Trecho de "COMO AS CÉLULAS RECEBEM ESTÍMULOS" adaptado de Miller, Ratclif e Hartline A sobrevivência de qualquer coisa viva depende, em última análise, de sua capacidade de reagir ao seu mundo exterior e de regular o seu próprio ambiente interno. Na maioria dos animais pluricelulares, esta reação e regulação tornam-se possíveis através de células receptoras especializadas, as quais são sensíveis a uma grande variedade de estímulos físicos, químicos e mecânicos. Em muitos animais, inclusive no homem, estes receptores fornecem informações que excedem de longe às fornecidas pelos cinco sentidos tradicionais (visão, audição, olfação, gustação e tato). Os órgãos dos sentidos, que temos menor consciência, incluem importantes receptores que controlam o meio interno. Os órgãos receptores dos músculos, chamados fusos musculares, fornecem uma medida conjunta da tensão muscular, e outros receptores percebem o movimento de articulações. Sem estes receptores seria difícil o individuo mover-se ou falar. As células receptoras do hipotálamo, parte do cérebro, são sensíveis à temperatura do sangue; as células sensíveis à pressão do seio carotídea medem a pressão sangüínea. Outros receptores internos ainda controlam o dióxido de carbono em regiões especiais das grandes artérias. Os receptores de dor, largamente distribuídos pelo organismo, reagem a estímulos nocivos praticamente de toda natureza, os quais facilmente provocam a destruição de tecidos. As células receptoras não só têm funções e estruturas diversas, como também fazem conexão, em vários sentidos, com as fibras nervosas que se canalizam para o sistema nervoso central. Algumas células receptoras dão origem às suas próprias fibras nervosas; outras fazem conexão com fibras nervosas
formadas em outras regiões. Entretanto, todos os receptores exercem uma função comum: a geração dos impulsos nervosos. Isto não implica em que os impulsos ocorram, necessariamente, nas próprias células receptoras. Nos olhos dos vertebrados, por exemplo, não se conseguiu ainda detectar impulsos nas células fotorreceptoras: os bastonetes e os cones. Não obstante, os bastonetes e os cones, quando atingidos pela luz, estabelecem as condições físico-químicas que provocam impulsos nas células nervosas situadas atrás deles. Impulsos nervosos típicos são imediatamente detectados no próprio nervo óptico, o qual se compõe de fibras de células ganglionares separadas dos bastonetes e cones por, no mínimo, um grupo intermediário de células nervosas. Conseqüentemente, os fisiologistas esperam deslindar a seqüência minuciosa de fenômenos pelos quais uma célula receptora provoca a descarga de impulsos nervosos em seguida à deformação mecânica, absorção de luz ou de calor ou estimulação por uma molécula particular. De modo nenhum foram todos estes fenômenos explicados. Iniciaremos a nossa discussão com o fenômeno final de qualquer receptor sensorial - a formação dos impulsos nervosos. Em seguida, examinaremos com algum pormenor os eventos que ocorrem num receptor particular: o fotorreceptor da Limulus, o siri-ferradura. Finalmente, descreveremos algumas características do rendimento dos receptores que agem individualmente ou em conexão com outros. A fibra nervosa, ou axônio, é uma extensão filamentosa do corpo neurocelular. Toda a superfície da membrana celular, inclusive a do axônio, é eletricamente polarizada; o interior da célula tem uns 70 milivolts negativos em relação ao exterior. Esta diferença de potencial é denominada potencial da membrana. Em resposta a um estímulo apropriado, o potencial da membrana é
momentaneamente alterado no local, dando origem a um impulso nervoso que se propaga por toda a extensão do axônio (ver Katz, 1970, "Como as células se comunicam", outro artigo deste passo). Em qualquer fibra nervosa, os impulsos sempre têm essencialmente a mesma magnitude e forma e caminham com a mesma velocidade. Isto se tornou conhecido há 30 anos mais ou menos, desde os estudos pioneiros de E. D. Adrian na University of Cambridge. Ele e seus colaboradores descobriram que uma, variação na intensidade do estímulo aplicado a uma célula receptora afeta não a dimensão dos impulsos mas a freqüência com que são descarregados; quanto maior a intensidade, tanto maior a frequência dos impulsos nervosos gerados pelo receptor. Desta maneira, todas as mensagens sensoriais, concernentes à luz, som, posição muscular etc são expressas pelo mesmo código de impulsos nervosos individuais. O animal é capaz de decifrar o código das várias mensagens, porque cada tipo de receptor se comunica com os centros nervosos superiores unicamente através de seu próprio conjunto particular de canais nervosos. Adrian e outros investigaram o problema de como a célula receptora dispara os impulsos nervosos sensitivos. Adrian sugeriu que o receptor tende a diminuir de algum modo o potencial da membrana de sua fibra nervosa; isto é; deve despolarizar no local a membrana axônica. A existência de potenciais locais no olho é conhecida desde 1865 e mais tarde potenciais semelhantes foram registrados em outros órgãos sensoriais. No entanto, ainda não foi esclarecida a relação destas grandes alterações elétricas com a descarga dos impulsos nervosos. Contudo, para alguns tipos de olhos simples, a polaridade das.alterações de potenciais locais nos receptores é tal que parece despolarizar as fibras neurosensitivas. Isto levou Rajnar Granit, do Instituto Rainha Carolina de Estocolmo, a
propor designá-las pelo nome de potenciais "geradores". O ponto de vista atual admite que o estímulo da célula receptora dá origem a uma forte despolarização local da fibra nervosa sensorial, o que logo em seguida provoca uma seqüência de impulsos. Praticamente, a primeira evidência direta da geração de potenciais ao nível celular foi obtida em 1935 por um dos autores deste artigo (Hartline), que então trabalhava na Johnson Research Foundation da University of Pennsylvania. Ele encontrou o que parecia ser um potencial gerador, quando estudava a atividade de uma fibra simples do nervo óptico e de seu receptor no olho facetado do Limulus. Existia, sobreposta ao potencial, uma seqüência de impulsos nervosos. Em 1950, Bernhard Katz, do University College London, obteve evidência inequívoca de um potencial gerador num receptor algo mais simples: o fuso muscular dos vertebrados. Quando o fuso estava estendido, era registrada constante despolarização na fibra nervosa, que provinha do fuso. Visto ao osciloscópio, evidenciou-se que a linha básica do fenômeno registrado se havia deslocado levemente para cima, indicando aumento do potencial da membrana. Sobreposto a esta linha básica, ou seja, ao potencial local, havia uma série de "impulsos" representando potenciais de ação nervosos individuais. Quanto mais forte e mais rápida a tensão de estiramento, maior a magnitude do potencial local e maior a freqüência dos impulsos (Figura 1). A anáiise de inúmeros gráficos deste tipo mostraram que, no estado inalterado, a freqüência dos impulsos nervosos depende diretamente do valor do potencial alterado. Aplicado um anestésico no local, o fuso do músculo, os impulsos são abolidos, mas persiste a variação de potencial. Esta diferença de potencial, conclui Katz, constitui um elo essencial entre a tensão do músculo e a descarga de impulsos nervosos: de fato,
seria o potencial gerador. Ademais, o potencial só pode ser percebido em faixa muito próxima do fuso, mostrando que é conduzido passivamente, ou seja, sem maiores gastos de energia externa ao longo da fibra nervosa. Fig. 1 - O fuso muscular responde à tensão, emitindo impulsos nervosos em quantidade proporcional ao grau e velocidade da tensão. Estes gráficos feitos por Bernhard Katz do University Colege London foram os primeiros a mostrar que a tensão provoca a despolarização do nervo situado próximo ao fuso, isto é, a linha de base muda para cima em relação à linha de base. Esta despolarização é a condição prévia para que haja desencadeamento de impulsos nervosos ou potenciais de ação. O traço da despolarização é chamado de potencial gerador, por dar início aos potenciais de ação (1). (1) Durante cada potencial de ação (PA), o neurônio é inexcitável, fazendo do PA uma entidade única e indivisível, garantido pelo que se chama de período refratário absoluto. Pode-se dizer que aí o limiar para desencadear um PA é infinitamente grande. Após cada PA, o neurônio pode ser excitado, mas com um limiar maior. Durante um período chamado período refratário relativo (PRR), o limiar é diferente do repouso, quando o mesmo é constante. Pode-se considerar o limiar no PRR abaixando do infinito e tendendo a igualar o limiar em repouso. Se o potencial gerador ficar acima do limiar no PRR, o PA dispara de novo, se ficar abaixo não se dispara mais PA.
Importante confirmação do papel do potencial gerador, forneceu-a o trabalho de Stephen W. Kuffler e Carlos Eyzaguirre, então na Johns Hopkins University, usando as chamadas células receptoras de tensão de Alexandrowicz em crustáceos. São elas simples e grandes com dendritos (fibras curtas) e estão encaixadas em músculos receptores especializados. Kuffler inseriu um microeletrodo na célula e registrou o potencial de sua membrana bem como os impulsos nervosos em seu axônio. Ele observou que, quando os dentritos das células se deformavam ao se esticar o músculo receptor, o corpo celular sofria uma despolarização que se transferia lentamente para o lugar da formação dos impulsos, que é provavelmente no axônio próximo ao local onde ele emerge do corpo celular. Quando este potencial gerador alcançava um limite crítico, a célula descarregava uma série de impulsos nervosos; quanto maior a despolarização do axônio acima deste limite critico, maior a frequência da descarga. Atualmente, há grande evidência de que a célula receptora desencadeie uma série de impulsos nervosos locais, despolarizando no local da fibra nervosa adjacente - ou a sua própria ou uma fornecida por outra célula. Com poucas exceções, a fibra de um tronco nervoso não reagirá repetidas vezes, se se passar através dela uma corrente despolarizada contínua; responde apenas rapidamente com um ou mais impulsos e depois se acomoda ao estimulo e não mais responde. Evidentemente, a parte da fibra nervosa sensorial que se encontra junto do receptor deve ser especializada ao ponto de não acomodar-se rapidamente ao potencial gerador. Não obstante, é verdade que sempre ocorre um certo grau de acomodação ou de adaptação, quando uma célula receptora é exposta a um estímulo constante. Em todo caso, a iniciação dos impulsos nervosos nos axônios das células receptoras, provocada pelo potencial gerador, parece ser um fenômeno generalizado. A pergunta ainda persiste: Como o estímulo externo
produz o potencial gerador? Na maioria dos receptores estudados, não há evidência quanto a este caso. Somente no fotorreceptor é que se tem conhecimento exato da primeira etapa na excitação da célula sensorial. No entanto, o estudo do fotorreceptor está cercado de dificuldades especiais. Na maioria dos olhos, os receptores são pequenos e dispostos em densas camadas e suas estruturas nervosas associadas são complexas e altamente organizadas. Em células fotossensíveis, somente entre os receptores, existe evidência experimental direta dos fenômenos moleculares iniciais no processo da recepção. Sabe-se há cerca de um século que as células receptoras visuais tanto nos vertebrados como nos invertebrados tinham orgânulos especializados com um pigmento fotossensível. Nos vertebrados, este pigmento avermelhado, chamado rodopsina, pode ser divisado claramente nos segmentos externos dos bastonetes. O espectro de absorção da rodopsina humana corresponde aproximadamente à curva de sensibilidade da luz para a visão humana sob condições de baixa iluminação, isto é, quando apenas os bastonetes da retina estão em funcionamento. Isto vem comprovar ser a rodopsina a provocadora do primeiro fenômeno ativo na visão dos bastonetes: a absorção da luz pela estrutura fotorreceptora. Há evidência de pigmentos semelhantes nos segmentos externos dos cones, mas se mostravam mais difíceis de isolar e estudar. Sabe-se que os pigmentos visuais são proteínas complexas, mas verificou-se ser a parte do pigmento que absorve a luz, chamada cromatóforo, uma substância relativamente simples: vitamina A aldeído. Como contém numerosas duplas ligações químicas em sua composição, a vitamina A aldeído tem diferentes configurações moleculares conhecidas sob a designação de isômeros "cis" e "trans". Pelo trabalho de Ruth Hubbard, George Wald e seus colaboradores, na
Harvard University, sabemos que a absorção de luz transforma a configuração do cromatóforo de 11-cis-aldeído de vitamina A para trans, através de uma cadeia de fenômenos químicos e físicos até hoje desconhecidos. Esta reação fotoquímica constitui a primeira etapa que leva à iniciação do potencial gerador da célula receptora e finalmente à descarga de impulsos no nervo óptico. Este é o único caso em que se conhece o mecanismo específico através do qual uma célula receptora detecta condições ambientais. A comprovação de que a rodopsina orienta a resposta em relação a um estimulo luminoso pode ser encontrada, quando se compara o espectro de absorção da rodopsina do Limulus, com a sensibilidade que o olho dêste animálculo apresenta a vários comprimentos de onda. Em 1935, Clarence H. Graham e Hartline mediram a intensidade dos feixes em diferentes comprimentos de onda necessários para produzir um determinado número de impulsos no nervo óptico de Limulus. Sobrepondo uma curva de sensibilidade obtida através dêste experimento a uma curva de absorção encontrada por Hubbard e Wald para a rodopsina do Limulus, as duas combinam quase que perfeitamente. Quando atingido por ondas de 520 ângstrons de comprimento, onde a rodopsina absorve a luz com maior intensidade. O olho do Limulus provoca o maior número de impulsos por determinada quantidade de energia luminosa recebida. Verificou-se que a sensibilidade do olho do Limulus ao comprimento de onda é semelhante á do olho humano sob luz de baixa incidência quando a visão de bastonetes é que predomina. Muitas outras experiências sensoriais conhecidas são manifestações das propriedades das células sensoriais individuais. Talvez a mais elementar das experiências seja a nossa capacidade de perceber o aumento da intensidade de
um estimulo. Em tais condições, podemos estar certos de que as fibras sensoriais. que transmitem informações ao cérebro, são estimuladas mais rapidamente à medida que aumenta o estimulo. A experiência da adaptação sensorial também é conhecida; por exemplo, um cheiro forte geralmente parece diminuir de intensidade após algum tempo, embora medidas objetivas tenham mostrado que a sua intensidade se manteve inalterada. Fig 2 - A duração e a intensidade da luz têm um efeito equivalente sobre o olho do Limulus. Evidentemente, o receptor responde à soma total da energia recebida por um breve lampejo (setas), sem considerar como a energia é "acondicionada" em duração e em intensidade. Assim, um lampejo rápido e Intenso (à esquerda, acima) produz aproximadamente o mesmo efeito que um lampejo de intensidade 1000 vezes menor durante urm tempo 1000 vezes mais longo (embaixo, à direita). Obs.: Os grifos e a observação 1, em vermelho, são do coordenador da HP.