Esse impalpável mas não menos denso sentimento de lonjura e proximidade: a crítica de uma razão colonial.



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12 de Março de Esse impalpável mas não menos denso sentimento de lonjura e proximidade: a crítica de uma razão colonial. Portugal, na sua singular imaginação de si mesmo, como um povo de sonhos maiores do que nós 1, viu através da televisão, a extraordinária violência com que o povo de Timor-Leste se confrontou nas primeiras semanas de Setembro de 1999. Desta vez o drama era protagonizado pelo poder colonial da Indonésia. A ironia trágica 2 destes acontecimentos agudizou ainda mais o sentimento de perplexidade desses dias. As televisões, os jornais, as rádios ampliavam, pelas imagens e pelas palavras, esses sentimentos contraditórios de lonjura e proximidade com um povo ao qual a nossa história colonial e a nossa imaginação imperial nos ligava há séculos e, ao mesmo tempo, do qual fôramos abruptamente cortados pela emergência feliz da democracia trazida pela Revolução dos Cravos. Em Setembro de 1999, Timor-Leste foi um misto de apego melancólico e de raiva cidadã. Entre esta melancolia e esta raiva parecia estar também a convicção de que havia de ser possível fazer prevalecer uma opinião pública nacional 1

12 de Março de acordada do sonho do império, apesar de uma classe política prolongadamente negligente e descomprometida com a sua história colonial 3. A criatividade e a irreverência das iniciativas pela libertação de Timor-Leste 4, cobriu o país como uma imensa e insuspeitada onda vinda do tasi feto 5 índico até à costa atlântica de Portugal. Em Setembro de 1999, ao contrário do que tinha acontecido até aí 6, Timor-Leste colocava nas ruas milhares de pessoas, parava o trânsito e transformava a vida privada e pública das cidadãs e cidadãos em Portugal, numa prolongada jornada de luta e na aprendizagem súbita de quase tudo sobre aquele lugar tão longínquo. As personagens da libertação ou da ocupação tornaramse nomes comuns nos lábios das pessoas; toda a gente conhecia datas e antecedentes; reavivou-se a memória sobre os massacres que vinham a acontecer desde 1975 e tudo parecia compreender-se e fazer sentido. As expressões dos cartazes, bandeiras, autocolantes, títulos dos jornais e slogans pintados por todo o lado, denunciavam uma sociedade globalmente mobilizada em torno de 2

12 de Março de acontecimentos que se transfiguraram, rapidamente, em uma causa. Talvez nesses dias densos e profundamente emocionantes de Setembro de 1999 a nossa hiper-identidade tenha vivido, um ponto de fuga onde se cruzou a nossa realidade amarga e a nossa utopia 7. De facto, parece que o que se passou em Portugal no seguimento do anúncio dos resultados do Referendo em Timor-Leste foi uma majestosa manifestação de uma consciência emancipatória de si e dos seus fantasmas e, ao mesmo tempo, da guerra e da violência que acontecia naquela pequena ilha do Sudeste asiático. Convém, no entanto, não esquecer que o sentido mais profundo desta manifestação de solidariedade cumulada com as dores pela liberdade, nada deve ter a ver com ligações históricas imaginadas e ainda alimentadas por alguns. Eduardo Lourenço não deixa de chamar à atenção que não cabe a nós, os portugueses medir esse impalpável mas não menos denso sentimento de distância cultural que separa, no interior da mesma língua, esses novos imaginários. 8 3

12 de Março de É necessário não perder de vista a especificidade das/os timores relativamente ao povo português e a sua reivindicação firme de independência, não apenas da Indonésia mas também do seu passado colonial com Portugal. Trinta e um anos após a queda do regime fascista do Estado Novo e trinta anos após a declaração da independência dos países africanos de língua oficial portuguesa e de Timor-Leste, muitas feridas permanecem por cicatrizar. Os processos de reconciliação são difíceis e precisam de muito tempo de outro tempo que não apenas o dos Tratados Internacionais e dos relógios institucionais; necessitam de resgatar as diversas memórias, as memórias divergentes, e reconstruir o ambiente propício a um novo encontro expresso nas diversas línguas portuguesas em que estamos a dizer e a escrever as nossas histórias pós-coloniais. Nestas línguas portuguesas em que, de um lado e de outro do planeta se afrontaram os fantasmas e os quebrantos e se disse, sim à liberdade e sim à dignidade, naqueles dias longos de Setembro de 1999. É a partir deste contexto politicamente complexo e emocionalmente 4

12 de Março de intenso que se torna imprescindível pensar em Timor-Leste não como parte de uma história apenas aparentemente comum 9 mas como parceiro das histórias que ainda estão por contar. Coimbra, tal como no passado, pode tornar-se parceira de esta história comum que está por inventar, desta vez assente no diálogo responsável e justo entre Portugal e Timor-Leste. Tendo a memória da tragédia mas também a da alegria da independência, cumpre-nos agora sermos capazes de realizar um futuro em que todas/os tenhamos a ganhar em dignidade, amizade e uma vida melhor. Seja Coimbra a cidade dos Direitos Humanos, a cidade dos conhecimentos mas também a cidade de um humanismo cosmopolita, informado e solidário. Com Timor-Leste e com o seu Povo saberemos encontrar ajusta forma de continuarmos seguindo a história, desta vez independentes mas, profundamente, amigos. 1 Lourenço, Eduardo (1999), A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia. Lisboa: Gradiva, pp. 177. Este autor argumenta ainda que o nosso problema nunca foi o da identidade, mas do próprio excesso com que nos vivemos, em suma, o da nossa hiper- 5

12 de Março de identidade que historicamente nos adveio não só desse facto da nossa intensa singularidade, como suplemento que lhe foi agregado quando nos tornámos senhores da conquista da Guiné, Etiópia, etc. Eduardo Lourenço (1983), Crise de Identidade ou Ressaca Imperial, Prelo. 1, Out./Dez, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, pp. 15-22, p. 17. Também o sociólogo Boaventura de Sousa Santos chama a atenção para uma construção do imaginário português que assenta numa mitificação da sua centralidade no sistema mundo. Nas suas palavras, durante séculos, a cultura portuguesa sentiu-se num centro apenas porque tinha uma periferia (as suas colónias). Santos, Boaventura de Sousa (1997), Pela Mão de Alice O social e o politico na pósmodernidade. Porto: Afrontamento. Ainda Margarida Calafate Ribeiro trata este tema em que Portugal se vê como o império como imaginação do centro. Ribeiro, Margarida Calafate (2004), Uma História de Regressos. Império, guerra Colonial e Pós-colonialismo. Porto: Afrontamento, pp. 15. 2 Expressão usada por Miguel Vale de Almeida num artigo publicado no jornal Público no dia 13 de Setembro de 1999, com o título, Timor, Portugal e a esquerda. 3 Os movimentos portugueses de solidariedade com Timor-Leste e algumas personalidades denunciaram repetidamente e publicamente, durante duas décadas, aquilo a que chamaram o descaso político da sociedade, dos políticos e dos Governos portugueses acerca de Timor-Leste. Retomando esse debate, num artigo publicado no jornal Público, no dia 11 de Setembro de 1999, com o título, A terceira traição, José Manuel Barata-Feyo afirma que nas duas décadas que se seguiram a 1975 o conjunto da classe politica portuguesa nunca acreditou sinceramente na causa de Timor. 4 A este propósito consultar a imprensa do último trimestre de 1999. 5 Tasi feto é a expressão em tétum que designa o mar da costa norte da ilha de Timor-Leste e que quer dizer, literalmente, mar mulher. 6 Com excepção de alguma mobilização social depois de ter sido conhecido o massacre do cemitério de Stª Cruz que ocorreu em Díli em 1991. Contudo é de notar que esta mobilização foi parcial e pouco consequente em termos políticos. 7 Eduardo Lourenço (1983), Crise de Identidade ou Ressaca Imperial, Prelo. 1, Out./Dez, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, pp. 15-22, p. 21. 8 Lourenço, 1983; Lourenço, 1999: 192. 9 Como Margarida Calafate Ribeiro diz, o pós-colonialismo surge de um sentimento de necessidade de elaborar uma visão critica de entendimento da história colonial, dando voz àqueles que a sofreram ou, por outras palavras, registando, problematizando e desconstruindo a memória da história colonial escrita pelo colonialismo, ao confrontá-la com outras memórias desta história aparentemente comuns. (2004), Uma História de Regressos: Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo. Porto: Afrontamento, pp. 17. 6