Em trânsito : incursões pela crítica de Josefina Ludmer



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Transcrição:

Em trânsito : incursões pela crítica de Josefina Ludmer Doutoranda, Débora COTA(UFSC) 1 Resumo: Propõe-se apresentar analiticamente os procedimentos de leitura do literário postos em prática pela crítica argentina Josefina Ludmer. Suas últimas publicações O gênero gauchesco: um tratado sobre a pátria e O corpo do delito: um manual, além de seus artigos críticos, apontam para um estudo da literatura sob o viés culturalista que põe em trânsito vários saberes. Além disso, são utilizadas estratégias metodológicas inovadoras, entre elas, uma estrutura rizomática de montagem do discurso crítico e a quebra, neste mesmo discurso, de gêneros textuais e/ou literários (tratado, manual, nota de rodapé, conto...). Tais procedimentos demonstram a inserção da produção crítica de Josefina Ludmer nas discussões teóricas do presente em torno da não-interpretação e da pós-autonomia da literatura. Palavras-chave: Josefina Ludmer, crítica, cultura, literatura Flora Sussekind, ao tratar dos estudos de Josefina Ludmer em artigo publicado em 2004, afirmava, entre outros aspectos, a preferência da crítica argentina por noções articuladoras, em trânsito em ou entre vários campos. Desta apreciação tomou-se o trânsito como uma noção abarcadora do trabalho desta autora já que também o prefixo trans figura como uma categoria crítica em importantes vertentes de análise do literário. Professora emérita de literatura latino-americana na Universidade de Yale (EUA), Josefina Ludmer hoje leciona, com certa freqüência, cursos em pós-graduações na Argentina. Sua produção crítica a tem levado a figurar entre os principais pensadores da cultura latino-americana, a polarizar polêmicas importantes na Argentina e demonstram sua associação ao culturalismo latino-americano. Os últimos dois livros de Ludmer, El género gauchesco. Un tratado sobre la pátria, escrito durante a década de 1980 e El cuerpo del delito. Un manual, da década de 1990, ambos traduzidos no Brasil 2, são obras que apresentam uma inusitada forma de manuseio das produções culturais, fragmentando o discurso elaborado a partir delas, criando relações e/ou associações desconcertantes, apelando para uma montagem com cortes e recortes e não para um discurso linear e progressivo. Abrir as páginas destes livros é se deparar com a dispersão. Resumi-los, abreviá-los não é representá-los. O gênero gauchesco vai ser, para a autora, muito mais do que as obras literárias ditas gauchescas. Neste gênero cabe de tudo: outros gêneros (biografia, crítica, conto, ensaio, o gênero feminino, entrevistas...), lei ou legislação, alta e baixa literatura, discursos do passado e discursos contemporâneos, categorias críticas. Mesmo um dos seus limites, o abre: O primeiro limite do gênero, a margem com o que não é ele, com seu espaço exterior, coloca-o em contato com o conjunto das escrituras entre a independência e os anos 80. Com todas: poemas, jornalismo, panfletos

políticos, teatro, relatos diversos, descrição de batalhas, partes de guerra, tratados de paz, leis, cartas, petições, testamentos, avisos, jogos de truco, ameaças, burlas, despedidas, insultos, bailes, festas e até felicitações de aniversário. (...) Poder-se-ia dizer então que no gênero está toda época e não somente a literatura da época. Ou que o gênero é o único que deixa ler a época. (LUDMER, 2002a, p.40) O corpo do delito, por sua vez, junta várias narrativas que têm como tema o delito, as quais são chamadas de contos de delito. Elas são narrativas sexuais, raciais, sociais, econômicas, de profissões, ofícios e estados e, com isso, a autora explora os vários sentidos do termo delito articulando não um fechamento, mas a pluralidade, constelações: Como se vê, só queremos contar uma série de contos que formam pares, famílias e árvores (as superposições, séries, cadeias, ramificações do corpo do delito) porque compartilham certos lugares comuns, familiares, como corresponde a um manual. E porque atravessam realidades. (LUDMER, 2002b, p.289) Está-se aqui diante de uma crítica que se efetua através do "múltiplo" - e não a partir de uma lógica binária, dualista, do tipo "um-dois", "sujeito-objeto", literatura e sociedade - uma crítica que tem como princípio o movimento. Decorre desta perspectiva e da recorrência à configuração fragmentária ou em séries e ramificações uma estrutura rizomática. O rizoma, pensado por Deleuze e Guattari em Mil Platôs (2005) como um modelo epistemológico ou um modo de leitura, não tem hierarquias e qualquer organização é passível de mudança. De um ponto qualquer de uma raiz pode surgir um novo broto, afirmam os autores. Em Ludmer tem-se idas e voltas, nada está fechado, não é linear, é uma multiplicidade que corre, expande-se. A própria organização do livro O gênero gauchesco, um conjunto de fragmentos, que a autora chama de antologia, dispostos anacronicamente, possui diversas ramificações de forma a levar a múltiplas possibilidades de sentidos, pois propicia infinitas combinações e recombinações dos textos. As notas de rodapé ilustram esta estrutura, pois podem ser textos muito maiores do que aqueles que as originaram. É a esta produção teórica francesa que surge junto aos eventos do Maio de 68, para onde nos remetem, em grande parte, os escritos críticos de Josefina Ludmer. Tal teoria foi discutida por um grupo que circulava em torno da revista Los libros, na Argentina, revista na qual Ludmer colaborou na década de 1970 3. Los libros tem o papel de interpretar e reproduzir, principalmente, as idéias do grupo francês que se organizava a partir da revista Tel Quel (1960-1982) 4. Althusser, Barthes, Deleuze e Derrida são alguns dos nomes-chave através dos quais chega-se a outros como o de Nietzsche e Lacan. Já em Cien años de soledad. Una interpretación, de 1972 5, na qual apresenta uma leitura intrínseca do texto literário, pode-se observar a presença da teoria francesa citada na prática analítica de Josefina Ludmer. À autora interessa analisar o tecido múltiplo de significações que se cruzam na obra de Gabriel García Márquez, no qual relações de parentesco e mito de Édipo, por um lado, e ficção e (meta)linguagem, de outro, servem como condutores desta análise. Em outros termos, Josefina Ludmer está atenta à combinação da crítica literária com a psicanálise, da teoria semântica de Philippe Sollers com a teoria da escritura de Jacques Derrida e ainda com a teoria do significante de Jacques Lacan 6.

À estrutura rizomática na qual está configurada os textos críticos citados, une-se ainda uma fuga, um desvio da interpretação do texto, da interpretação como explicação do significado ou sentido do texto, já que a autora pouco se concentrará no que o texto está dizendo. O capítulo três de O corpo do delito, intitulado Os Moreiras, toma a figura do Moreira como um paradigma da cultura Argentina, através do qual reúne várias narrativas ( contos ) que o apresentam como personagem. A Ludmer vai importar tudo que diz respeito a este personagem, a questão da virilidade, da violência popular, da violência política e do estado ao mesmo tempo, sua identidade social e sexual, seu aparecimento enquanto personagem da literatura, os vários modos como foi tratado. Monta uma genealogia, mostrando-o presente tanto na cultura argentina de fundação, na do processo de modernização, como na atual literatura de Nestor Perlongher ou de César Aira. Através dele e com ele lê a revista Caras e caretas 7 na qual confluem todos os escritores dos Moreira porque é a enciclopédia cultural da globalização e do fim do século, a revista de massa da Cosmópolis, internacional e local: lugar da mescla nacional de todas as linhas culturais do período. Por isso é que também ao tratar do Moreira, trata do tango e das patotas 8. Enfim, Josefina Ludmer desvia-se, parte da narrativa, mas não é na sua explicação que se detém. Como diria Barthes, vai da obra ao texto 9 : deixa de ver o conto ou o romance como uma entidade limitada, equipada de significações definidas que são tarefa do crítico descobrir, e parte para um jogo irredutivelmente pluralístico, interminável, de significantes que jamais podem ser apreendidos em sua totalidade, em uma significação única. Opera com a não-interpretação. É desta forma também que sua crítica deixa de ser judicativa, ensaiando a pósautonomia. Esta, como a define Raúl Antelo (2007) 10, é uma prática em que um valor oscila enquanto neutro, ou seja, o valor, tópico fundamental da literatura e da crítica autonomista, não está em questão na pós-autonomia. A pós-autonomia, ou a literatura pósautônoma é tema de dois artigos de Josefina Ludmer publicados na internet, nos quais, define esta literatura ou as escrituras do presente, como produções ambivalentes, que pertencem e ao mesmo tempo burlam as fronteiras do que se convencionou chamar de literatura e que, portanto, não admitem leituras literárias. Estas produções, como o caso de La villa (2001), de César Aira, ou Monserrat (2006), de Daniel Link, reformulam a idéia de realidade, criam, como nomeou Ludmer, a realidadficción, um dos pressupostos, que junto com a idéia de que todo lo cultural [y literario] es económico y todo lo económico es cultural [y literario] (LUDMER, 2008, p.2), demonstram o caráter pós-autonômico destas literaturas. Assim, sua própria crítica é uma crítica que ensaia a pós-autonomia por ser e não ser uma crítica literária e por suspender, não levar em consideração a valoração, boa e má literatura, alta e baixa cultura, aspectos imponentes numa crítica autonomista. A desestabilização de limites, as aberturas praticadas na leitura crítica da autora, a suspensão de hierarquias e classificações, colocam em xeque os gêneros literários e textuais. O gênero, por sinal, é tópico fundamental das reflexões da crítica argentina: não só está estampado nos títulos de suas obras O gênero gauchesco. Um tratado sobre a pátria, como é elencado como categoria de análise: conto de delito, por exemplo. O gênero gauchesco recebe um alargamento que o transforma em um campo muito maior do que a denominação vinculada a ele em estudos como o do crítico uruguaio Ángel Rama, que em 1976 lança Los gauchipolíticos rioplatenses. Literatura y sociedad ou que a brasileira Maria Helena Martins 11 que em 1980 tem sua pesquisa de mestrado publicada sob

o título Agonia do heroísmo: contexto e trajetória de Antonio Chimango. Nestes estudos o gênero gauchesco é analisado a partir de uma perspectiva autonomista que colocará como centro as obras literárias ditas, ou que se querem comprovar, gauchescas, e é aos elementos circunscritos a noção de sistema de Antonio Candido (autor, obra e público) que ambos se remetem em suas análises, enfatizando a literariedade das obras do gênero 12. Para Ludmer, como foi citado anteriormente, no gênero gauchesco está toda a época e não somente a literatura da época, estão as biografias dos autores, a crítica produzida sobre a gauchesca, o uso militar do gaúcho nas guerras, as várias definições de gaúcho (gaúcho vadio, gaúcho patriota), etc. É o que faz também com a palavra conto tradicionalmente definida como uma narrativa curta e que em O corpo do delito se estende para, como a própria autora afirma um momento, uma cena de um relato ou romance, uma citação, um diálogo, ou também uma larga história que abarca muitos romances (LUDMER, 2002b, p.13). O tratado, o manual são outros gêneros burlados: o subtítulo de O gênero gauchesco, um tratado sobre a pátria, parodia o gênero do tratado, o modo da verdade, da totalidade, da lei, da letra, uma vez que apresenta anacronicamente e fragmentariamente genealogias, cadeias, biografias, citações, tons e vozes como forma de composição de um tratado fazendo com que deixe de ser um todo autoritário e acabado. Já o manual de Josefina Ludmer não tem nada de brevidade e objetividade, possui 478 páginas. É sim informativo e traz orientações, na verdade muito mais reflexões sobre como proceder na leitura de contos do delito. Pode ser um guia sobre os contos de delito, mas não é nada prático, pois não é descritivo apenas e, muito menos, se quer explicativo. Nem mesmo as convencionais notas de rodapé são mantidas ilesas nos escritos da autora. Deixam de ser restritas a observações, bibliografias e/ou comentários para passarem a lugar de texto. Muitas das notas de pé de página tornam-se textos que por vezes recebem até títulos e subtítulos como se fossem capítulos. Trata-se de uma proposital quebra das fronteiras, das margens de vários tipos de textos que fazem parte do âmbito acadêmico e literário, porém, embora pareça uma busca pela saída deste âmbito, uma saída da crítica criadora destes gêneros, a opção por discutir o gênero, como o gênero gauchesco, ou por se utilizar ainda da terminologia crítica, mesmo que alterada, para fazer crítica, a vincula ainda à prática desta. Ademais, muitos desses procedimentos presentes no seu discurso crítico, (fragmentação, montagem...) são procedimentos modernistas empregados em obras de criação literária. Tanto a recorrência à terminologia crítica, como aos procedimentos modernistas na composição do texto, demonstram o trânsito de seu discurso crítico. O esteta italiano Mario Perniola em Pensando o ritual 13, estudará a noção de trânsito como uma noção que se insere no debate sobre a relação entre tradição e inovação, pois ela destaca o presente e a presença. Além disso, chama a atenção para o caráter essencialmente dinâmico e itinerante do trânsito que implica um deslizamento para a dimensão espacial, para a experiência do deslocamento, da transferência, da descentralização (PERNIOLA, 2000, p.25). O trânsito, conforme o autor, é um movimento do mesmo para o mesmo, sendo que mesmo não quer dizer igual, é uma repetição diferente, pois entende a repetição como não reiteração do idêntico. Dessa forma, o trânsito em Josefina Ludmer, sendo um movimento do mesmo para o mesmo contém na sua abertura ao cultural, colocando-se em ou entre vários campos, como afirma Flora Sussekind, resquícios, traços dos conhecidos trabalhos de crítica especificamente literária

que praticava nos anos de 1970, quase imperceptíveis transformações do velho, sem os quais, como quer Perniola, o novo não nasce. Seus instrumentos críticos, como a autora designa, gênero, delito, tempo, este último explorado nas análises sobre as literaturas do presente de Buenos Aires, em 2000 14, deslocam sua crítica do âmbito intrinsecamente literário, pois lhe proporcionam a possibilidade de articular, cultura, literatura, política, campo jurídico, história e economia. Por outro lado, seus últimos artigos, Temporalidades del presente (2002c), Literaturas posautónomas (2006) e Literatura posautónomas 2.0 (2007), nos quais lê a literatura do presente, ou seja, tenta organizar, nomear, as formações culturais simultâneas e transitórias deste presente, são também estudos que a inserem num trânsito, já que ele está, conforme Perniola, estritamente ligado com esta dilatação do presente que caracteriza a vida contemporânea. Enfim, a própria Josefina Ludmer autodefine sua crítica como uma crítica em trânsito : quando perguntada sobre as transformações de sua percepção crítica ao largo de sua trajetória, ela afirma, entre outras coisas, que: Me puse en un lugar trans o post o pré literário y ahora trabajo con superposiciones e interrelaciones múltiples (LUDMER, 2006, p. 27). 15 Referências bibliográficas ANTELO, Raúl. CAMARGO, Maria Lúcia de Barros. (Orgs.) Pós-crítica. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007. BARTHES, Roland. Da obra ao texto. O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Feliz. Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. P. P. Pelbart. Vol 5. São Paulo: Ed. 34, 2005, p. 11-110.. Introdução: rizoma.mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. A. Guerra Neto. Vol 1. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 11-37. LUDMER, Josefina. Literatura postautónomas. Disponível em <http://linkillo.blogspot.com/2006/12/dicen-que_18.html>. Último acesso em maio de 2008.. Literatura postautónomas 2.0. Disponível em <http://www.loescrito.net/index.php?id=159>. Último acesso em maio de 2008.. O gênero gauchesco: um tratado sobre a pátria. Chapecó: Argos, 2002a.. O corpo do delito: um manual. Belo Horizonte: UFMG, 2002b.. Temporalidades del presente. Margens, márgenes, nº 2, Belo Horizonte, p. 14-27, dez. 2002c.. Cien años de soledad: una interpretación. Buenos Aires: Tiempo Contemporáneo, 1972.. Josefina Ludmer: algunas nuevas escrituras borran fronteras, entrevista a Susana Haydu. La biblioteca, 2006, p. 26-31. MARTINS, Maria Helena. Agonia do heroísmo: contexto e trajetória de Antônio Chimango. Porto Alegre: Ed. da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e L&PM, 1980.

PERNIOLA, Mario. Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo. Trad. Maria do Rosário Toschi. São Paulo: Studio Nobel, 2000. RAMA, Ángel. Los gauchipolíticos rioplatenses. 2ª ed., Buenos Aires, Centro Editor de América Latina, 1982. SUSSEKIND, Flora. Ludmer. Argumento, n.2. Rio de Janeiro, p. 19, dez/jan de 2004. WOLFF, Jorge Hoffmann. Telquelismos latino-americanos: a teoria crítica francesa no entrelugar dos trópicos. Tese (Doutorado em teoria literária) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2001. 1 Débora COTA, doutoranda, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), bolsista CNPQ, debcota@ig.com.br. 2 Em 2002 as duas obras foram traduzidas pela Editora Argos, Chapecó e pela Editora da UFMG, respectivamente. O livro O gênero gauchesco foi lançado originalmente em 1988 e O corpo do delito, em 1999. 3 De acordo com Jorge Hoffmann Woolf (2001), em Telquelismos latino-americanos: a teoria crítica francesa no entrelugar dos trópicos, Josefina Ludmer publicou duas resenhas e respondeu a uma enquete da revista Los Libros. O periódico foi fechado em 1976 pela ditadura militar Argentina. 4 Segundo Jorge Woolf (2001, p. 10 e p. 32): Existem infinitas leituras da problemática proposta pelo grupo Tel Quel (futuramente L infini), que entendia elaborar sistematicamente uma teoria e uma prática revolucionárias da escritura, mas que, para os adversários, não poderia sequer se caracterizar como um grupo. (...) ; De qualquer modo, coexistiriam em todo coquetel telqueliano ao menos os seguintes elementos, conforme levantados por Caws: o formalismo e o futurismo russos, uma fundamental filosofia das desconstruções em especial as noções de trace, espacement e différance -, a homologia escritura/revolução. Mais do que os ensaios inaugurais da Théorie d ensemble, de Foucault e de Barthes, La différance de Derrida, que os sucedem no volume, marcam o foco do desejo de transgressão manifestado por Tel Quel. É um pensamento que se superporia e simultaneamente se oporia às estruturas sincrônicas, estáticas e a-históricas da maioria dos pensadores cientificistas rotulados como estruturalistas. O passo além vai consistir na fusão, entre as coisas, do conceito de texto com o de transformação (de outros textos), que também significaria processo, produtividade, diferença. 5 O livro foi escrito em 1970 e publicado em Trabajo Crítico, coleção dirigida por Ricardo Piglia e lançada pela editora argentina Tiempo Contemporâneo. No Brasil, a obra foi publicada pela Martins Fontes, em 1989. 6 Talvez um bom exemplo disso no livro seja a demonstração que ela faz, ao analisar dois personagens (o último Aureliano e o pai José Arcádio Buendía), de que a relação de incesto é uma das condições de possibilidade da existência da ficção e também é umas das condições de seu deciframento, conclusão esta que tem como base a teoria da escritura transgressiva. Cf. Cien años de soledad: una interpretación (1972, p. 46), nota de rodapé. 7 Semanário argentino lançado em Buenos Aires, em 1898. Cf. De Cosmópolis, a locópolis, em O corpo do delito (2002, p. 224-277). 8 Conforme Héctor e Luis J. Bates, em La historia del tango, citados por Ludmer, a patota era uma instituição genuinamente portenha, grupos de meninos que se uniam com o objetivo de lhes facilitar a entrada nos salões de tango. Cf. O corpo do delito (2002, p. 270), nota de rodapé. 9 Roland Barthes (2004, p. 69-70) afirma que: O texto, (...) pratica o recuo infinito do significado, o Texto é dilatório; o seu campo é o do significante; (...) a lógica que regula o Texto não é compreensiva (definir o que quer dizer a obra), mas metonímica; o trabalho das associações, das contigüidades, das remissões, coincide com uma libertação de energia simbólica (se ela lhe faltasse o homem morreria). (...) O Texto é plural. Isso não significa apenas que tem vários sentidos, mas que realiza o próprio plural do sentido: um plural irredutível (e não apenas aceitável). O Texto não é coexistência de sentidos, mas passagem, travessia; não pode, pois, depender de uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma disseminação. 10 ANTELO, Raúl & CAMARGO, Maria Lucia de Barros. (Orgs) (2007), a citação pertence ao texto impresso na quarta capa.

11 Maria Helena Martins: coordenadora do Centro de Estudos de Literatura e Psicanálise Cyro Martins (Cyro Martins, escritor e psicanalista, foi seu pai,). Mestre (1979) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde foi orientada por Guilhermino César. Doutora (1987) em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP (teve como orientadora Ligia Chiappini Moraes Leite) e professora adjunta do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande Sul. Portanto, o trabalho desta autora dá continuidade a uma tradição da crítica riograndense à gauchesca já delineada por seus antecessores, Ligia Chiappini Moraes Leite e Guilhermino César. 12 O livro de Ángel Rama se posiciona contrariamente a crítica que se dedica ao problema da verossimilhança na gauchesca e contra a crítica da própria época da gauchesca que a menosprezou e defende as obras gauchescas como objetos artísticos e não como documentos de épocas como eram vistos, se vale da noção de sistema de Antonio Candido para confirmar sua tese. O mesmo ocorre em Agonia do heroísmo, que apresenta, nesta ordem, o contexto da obra e do autor, um estudo do processo de construção do texto, em seu aspecto sintático, semântico e verbal e a recepção da obra: a crítica e o público em geral. O que se pode concluir, portanto, é que a autora procurou mostrar que uma obra da tradição gauchesca, ligada à poesia popular de caráter eminentemente circunstancial, datado, é sim literatura, pois cumpre a lógica do sistema literário de Antonio Candido, a qual diferencia literatura de manifestação literária. 13 Primeira obra do autor traduzida no Brasil, discute sexualidade, morte e sociedade explorando as noções de simulacro, ritual e trânsito. 14 Temporalidades do presente, publicado em Margens/margenes, em 2002. O mesmo artigo foi lido no Congresso da ABRALIC, em Porto Alegre, no mesmo ano. 15 Me coloquei em um lugar trans ou pós ou pré-literário e agora trabalho com superposições e inter-relações múltiplas (tradução minha).