princípio determinante da graduação da tributação, de forma a incentivar atividades nãopoluidoras e desestimular aquelas nefastas à preservação ambiental. Dessa forma, quando aplicado ao Direito Tributário, o princípio poluidor-pagador tem um sentido impositivo que é assimilado pela fiscalidade, tributação fiscal ou com fins arrecadatórios que é o campo, por exemplo, das taxas ambientais; e também um sentido seletivo, que é o campo da extrafiscalidade, tributação extrafiscal cuja finalidade não é arrecadatória, senão ordinatória ou regulatória da atividade econômica. 7 Tributação ambiental: a extrafiscalidade O Estado regulador, quando se depara com o problema das externalidades ambientais, costuma se utilizar de instrumentos jurídicos de regulação repressivos. Essa implementação de instrumentos jurídicos de regulação repressiva, entretanto, ocasiona sérios problemas estruturais em um país como o Brasil, marcado por imensas desigualdades regionais e sociais. Nesse sentido, o direito deixa cada vez mais de ser um fenômeno somente repressivo para se tornar um instrumento de controle preventivo, enfatizando as normas de organização e de condicionamentos que antecipam os comportamentos desejados, através de sanções que, ao contrário de serem punitivas, premiam aqueles que se comportam segundo comando normativo[56]. O Estado regulador caracteriza-se pela extensiva intervenção no domínio econômico em que a essencialidade da sanção, enquanto ato de coação, passa a ser vista como uma concepção demasiadamente estreita, de maneira que hoje se fala de sanções premiais. O problema é que tentar conciliar os interesses econômicos da civilização moderna com a preservação do meio ambiente é uma tarefa, no mínimo, complexa. No entanto, a figura da tributação ambiental tem-se mostrado como um instrumento promissor na luta pelo desenvolvimento sustentável[57]. É bem verdade que apesar de ter uma legislação moderna em matéria ambiental, o ordenamento jurídico brasileiro comporta-se de forma tímida diante de situações práticas. Os princípios convencionais do direito tributário tornam-se deficitários para suprimir as lacunas que existem no ordenamento e o legislador brasileiro revela-se mais 1197

preocupado com a tipificação da conduta lesiva do que com mecanismos que assegurem o cumprimento das metas ambientais. Da mesma forma, a criação de leis especificas que regulamentem a atividade arrecadatória do Estado também tem sido um entrave quase intransponível para a efetiva implementação de políticas públicas ambientais. O Brasil já possui uma elevada carga tributária, de forma que falar em intervenção na atividade econômica através da instituição de um novo tributo pode parecer, à primeira vista, destituída de qualquer legitimidade[58]. Assim, podem-se ressaltar os três níveis de atuação da atividade tributária no Brasil, quais sejam: a) fiscalidade com natureza puramente arrecadatória do tributo e sem finalidade específica; b) a parafiscalidade que são as finanças paralelas arrecadadas mediante delegação, por outras entidades, que não o próprio Estado e, por fim, c) a extrafiscalidade cujo objetivo está relacionado ao bem comum. É, pois, na extrafiscalidade dos tributos em que se objetiva a intervenção na economia, através de estímulo ou desestímulo de determinadas atividades[59]. A classificação, pois, dos tributos em fiscais e extrafiscais, parte do pressuposto de que os tributos podem assumir um sentido impositivo, quando imputa os custos de defesa ambiental ao poluidor (fiscalidade com fins arrecadatórios), ou seletivo, quando gradua a tributação visando condicionar a escolha do agente econômico para um fim desejado pelo Estado (extrafiscalidade com fim ordinatório ou regulatório da atividade econômica)[60]. Com efeito, em sentido positivo podem ser cobradas, das atividades poluidoras, taxas e contribuições de melhoria ou de intervenção no domínio econômico, objetivando o financiamento dos custos dos serviços públicos de preservação, recuperação, fiscalização ou monitoramento ambiental. Além da tributação ambiental propriamente dita, o Estado pode também se utilizar do sentido seletivo dos tributos tradicionais, que podem ser graduados de modo a incentivar atividades, processos produtivos e consumo de bens e serviços sustentáveis, e ao mesmo tempo desestimular o emprego de tecnologias defasadas e a produção e consumo de bens e serviços nefastos à preservação ambiental. É bem verdade que, a rigor, não se deveria falar em tributos extrafiscais, uma vez que não existem propriamente tributos extrafiscais. A extrafiscalidade, pois, é matéria de direito econômico já que todo tributo tem fins arrecadatórios, visando assegurar o funcionamento da máquina estatal. A extrafiscalidade, então, seria apenas característica de alguns tipos de tributos, que teriam dupla finalidade: a arrecadação de receitas e o direcionamento da atividade econômica para determinados fins desejados pelo Estado. Embora se possa identificar uma finalidade arrecadatória na extrafiscalidade, o que o legislador pretende é apenas subsidiariamente a obtenção de recursos, de maneira que o fracasso arrecadatório, neste tipo de tributação, significa que a finalidade foi alcançada, ou seja, que ocorreu a internalização dos custos ambientais por parte dos poluidores. A extrafiscalidade, dessa forma, ao invés de punir aqueles que provocam um dano ambiental, como ocorre quando o Estado se utiliza de comando e controle, ela premia, através de seletividade das alíquotas incidentes sobre bens e serviços, aqueles que desenvolvem atividade econômica não degradante, ou que adotam medidas efetivas de preservação ambiental, ou que consumam produtos ecologicamente sustentáveis. 1198

Seja como for, a extrafiscalidade ambiental dos tributos pode exercer um papel fundamental na proteção do meio ambiente, já que se encontra em perfeita sintonia com o princípio da preservação, vez que atua antes da ocorrência do dano ambiental, que em regra é de difícil reparação. Além disso, a extrafiscalidade promove uma interface positiva entre o direito ambiental e o do direito do consumidor[61]. Desse modo, ainda que o princípio da seletividade não esteja previsto de forma expressa na Carta Constitucional de 1988, existem vários exemplos de extrafiscalidade ambiental no Brasil, que utilizando o sentido seletivo gradua diferentemente os tributos tradicionais sobre bens e serviços sob o ponto de vista da proteção do meio ambiente, visando incentivar atividades, processos produtivos e consumo ecologicamente sustentáveis. 8 A Natureza jurídica das receitas provenientes da cobrança pelo uso da água Como já exposto, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n 6.938/81, art. 4, VII), aplicada aos recursos hídricos, enseja a cobrança por sua utilização, desde que tenha um fim econômico. Eis o motivo pelo qual o caráter inovador da cobrança como instrumento de gestão (art. 5, I, II, III, V e VI), tem que ser aplicado em conjunto com os demais instrumentos da política de recursos hídricos[62]. E como essa cobrança pelo uso de recursos hídricos tem como objetivo o reconhecimento da água como bem econômico, dando ao usuário uma indicação de seu real valor, o incentivo da racionalização do uso da água e a obtenção de recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos Planos de Recursos Hídricos (art. 19), a arrecadação dos recursos com a cobrança devem ser destinados, prioritariamente, à gestão da bacia de drenagem a que se referem às águas utilizadas. Importante ressaltar que os valores arrecadados estão vinculados, quase em sua totalidade, à implantação dos planos de recursos hídricos, tendo como prioridade o plano de bacia hidrográfica a que corresponde à arrecadação. Ao Poder Executivo, portanto, não cabe decidir sobre a aplicação dos recursos da cobrança pelo uso da água[63]. Por se tratar de um instituto novo, a cobrança pelo uso da água suscita o questionamento sobre a sua natureza jurídica. Faz-se indispensável, dessa maneira, investigar se a contraprestação pelo uso da água configura-se em um tributo ou um preço público. A discriminação, pois, deve ser feita, inicialmente, a partir da análise das diversas categorias de receitas públicas, espécie do gênero entradas financeiras[64]. 8.1 As receitas públicas tributárias 1199

Pode-se dizer, inicialmente, que a receita é a entrada definitiva de dinheiro e bens nos cofre públicos[65]. Evidente que, em decorrência do gigantismo do Estado, pode haver a entrada de recursos por diversos motivos. No percurso da História, vários autores fizeram classificações das receitas. O problema é que nessas classificações, dependendo da escolha do critério de discriminação que será utilizado sobre o objeto em estudo, a conceituação varia. De qualquer maneira, Regis Fernandes de Oliveira alerta para a importância de uma classificação que seja ao mesmo tempo útil e jurídica. A discriminação, pois, tem que levar em conta esse rigor jurídico[66]. E em relação à origem da receita, ela pode ser classificada, basicamente, em originária e derivada. A primeira é decorrente da exploração, pelo Estado, de seus próprios bens ou quando pode exercer atividade sob o que se conhece por direito público indisponível. As receitas originárias ou patrimoniais são produzidas por uma fonte interna do Estado, o patrimônio público a que se dá a destinação, correspondendo a uma prestação a que se obriga o devedor por um ato de vontade[67]. Eis a razão pela qual José Marcos Domingues também denominá-las como receitas contratuais ou voluntárias[68], já que para auferi-las, o Estado não exerce poder de império, nem impõe o pagamento ou a utilização dos serviços ou bens objetos de arrecadação. Já as receitas derivadas advêm do constrangimento sobre o patrimônio do particular. Ou seja, provêm de fonte externa ao Estado e são devidamente percebidas com base na coerção jurídica, independentemente da adesão da vontade do prestador à ordem determinada pelo Estado. Daí serem também conhecidas como receitas coativas. E é exatamente neste aspecto em que se distinguem das receitas originárias: por não advirem da exploração do patrimônio do próprio setor público, são adquiridas mediante a exigência sobre o patrimônio privado. Correspondem a estes tipos de receita os tributos e as penas pecuniárias. Mas é o tributo[69] que, na atual concepção de Estado, compreende-se, perfeitamente, a necessidade da sua existência, bem como da sua exigência. Caracteriza-se, assim, o tributo enquanto prestações obrigatórias, em espécie, exigidas pelo Estado, em função de seu poder de império e sem caráter sancionatório. Normalmente, visam à finalidade fiscal, qual seja obter os recursos necessários para o regular funcionamento do Estado. Modernamente, porém, a isso se agrega também a finalidade extrafiscal: estimular (ou desestimular) determinadas atividades, como forma de intervenção do Poder Público no domínio econômico. A coercibilidade, então, é traço característico dos tributos, mas aliado ao princípio da legalidade. E ainda que não seja função da lei conceituar, posto que a mesma deva conter uma regra de comportamento[70], o Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172, de 25.10.1966), em seu art. 3º, fornece um conceito legal de tributo: Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada. Desse dispositivo, tem-se que o cumprimento da obrigação tributária se faz pela entrega de dinheiro. Não se admitem, no ordenamento jurídico brasileiro, tributos cujo objeto seja prestações in natura ou in labore. É compulsória porque o dever jurídico tributário 1200

é imposto coercitivamente, pelo Estado, ao contribuinte, por lei, independente da vontade deste. Enfim, as receitas originárias provêm do próprio patrimônio público do Estado ou de relação disciplinada pelo direito privado, enquanto que as receitas derivadas advêm do patrimônio ou rendas particulares. 8.2 A cobrança da água configura-se em preço público ou taxa? O Código Tributário Nacional estabelece, em seu art. 4º, que não importa o nomem juris que é dado ao tributo, ou seja, sua denominação, demais características formais e a destinação legal do produto da sua arrecadação são suficientes para definir sua natureza jurídica, sendo esta determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação. Art. 4º. A natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la: I - a denominação e demais características formais adotadas pela lei; II - a destinação legal do produto da sua arrecadação. Só que embora o conceito de tributo ainda cause controvérsias em alguns tributaristas, não se compara às intermináveis discussões no que tange às suas espécies. O CTN, por exemplo, em seu art. 5º, menciona 03 espécies de tributo, a saber: impostos, taxas e contribuição de melhoria. Entretanto, discute-se sobre a natureza jurídica do empréstimo compulsório, dos preços públicos e das contribuições. Se os impostos são exemplo de tributos não-vinculados, as taxas são, por sua vez, exemplos de tributos vinculados (ainda que essa classificação seja confusa). Pressupõem uma atividade estatal específica, prestada àquele contribuinte que a paga. A Constituição Federal de 1988, diferente do que fez com os impostos, refere-se às taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição. Com fundamento no inciso II, do art. 145, da Constituição Federal de 1988, ambas as alternativas explicitam o desempenho de uma atividade imaterial do Estado, qual seja a de serviço público, processo natural, normal e necessário de atuação legítima do Poder Público[71]. Nas palavras do tributarista Hugo de Brito Machado[72]: Enquanto o imposto é uma espécie de tributo cujo fato gerador não está vinculado a nenhuma atividade específica relativa ao contribuinte (CTN, art. 16), a taxa, pelo contrário, tem seu fato gerador vinculado a uma atividade estatal específica relativa ao 1201

contribuinte. A primeira característica da taxa, portanto, é ser um tributo cujo fato gerador é vinculado a uma atividade estatal específica relativa ao contribuinte. Acrescente-se, pois, que a taxa é vinculada a serviço público, ou ao exercício do poder de polícia. As taxas poderão ser instituídas pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição[73]. Nas taxas de serviço, o fato gerador é a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto á sua disposição. O tributo é vinculado e, na modalidade de taxa de serviço, a contraprestação estatal ao contribuinte é um serviço público. O CTN procura conceituar serviços específicos e divisíveis nos incisos II e III do art. 79, mas não é esclarecedor. Desde que presente seus pressupostos, a taxas podem ser criadas por lei ordinária federal, estadual e municipal. Já as taxas de polícia também podem ter como fato gerador o exercício regular do poder de polícia. Pode-se dizer que o poder de polícia é o poder que tem a Administração Pública de limitar direitos individuais em função do interesse coletivo no que tange à manutenção da segurança, higiene e ordem pública. CTN, em seu art. 78, caput, define poder de polícia. Nas taxas de polícia, o fato gerador geralmente se expressa na concessão de licença para a prática de atos que dependem de autorização legislativa. Por isso, geralmente são chamadas taxas de licença como, por exemplo, a emissão de passaporte. No ordenamento jurídico, a definição de poder de polícia foi dada pelo CTN, quando assim o conceituou: Considera-se poder de polícia a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.[74] No tocante ao poder de polícia, o fato gerador da taxa é o seu exercício regular, da forma como preceituada no art. 77 do CTN[75]. Como leciona Edgard Neves Silva[76], (...) o termo exercício nos dá uma idéia dinâmica, de prática efetiva de atos, logicamente, na espécie, pelos Poderes Públicos. Estaria ele representado por atos preparatórios, exames, vistorias, perícias, verificações, averiguações, avaliações, cálculos, estimativas, confrontos, autorizações, licenças, homologações, permissões, proibições, indeferimentos, dentre outros, todos correspondendo a um juízo de valor emitido pela autoridade competente ou à prática de fiscalização. 1202

Já os preços públicos, por sua vez, receitas originárias, destinam-se a remunerar a aquisição do direito de propriedade ou de uso e gozo efetivo de bens públicos patrimônio do Estado (bens materiais), assim como serviços públicos (bens imateriais) efetivamente prestados sem caráter de compulsoriedade[77]. Desse modo, quando se trata de vender bens ou permitir sua utilização, não há dúvida a respeito. O Estado cobra o pagamento de um determinado preço uma vez que nessa situação não se questiona a natureza coativa ou não da atuação estatal imaterial, ou seja, aliena-se ou loca-se uma coisa desejada pela outra parte. Nem muito menos o Estado age como potestade pública, não praticando ato de império atinente a serviço público essencial, até porque a outorga é requerida pelo interessado[78]. O problema sobre a distinção entre taxas e preços públicos nasce quando se trata da remuneração de serviços, porque aqui se põe o dilema da natureza coativa ou não da atuação estatal serviço público. No que se refere, propriamente, às taxas e aos preços públicos, vê-se que não há consenso doutrinário na distinção, cujas conseqüências práticas são relevantes demais: se de taxa se tratar, cuida-se de tributo, sujeito a todos os princípios de direito tributário, principalmente só poder ser instituída ou aumentada por lei (em respeito ao princípio da legalidade). Já os preços são contratualmente fixados, independentemente de lei; todavia só podem ser cobrados pela utilização efetiva do serviço, enquanto à exigência de taxas basta utilização potencial (Súmula 545 do STF). No caso, especificamente, do aproveitamento de recursos hídricos, objeto de nossa análise, há que se fazer, primeiramente, uma distinção entre duas atuações estatais, quais sejam: a outorga para captação de água e para lançamento de efluentes (concessão de uso) e a distribuição de água e coleta de esgoto (serviço público). A natureza jurídica (se taxa ou preço público) da cobrança por distribuição de água e coleta de esgoto, por exemplo, já foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal como sendo preço público. Ocorre que a captação de água bruta dos corpos hídricos, de acordo com José Marcos Domingues[79], não tem como se confundir com o serviço público de distribuição de água, da mesma forma que o lançamento de efluentes nos corpos de água não se confunde também com o serviço público de coleta de esgoto. Nas palavras do autor: Os usos de recursos hídricos sujeitos a outorga e cobrança nos termos da Lei das Águas (art. 12 c/c art. 20) não representam prestação de serviços, senão a utilização de um bem público material. É dizer, usuário de recursos hídricos não recebe um serviço do Poder Público; ele adquire, através de outorga, o direito de uso desses recursos naturais, pertencentes à União ou aos Estados. E mesmo que assim não fosse, a contraprestação por aqueles serviços corresponderia ao regime tarifário e não ao tributário...[80] Ora, não se tem como cogitar tratar-se de taxa, uma vez que a outorga de água não corresponde a exercício de poder de polícia, nem, tampouco, a prestação de serviço público. Afinal, o valor dos recursos hídricos traduz-se num preço que é, como exposto, receita originária, patrimonial e voluntariamente prestada. Ou seja, é a contraprestação 1203