Lei, Poder e Violência como Aspectos Constituintes da Civilização. Bianca Novaes



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Transcrição:

Lei, Poder e Violência como Aspectos Constituintes da Civilização Bianca Novaes Os sofrimentos que atingem o indivíduo, contrariando o programa do princípio de prazer, não apenas produzem desconforto nas pessoas, mas também as impelem a produzir obras estéticas sobre o tema e a refletir sobre o assunto. Como Freud já assinalara em O mal-estar na civilização (1930), utilizamos variados métodos contra esses sofrimentos que provém de três fontes: o poder superior da natureza, a fragilidade de nosso corpo (que é parte dessa natureza) e o relacionamento com os outros (a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade). Diante dessas muitas direções a partir das quais os sofrimentos nos atingem, a tarefa de evitar o desprazer sobrepõe-se a de buscar o prazer, relegando esta última a um segundo plano, e, deste modo, geralmente, contentamo-nos em sobreviver às mazelas da existência. Dentre os métodos que nos permitem suportar o caráter árduo da vida, destacam-se a fruição estética (o prazer de contemplar obras artísticas) e o trabalho intelectual. Mas, como Freud adverte, a atitude estética em relação ao objetivo da vida oferece muito pouca proteção contra a ameaça do sofrimento (p.90) e, além disso, ele aconselha a não dedicarmos nossos esforços a uma única alternativa de mitigar o sofrimento. Assim, não me contentei em assistir ao filme Tropa de Elite sem logo me engajar em uma reflexão sobre o tema desta obra. A primeira impressão que me veio ao ver o filme foi a de uma certa indignação diante do argumento, oferecido do ponto de vista do Bope, segundo o qual a classe média e a corrupção policial são as únicas responsáveis pela violência decorrente do tráfico de drogas. Felizmente, a própria narrativa do filme de José Padilha encarrega-se de mostrar que este ponto de vista unilateral não se sustenta, deixando o espectador perplexo diante das situações apresentadas por não conseguir apontar o verdadeiro responsável pelo conflito. Imediatamente, fui levada a pensar no mal-estar constitutivo da civilização, bem como no uso de drogas como um dos métodos apontados por Freud para aliviar um sofrimento já existente. Se por um lado, o uso de drogas alimenta o tráfico, promovendo a irrupção de uma violência que assola nosso cotidiano, por outro lado, o próprio consumo de

substâncias tóxicas é produto de um conflito que não pode deixar de ser considerado violento e que lhe é anterior. Portanto, quando o personagem Capitão Nascimento diz: Eu sempre me pergunto quantas crianças a gente tem que perder pro tráfico só pra um playboy enrolar um baseado - um ponto de vista muito ingênuo é apresentado. O Capitão Nascimento defende a lei até as últimas conseqüências, chegando ao extremo da violência como forma de fazer valer a lei a qualquer preço. A violência empregada pelo Bope revela um paradoxo próprio da lei, pois se, por um lado, o direito visa substituir o domínio individual conquistado pela força bruta pela vigência de uma lei representativa da maioria, por outro, essa lei é garantida pelo poder de força da polícia, ou seja, pela violência que a lei visava eliminar. Nas palavras de Freud: Espera-se impedir os excessos mais grosseiros da violência brutal por si mesma, supondo-se o direito de usar de violência contra os criminosos; no entanto, a lei não é capaz de deitar a mão sobre as manifestações mais cautelosas e refinadas da agressividade humana (FREUD, 1930, p.117). Deste caráter paradoxal da lei, alguns concluem que a ausência de lei seria a solução dos conflitos sociais trata-se de uma conclusão tão ingênua quanto a do Capitão Nascimento. Uma vez que a violência é anterior a lei, a inexistência desta última não acabaria com a violência. No entanto, o contrário também não é verdadeiro, pois a obediência à lei não coíbe a violência, antes, lhe fornece um acréscimo de agressividade. Mas, enfim, de onde vem essa agressividade constitutiva da civilização? Uma das teses de O Mal-estar na Civilização (1930) é a de que desenvolvimento da civilização é um processo comparável à maturação normal do indivíduo, sobretudo ao desenvolvimento libidinal do indivíduo. Isso é demonstrado quando Freud propõe-se a investigar a terceira e mais poderosa fonte de sofrimento: a relação com os outros os homens. De acordo com Freud, a relação mútua dos seres humanos ocupa uma função essencial no propósito da civilização, pois uma vez que esta, em suas conjecturas, nasceu dos laços oriundos da união dos homens no trabalho e da união do amor sexual, a civilização serve a dois objetivos: proteger o homem da ameaça da natureza e ajustar os relacionamentos mútuos entre os homens. Assim, por meio do trabalho o homem dominaria a natureza, evitando o desprazer, e, por meio da constituição de uma família, se relacionaria com o outro através do amor, buscando o prazer de amar e ser amado. No entanto, Freud

adverte que as coisas não se passam assim tão bem. A união do amor sexual exige o sacrifício pulsional ao orientar a escolha objetal para um membro do sexo oposto e ao impor a legitimidade e a monogamia como condições da união amorosa, além, é claro, de exigir a obediência ao tabu do incesto. Mas também os laços das relações de trabalho devem ser libidinais, pois a civilização visa a unir os membros de uma comunidade também de maneira libidinal, empregando, para isso, a identificação entre os membros e a inibição da pulsão em seu fim através das relações de amizade. Assim, o sacrifício da sexualidade é exigido tanto pela união do amor sexual quanto pela união com os membros da sociedade. Além do sacrifício da sexualidade, a civilização exige ainda o sacrifício da agressividade humana, pois a união do homem com todos os membros da civilização efetua-se por meio da obediência ao preceito de amar o teu próximo como a ti mesmo. Dois problemas derivados desse preceito são apontados por Freud. Primeiro, amar a todos indiscriminadamente implica não distinguir os seres amados especiais das pessoas em geral, necessitando, para isso, de uma retirada de investimento nos entes amados privilegiados para os entes comuns. Paradoxalmente, a família, que deu início à civilização, torna-se um empecilho a esta, pois a união em pequenas unidades opõe-se à união em grandes unidades, tal como preceitua o ideal da civilização. Segundo, amar ao próximo como a ti mesmo significa amar os teus inimigos, exigindo o sacrifício da agressividade inerente ao ser humano. Este mandamento impede que o homem encontre na relação com o inimigo um pretexto para satisfazer sua agressividade. Civilização e agressividade opõem-se: O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. (...) A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmo, constitui o fator que perturba nossos relacionamentos com o nosso próximo e força a civilização a um tão elevado dispêndio [de energia]. Em conseqüência dessa mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração (FREUD, 1930, pp.116-117). Assim, o relacionamento com os outros constitui um problema para o ideal da civilização, pois é impregnado de agressividade. Capitão Nascimento para fazer vigorar a lei, salvaguarda dos mais nobres ideais civilizatórios, emprega a violência mesma contra a

qual a lei se ergue. Ele encontra na defesa da lei a ocasião propícia para a satisfação de sua agressividade. Seus inimigos são, como ele assinala no início do filme, os que se omitem (os policiais que se calam diante das transgressões ao sistema) e os que se corrompem (os policiais militares). Ele está ao lado do grupo dos que vão à guerra, lutando pelos princípios que norteiam a legalidade. Os responsáveis pelo conflito que abarca os policiais honestos do Bope, os policiais corruptos e os traficantes são os estudantes. O narcisismo das pequenas diferenças aparece aqui como sustentado pela agressividade, promovendo a constituição da identidade através da hostilidade ao estranho. Muito embora o Capitão Nascimento se considere um indivíduo justo que se engaja nessa guerra apenas para defender a lei e a justiça social, o próprio filme assinala a implicação gozosa do personagem nesta luta, pois Nascimento, ao ver a atuação de Neto, confessa seu gozo na admiração pelo seu substituto: Os policias recém-formados do curso do Bope saem de lá acelerados e o Neto gostava de ação. (...) E com ele na ponta da minha equipe já tinham morrido mais de 30 vagabundos no Turano. Mas, voltemos à questão inicial: de onde vem essa inclinação para a agressão? Para responder a essa questão, Freud recorre ao dualismo pulsional entre pulsão de vida e pulsão de morte. De acordo com este dualismo, os fenômenos da vida são explicados pela ação concorrente ou oposta dessas duas pulsões: a de vida, que busca preservar a substância viva e reuni-la em unidades cada vez maiores; e a de morte, que busca dissolver essas unidades e conduzi-las de volta ao seu estado primevo e inorgânico. A agressividade é considerada como uma manifestação da pulsão de morte que pode apresentar-se mesclada à pulsão de vida quando se dirige a um objeto externo, como é o caso do sadismo e do domínio da natureza, ou pode apresentar-se isolada, quando é dirigida para o próprio eu. Assim, Freud chega ao super-eu e ao sentimento de culpa, essenciais à civilização. O desenvolvimento do indivíduo e o desenvolvimento da civilização apresentam-se, neste ponto, estreitamente relacionados. Uma vez que a agressividade representa um obstáculo à civilização a ela se opondo de forma explícita, a civilização dispõe de um método para dominar essa agressividade: esse método é a internalização da agressividade pelo eu, formando o super-ego, um agente psíquico que resguarda os valores éticos a fim de proteger o indivíduo da ameaça de perda de amor do outro, do desamparo. Uma das funções do super-ego é a consciência moral, que visa vigiar a obediência às normas ditadas

pelo super-ego. A mesma agressividade que a autoridade externa emprega contra o indivíduo passa a ser utilizada pelo super-ego contra o ego. O índice de satisfação dessa agressividade é revelado pelo sentimento de culpa, que infringe uma punição ao indivíduo quando este não apenas realiza atos contrários aos preceitos do super-ego, mas também quando a mera intenção de realizá-los é concebida. Além disso, Freud verifica que quanto mais alguém obedece aos princípios os super-ego, mas severo e cruel esta instância se torna, aumentando ainda mais o sentimento de culpa. A explicação de Freud é a de que o sentimento de culpa é uma satisfação substitutiva da renúncia à agressividade obtida na consecução dos preceitos super-egóicos, sobretudo quanto ao preceito de amar o próximo. É neste sentido que a lei, em sua intenção de coibir a violência, parece prover o indivíduo de um acréscimo de agressividade. Como Freud já advertira, a civilização ao exigir a renúncia pulsional passa a lidar com os distúrbios decorrentes deste sacrifício, pois, em suas palavras: Não é fácil entender como pode ser possível privar de satisfação um instinto. Não se faz isso impunemente (FREUD, 1930,p.104). Essa estreita relação entre lei e violência, me fez comparar o filme Tropa de Elite com um filme de 1962 de John Ford, chamado O homem que matou o facínora. Este filme conta a história de um jovem advogado idealista, Ransom Stoddard (Jimmy Stewart) que chega no pequeno vilarejo de Shinbone, acreditando que as leis do direito trarão o progresso da região e acabarão com a violência do lugar. Os assaltos e assassinatos que assolam a região são entendidos pelo jovem Stoddard como produto de uma barbárie resultante da ausência de legalidade. O ingênuo advogado, em vão, faz de tudo para fazer vigorar a lei, apesar das advertências que o personagem Tom Doniphon (John Wayne), rústico rancheiro exímio no manejo de armas de fogo, lhe faz. Este lhe diz que votos não ganham de armas e que somente poderá colocar sua placa de advogado no jornal se passar a portar um revolver. O desenrolar da história culmina quando o jovem consegue fazer a população votar e elegê-lo como representante dos interesses de Shinbone em Washington. Contudo esta vitória somente é obtida quando ele duela com o maior bandido da região, o facínora, e vence o duelo porque Tom Doniphon, muito bem escondido, atira em seu lugar acertando o bandido. Stoddard nem sequer percebe isso no momento.

O paradoxo interessante desta história é que a lei somente passa a vigorar através da violência, ou seja, por meio de um duelo de armas de fogo. Para que a lei, representada pela maioria e válida para todos indistintamente em oposição ao domínio da força bruta do indivíduo mais forte sobre o mais fraco, possa ser implementada, faz-se necessário um duelo. A lei, contra a violência, acaba por se consolidar nesta história por meio de uma violência. E quando Stoddard, muitos anos mais tarde, tendo se tornado senador, volta à região e conta esta história a um jornalista e lhe pergunta se a publicará este lhe diz: Não, senhor. Estamos no Oeste. Quando a lenda se torna fato nós a publicamos. Somente interessa ao jornalista publicar a realização em fato dos anseios da civilização, por isso não convém revelar um acontecimento real, permeado de agressividade, tão contrário aos ideais civilizatórios. A agressividade inerente tanto ao desenvolvimento do indivíduo quanto ao desenvolvimento da civilização aparece novamente como aquilo em que não queremos crer. O homem que matou o facínora, quando comparado à tentativa de responsabilizar um grupo pela violência decorrente do tráfico, oferecida pelo argumento do narrador do filme Tropa de Elite, parece um filme muito mais honesto e afim com a tese freudiana do mal-estar na civilização por assinalar a estreita relação entre a lei e a violência. No entanto, a narrativa de Tropa de Elite também deixa claro esta relação, distinguindo-se do argumento do narrador, que é o Capitão Nascimento. Nesta perspectiva, o filme de John Ford assinala a violência na própria instauração da lei, enquanto o filme de José Padilha apresenta a violência advinda da legalidade. Nesta obra, Freud termina por admitir que a civilização em sua luta permanente contra a agressividade entre os homens, a despeito de todas os sofrimentos que incube ao indivíduo, representa um progresso para a vida do homem. Contudo, nos adverte, em tom irônico, de que ela deveria prestar mais atenção às necessidades pulsionais do indivíduo: Que poderoso obstáculo à civilização a agressividade deve ser, se a defesa contra ela pode causar tanta infelicidade quanto a própria agressividade! (FREUD, 1930, p.146). Por fim, Freud confessa a esperança de que no futuro alguém se aventure a se empenhar na elaboração de uma patologia das comunidades culturais - o que seria mais fecundo do que atribuir as mazelas sociais à responsabilidade de determinados grupos humanos.