Guazzelli roteiro Davi Fazzolari Fernando Pessoa e outros Pessoas são Paulo, 2011 1
Gerente editorial Rogério Gastaldo Editora-assistente Solange Mingorance Coordenação editorial e de produção Edições Jogo de Amarelinha Projeto gráfico, capa e edição de arte Marcio Koprowski Ilustrações Guazzelli Roteiro Davi Fazzolari Revisão Claudia Maietta e Thaisa Burani Produtor Gráfico Rogério Strelciuc Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Guazzelli Fernando Pessoa e outros pessoas / Guazzelli ; roteiro Davi Fazzolari. São Paulo : Saraiva, 2011. ISBN 978-85-02-10566-9 (aluno) ISBN 978-85-02-10567-6 (professor) 1. Histórias em quadrinhos 2. Pessoa, Fernando, 1888-1935 I. Fazzolari, Davi. II. Título. 11-00306 CDD-741.5 Índice para catálogo sistemático: 1. Histórias em quadrinhos 741.5 Editora Saraiva, 2011 SARAIVA S.A. Livreiros Editores Rua Henrique Schaumann, 270 - CEP 05413-010 - Pinheiros - São Paulo - SP Tel.: PABX (0**11) 3613-3000 - Fax: (0**11) 3611-3308 Fax Vendas: (0**11) 3611-3268 www.editorasaraiva.com.br Todos os direitos reservados 1ª edição - 1ª tiragem 2011 Central de atendimento ao professor: 0800-0117875 2
sumário InterlúdIo lisboeta I a tabacaria Fora de mim InterlúdIo lisboeta II o desassossego de bernardo InterlúdIo lisboeta III o Pastor de almas InterlúdIo lisboeta IV Álvaro de Campos Bernardo Soares Alber to Caeiro 5 7 29 31 53 55 71 sobre Fernando Pessoa 75 3
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Lisboa com suas casas Lisboa com suas casas De várias cores, Lisboa com suas casas De várias cores, Lisboa com suas casas InterlúdIo lisboeta I De várias cores... À força de diferente, isto é monótono, Como à força de sentir, isto é monótono, Como à força de sentir, fico só a pensar. 5
a tabacaria Fora de mim Álvaro de Campos 7
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NÃO SOU NADA. NUNCA SEREI NADA. NÃO POSSO QUERER SER NADA. À PARTE ISSO, TENHO EM MIM TODOS OS SONHOS DO MUNDO. 10
JANELAS DO MEU QUARTO, DO MEU QUARTO DE UM DOS MILHÕES DO MUNDO QUE NInGUÉM SABE QUEM É... CRUZADA CONSTANTEMENTE POR GENTE, PARA UMA RUA INACESSÍVEL A TODOS OS PENSAMENTOS, (E SE SOUBESSEM QUEM É, O QUE SABERIAM?), DAIS PARA O MISTÉRIO DE UMA RUA... 11
REAL, IMPOSSIVELMENTE REAL, CERTA, DESCONHECIDAMENTE CERTA, COM O MISTÉRIO DAS COISAS POR BAIXO DAS PEDRAS E DOS SERES, COM A MORTE A POR UMIDADE NAS PAREDES E CABELOS BRANCOS NOS HOMENS, COM O DESTINO A CONDUZIR A CARROÇA DE TUDO PELA ESTRADA DE NADA. 12
o desassossego de bernardo Bernardo Soares 31
HÁ EM LISBOA UM PEQUENO NÚMERO DE RESTAURANTES OU CASAS DE PASTO EM QUE, SOBRE UMA LOJA COM FEITIO DE TABERNA DECENTE SE ERGUE UMA SOBRELOJA COM UMA FEIÇÃO PESADA E CASEIRA DE RESTAURANTE DE VILA SEM COMBOIOS. NESSAS SOBRELOJAS É FREQUENTE ENCONTRAREM-SE TIPOS CURIOSOS. O DESEJO DE SOSSEGO E A CONVENIÊNCIA DE PREÇOS LEVARAM-ME, EM UM PERÍODO DA MINHA VIDA, A SER FREQUENTE EM UMA LOJA DESSAS. SUCEDIA QUE, QUANDO CALHAVA JANTAR PELAS SETE HORAS, QUASE SEMPRE ENCONTRAVA UM INDIVÍDUO CUJO ASPECTO, NÃO ME INTERESSANDO A PRINCÍPIO, POUCO A POUCO PASSOU A INTERESSAR-ME. 33
ERA UM HOMEM QUE APARENTAVA TRINTA ANOS...... NA FACE PÁLIDA E SEM INTERESSE DE FEIÇÕES UM AR DE SOFRIMENTO NÃO ACRESCENTAVA INTERESSE, E ERA DIFÍCIL DEFINIR QUE ESPÉCIE DE SOFRIMENTO ESSE AR INDICAVA...... PRIVAÇÕES, ANGÚSTIAS, E AQUELE SOFRIMENTO QUE NASCE DA INDIFERENÇA QUE PROVÉM DE TER SOFRIDO MUITO. UM CERTO AR DE INTELIGÊNCIA ANIMAVA DE CERTO MODO INCERTO AS SUAS FEIÇÕES. MAS O ABATIMENTO, A ESTAGNAÇÃO DA ANGÚSTIA FRIA, COBRIA TÃO REGULARMENTE O SEU ASPECTO QUE ERA DIFÍCIL DESCORTINAR OUTRO TRAÇO ALÉM DESSE. SOUBE incidentalmente, POR UM CRIADO DO RESTAURANTE, QUE ERA EMPREGADO DE COMÉRCIO, NUMA CASA ALI PERTO. 34
SOSSEGO ENFIM. SOSSEGO DO CAMPO NA CIDADE, SOBRETUDO NESSES MEIOS DIAS DE ESTIO......NO TEMPO QUE AQUI PASSAMOS, APESAR DA FALSIDADE DESSAS HORAS. O HOMEM MAGRO SORRIU DESLEIXADAMENTE. OLHOU-ME COM UMA DESCONFIANÇA QUE NÃO ERA MALÉVOLA. NÃO SEI O QUE É O TEMPO. NÃO SEI QUAL A VERDADEIRA MEDIDA QUE ELE TEM, SE TEM ALGUMA. A DO RELÓGIO SEI QUE É FALSA... 35
JULGO, ÀS VEZES, QUE TUDO É FALSO, E QUE O TEMPO NÃO É MAIS DO QUE UMA MOLDURA PARA ENQUADRAR O QUE LHE É ESTRANHO. ESCREVE? SIM. CONHECE ORPHEU? É A MELHOR. DAS POUCAS COISAS ORIGINAIS NESSES DIAS. A CONHECE DEVERAS? ACABA DE SAIR... NEM PENSÁVAMOS QUE FOSSEM LER. ESTILO NOVO, ASSUNTO PARA POUCOS. 36
o Pastor de almas Alber to Caeiro 55
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AGORA AMO A NATUREZA COMO UM MONGE CALMO À VIRGEM MARIA, RELIGIOSAMENTE, A MEU MODO, COMO DANTES, MAS DE OUTRA MANEIRA MAIS COMOVIDA E PRÓXIMA... TU NÃO ME TIRASTE A NATUREZA... TU NÃO ME MUDASTE A NATUREZA... POR TU ME AMARES, AMO-A DO MESMO MODO, MAS MAIS, POR TU ME ESCOLHERES PARA TE TER E TE AMAR, NÃO ME ARREPENDO DO QUE FUI OUTRORA PORQUE AINDA O SOU. 59
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sobre Fernando Pessoa 75
Fernando Pessoa Nasceu em Lisboa, em 13 de junho de 1888. Foi educado no Liceu de Durban, Natal, África do Sul, e na universidade (inglesa) do Cabo de Boa Esperança. O que Fernando Pessoa escreve pertence a duas categorias de obras, a que poderemos chamar ortônimas e heterônimas. Não se poderá dizer que são anônimas e pseudônimas, porque deveras o não são. A obra pseudônima é do autor em sua pessoa, salvo no nome que assina; a heterônima é do autor fora de sua pessoa, é de uma individualidade completa fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu. 76 As obras heterônimas de Fernando Pessoa são feitas por, até agora, três nomes de gente - Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos. Estas individualidades devem ser consideradas como distintas da do autor delas. Forma cada uma uma espécie de drama; e todas elas juntas formam outro drama.
As obras destes três poetas formam, como se disse, um conjunto dramático; e está devidamente estudada a entreacção intelectual das personalidades, assim como as suas próprias relações pessoais. Tudo isto constará de biografias a fazer, acompanhadas, quando se publiquem, de horóscopos e, talvez, de fotografias. É um drama em gente, em vez de em atos. (Se estas três individualidades são mais ou menos reais que o próprio Fernando Pessoa - é problema metafísico, que este, ausente do segredo dos Deuses, e ignorando, portanto, o que seja realidade, nunca poderá resolver.) Fernando Pessoa não tenciona publicar - pelo menos por um largo enquanto - livro nem folheto algum. Não tendo público que os leia, julga-se dispensado de gastar inutilmente, em essa publicação, dinheiro seu que não tem. Fernando Pessoa, 1928. 77
Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1:30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). É alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre. Bernardo Soares era um homem que aparentava trinta anos. Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava. Privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito. Um certo ar de inteligência animava de certo modo incerto as suas feições. Era empregado de comércio. 78
Alber to Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto. Mais baixo, mais forte, mas seco. De um vago moreno mate. Educado num colégio de jesuítas, é médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. o Caeiro louro sem cor, olhos azuis. Morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. 79
GUAZZELLI Desenhar textos de Fernando Pessoa é tão delicioso quanto assustador. Dada a grandeza do poeta, a responsabilidade é imensa. Faz parte. São essas, afinal, as alegrias e os ossos do ofício. Acima de tudo, o que importa mesmo é que foi um enorme prazer, um passeio por este verdadeiro jogo que surge das distintas personalidades que habitam a obra de Pessoa, o que me permitiu explorar diferentes estilos. E nessa hora reencontrei em minha própria trajetória uma afinidade com o universo múltiplo de Pessoa, pois sempre gostei de dar interpretações diversas para minhas ilustrações, buscando, a cada novo trabalho, novos estilos, algumas vezes brincando de ser outro desenhista. Foi assim que elaborei muitos livros, procurando sempre transitar entre diferentes linguagens. Por vezes partia dos desenhos em preto e branco para outros onde fui pródigo no uso das cores; por outras, era mais expressionista no traço; noutras ainda, bastante sintético, obtendo um resultado bem racional. Até mesmo minha formação é multifacetada: sou artista plástico de formação, o que fez de mim também professor. Sou também profissional de cinema há 25 anos, atuando como diretor de arte, atividade que desenvolvi em paralelo com meus desenhos e roteiros para histórias em quadrinhos. Isso sem esquecer da grande satisfação que encontro ao criar ilustrações e cartuns para festivais e concursos de desenho de humor. Desenhar Pessoa me permitiu, de certa forma, um reencontro com meus múltiplos reflexos como criador. E foi, por isso mesmo, um grande presente. DAVI FAZZOLARI Nasci em São Paulo, em 1964, filho de filhos da grande imigração italiana do início do século passado aquela gente de vida nítida e sem metafísica, que nos reconstrói o universo dia após dia. Sinto-me também filho do ensino público, onde fui alfabetizado e educado. No início dos anos 1990 mudei-me para Lisboa e pude acercar-me da literatura contemporânea portuguesa. Mas, além dos grandes nomes, circulava também pela cidade a LX Comics, publicação idealizada e dirigida por Renato Abreu e João Paulo Cotrim, que reunia a jovem e ousada banda desenhada produzida no país. Aos poucos pude entender que a transbordante literatura naqueles novos quadrinhos portugueses tão próximos do fandom (fanzines) não era uma imposição formal, mas algo espontâneo e orgânico para autores e leitores acostumados a Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, António Botto, Almada Negreiros, Alexandre O Neill, Mário Cesariny. Não foi difícil perceber que a vertigem daquelas páginas era contígua aos desassossegos tantas vezes despertados por Bernardo Soares e também por Álvaro de Campos. Mais tarde, sob a orientação de Maria Helena Nery Garcez, apresentei à Universidade de São Paulo a dissertação de mestrado Olhares em Lisboa / Itinerário e Percepção em Lisboa: o que o turista deve ver e Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, em 2006. Atualmente leciono Língua Portuguesa para o Ensino Médio, na cidade de São Paulo. Ainda hoje, quando volto a caminhar pelas ruas da Baixa, em Lisboa, pressinto Pessoa e devolvo à rua dos Douradores o mover de meus passos como o mover de mais um peão em seu tabuleiro. 80