OBRA ANALISADA: O Coração Disparado 1978 GÊNERO Poesia AUTOR Adélia Prado DADOS BIOGRÁFICOS Nome completo: Adélia Luzia Prado de Freitas BIBLIOGRAFIA Poesia Bagagem, Imago - 1975 O Coração Disparado, Nova Fronteira - 1978 Terra de Santa Cruz, Nova Fronteira - 1981 O Pelicano, Rio de Janeiro - 1987 A Faca no Peito, Rocco - 1988 Oráculos de Maio, Siciliano - 1999 Louvação para uma Cor A duração do dia, Record - 2010 Prosa Solte os Cachorros, contos, Nova Fronteira - 1979 Cacos para um Vitral, Nova Fronteira - 1980 Os Componentes da Banda, Nova Fronteira - 1984 O Homem da Mão Seca, Siciliano - 1994 Manuscritos de Filipa, Siciliano - 1999 Filandras, Record - 2001 Antologia Mulheres & Mulheres, Nova Fronteira - 1978 Palavra de Mulher, Fontana - 1979 Contos Mineiros, Ática - 1984 Poesia Reunida, Siciliano - 1991 (Bagagem, O Coração Disparado, Terra de Santa Cruz, O Pelicano e A Faca no Peito). Antologia da Poesia Brasileira, Embaixada do Brasil em Pequim - 1994. Prosa Reunida, Siciliano - 1999 Outros A Imagem Refletida - Ballet do Teatro Castro Alves - Salvador - Bahia - Direção Artística de Antônio Carlos Cardoso. Poema escrito especialmente para a composição homônima de Gil Jardim. RESENHA Em O Coração Disparado, Adélia Prado dá vasão a uma poesia de relato
pessoal e de revelação, a partir do ato de pensar o ser no mundo. Assim, partindo de si mesma, através de memórias e do cotidiano, tece reflexões sobre as singularidades que definem o tornar-se mulher. No poema Linhagem, que inicia a obra, tomates verdes, carvão, bolor de queijo e cólica são os elementos do cotidiano de seu avô dos quais ela própria resulta. Resgatados pela memória, metonimicamente representam seu passado e seus entes. Em O Guarda-chuva Preto, o objeto é retirado da banalidade cotidiana, recebendo, ao final do poema, estatuto de guardião da memória: Guarda-chuva, guarda-sol,/ guardamemória pungente/ de tudo que foi em nós/ um pouco ridículo e inocente./ Guarda-vida, arquivo preto (p.9). Ao se perceber poeta, Adélia Prado descobre-se mulher, no sentido de que a poesia a leva a pensar sua essência: Eu sou de três jeitos:/ alegre, triste e mofina,/ meu outro nome eu não sei./ Ó mistério profundo!/ Ó amor! ( Dois Vocativos, p. 17). É assim que sua poesia divide com o leitor o momento em que o ser se revela, descobre-se. Nesse sentido, o caráter de descoberta do ser pode ser percebido na poesia da autora no que tange ao âmbito religioso e ao não religioso. Assim, Adélia Prado aborda a manifestação reveladora de Deus, da alma, da mulher, do corpo e do Eros. Essa revelação surge nos poemas como uma súbita consciência do eu lírico a respeito de seus desejos, além de constatações em relação à maneira como está a alma ou como se sente: O Espírito de Deus pairava sobre as águas... Sobre o meu, pairam estas flores e sou mais forte que o tempo (Flores, p. 18). No poema Flores, o eu-lírico aprecia o jardim, as plantas em flor, e revela seu estado de espírito: Se eu tocasse um piano, elas dançavam. Trata-se de transformar o instante em momento sagrado, que concentra a felicidade do ser. O mesmo sentimento pode ser observado no poema Casa. Nesse poema, os flashes de memória revelam também a necessidade de reviver fragmentos do passado para eternizá-los: Não tem lugar pra esta casa em ruas que se conhecem. /Mas afirmo que tem janelas, /[...] e uma noiva lá dentro que sou eu. / É uma casa de esquina, indestrutível. /Moro nela quando lembro, /quando quero acendo o fogo (Casa, p. 20). Ao evocar dessa forma que o passado se faça presente na poesia, o eu lírico pode usufruir a presença do que lhe falta, os instantes outrora vividos.
No poema Subjeto, o cheiro da flor de abóbora é o suficiente para provocar na voz lírica uma sensação de momento iluminado. Evoca a felicidade plena: Dentro do quarto escuro ou na rua sem lâmpadas, de cidade ou memória, /um sol. /Como pequenas luzes esplêndidas (Subjeto, p. 25). O instante iluminado, cheio de êxtase provocado pela consciência da própria existência, apreendida pelos sentidos, é o momento de arrebatamento do ser pelo seu próprio reconhecimento no mundo. É a consciência de que o objeto e o sujeito, nesse instante de felicidade plena, se confundem, o que justifica o título: Subjeto. Na epígrafe da obra, há os seguintes versículos bíblicos: Com efeito, eu mesma recebi do Senhor o que vos transmito (I Co 11, 23). Constatase, pois, que a poeta aparece como arauto de palavras sagradas, divinas. Nesse caso, invoca para a poesia a ideia de oráculo, isto é, a divindade que responde a consultas e orienta aquele que crê. Em entrevista, a própria autora responde a presença do oráculo em sua poesia: Oráculos porque a verdadeira poesia é um oráculo para mim, uma fala de uma divindade muito superior ao poeta. E como eu acredito que estou fazendo poesia de verdade, não tive vergonha, nem constrangimento de chamar meu livro de Oráculo. (Adélia Prado em entrevista concedida a Elvis Gomes. Semana de Divinópolis 17, a 23/04/99). Assim, enquanto poeta, coloca-se como mediadora entre a divindade e o leitor. Entretanto, reivindica para si o direito à letra, à escrita, quando afirma: Mas essa letra é minha (Direitos Humanos, p. 73). ESTILO DE ÉPOCA A poesia de Adélia Prado distancia-se da escola concretista e da vertente de poesia marginalizada dessa escola. Com efeito, pode-se classificá-la como pertencente à poesia modernista que não guarda relações de contiguidade com o concretismo, mas também não faz parte do movimento de poesia que, em diferentes gradações, busca se distanciar de fases mais radicais desse movimento. Em geral, a religiosidade se manifesta na própria função da poesia de Adélia Prado. Nesse sentido, a palavra poética é não só mediadora dessa possibilidade de chegar à divindade, como também, instrumento capaz de fazer com que o cotidiano transcenda, tornando-se veículo de manifestação da
epifania (manifestação reveladora que desperta a consciência de si mesmo). Sendo assim, a poesia de Adélia Prado em O Coração Disparado aproxima-se da vertente da literatura modernista que problematiza o próprio sujeito, e seu caráter psicológico, em tensão permanente com o cotidiano, apresentando certa contiguidade, assim, com os temas existencialistas abordados por Clarice Lispector em alguns de seus romances. Portanto, podemos incluir a obra O Coração Disparado entre o conjunto de escritores que costumam ser identificados pela expressão tendências contemporâneas no âmbito da poesia. INTERTEXTUALIDADE A partir da leitura de A Maçã no Escuro (1978), poema de Adélia Prado presente na obra O Coração Disparado, podemos estabelecer uma intertextualidade com a obra de Clarice Lispector de mesmo título. A Maçã do escuro (1961), romance de Clarice Lispector, narra a trajetória da personagem Martim, que resolve deixar para trás o passado para dar origem a si mesmo. A fuga da cena de um crime é o espaço escolhido pela autora para discutir teorias filosóficas relacionadas ao existencialismo. O existencialismo é um conjunto de teorias formuladas no século XX, as quais se caracterizam pela inclusão da realidade sensível experimentada pelo indivíduo (seu caráter mundano, sua angústia, a morte etc.) no centro da especulação filosófica, em crítica a doutrinas racionalistas que dissolvem a subjetividade individual em sistemas conceituais abstratos e universalistas (Dicionário Houaiss). Assim, Martim tenta refazer o seu ser, e chega à conclusão de que tentar reproduzir na escrita seus pensamentos significaria modificá-los. Do mesmo modo, no poema de Adélia Prado, o eu lírico encontra-se aprisionado em seu próprio interior, representado por um cômodo grande, um armazém, talvez de acordo com o eu lírico do poema -, com sacas de cereais. E a voz do poema irá empreender um mergulho nesse eu aprisionado. A partir daí, essa voz visita a própria sexualidade, e se percebe contida, mas em grande tensão vital. Assim como o faz o personagem do romance de Clarice Lispector. Trata-se de visitar, no próprio interior, o que o próprio ser esconde de si. Assim, a existência é comparada ao ato
de ter nas mãos uma maçã no escuro pode-se sentir que se trata de uma maçã, mas não se pode vê-la. VISÃO CRÍTICA Pode-se perceber, portanto, que em O Coração Disparado há um fio condutor que perpassa a obra, e que é responsável pelo entrecruzamento entre o cotidiano e o religioso na poesia de Adélia Prado. O entrecruzamento se dá a partir da centralização e convergência no sujeito, o ser que, como quem costura uma colcha de retalhos, une elementos de seu passado a elementos do cotidiano imediato, além de elementos do profano e do religioso, levando o ser a uma imersão psicológica em busca de identificar os elementos que compõem a própria existência. Na obra, a autora aborda o espaço particular, do cotidiano atribuindo aos poemas, muitas vezes, características que de certa forma os aproximam a anedotas, ou crônicas de âmbito doméstico ou subjetivo. Em O Coração Disparado, a memória e o cotidiano suscitam o sagrado e a transcendência a partir de elementos simples que funcionam como despertadores da consciência de felicidade e plenitude, eternizando a beleza do instante através da palavra poética.