A MATERNIDADE NA MÍDIA: ANÁLISE DE UMA PUBLICIDADE DO DIA DAS MÃES MOTHERHOOD IN THE MEDIA: ANALYSIS OF A MOTHER S DAY ADVERTISING



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Transcrição:

A MATERNIDADE NA MÍDIA: ANÁLISE DE UMA PUBLICIDADE DO DIA DAS MÃES MOTHERHOOD IN THE MEDIA: ANALYSIS OF A MOTHER S DAY ADVERTISING Pâmella Batista de Souza 1 Katia Alexsandra dos Santos 2 Resumo: Este trabalho buscou observar de que modo o papel feminino de mãe vem sendo construído na contemporaneidade, com base na análise de uma publicidade do Dia das Mães. Para tanto, utilizou-se da Análise do Discurso de linha francesa (PÊCHEUX, 1997) como perspectiva teórico-metodológica. A apreciação da publicidade apontou para discursos sobre a maternidade que circulam principalmente em torno das formações discursivas religiosa, conservadora e capitalista, as quais produzem sentidos que naturalizam o papel feminino de mãe, com o amor materno como algo inerente à constituição das mulheres, bem como procuram vender um estilo de vida de uma família/produto conservadora, cristã e bem-sucedida. Palavras-chave: Maternidade. Mídia. Análise do Discurso. Abstract: This work aimed to observe how the female role of mother has been built nowadays, based on the analysis of a Mother's Day advertising. For this it was used the French School of Discourse Analysis (PÊCHEUX, 1997) as theoretical and methodological perspective. The assessment pointed to advertising discourses of maternity circulating mainly around religious, conservative and capitalist discursive formations, which produce meanings that naturalize the female role of mother, with maternal love as something inherent to the constitution of women, as well as they seek to "sell" a lifestyle of a conservative, Christian and successful family/product. Keywords: Motherhood. Media. Discourse analysis. 1 INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA A maternidade tem sido discursivizada nas mais diversas mídias e trazida como um imperativo ao público feminino. Um elemento notável, nesse sentido, é o acontecimento do Dia das Mães culturalmente instituído. As publicidades impressas são materialidades que permitem observar tal fenômeno. Desse modo, pretendeu-se analisar uma propaganda voltada 1 Acadêmica do 4º ano do curso de Psicologia da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO Paraná). E-mail: pampampam.ella@hotmail.com. 2 Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP/Ribeirão Preto); Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO Paraná). E-mail: kalexsandra@yahoo.com.br. 113

para a data comemorativa, a fim de serem percebidos os efeitos produzidos relacionados ao papel feminino de mãe na sociedade contemporânea. Um anúncio publicitário será observado e analisado a partir do referencial teóricometodológico da Análise do Discurso de linha francesa (PÊCHEUX, 1997). A relevância deste trabalho encontra-se na articulação teórica que propõe e na observação de um objeto discursivo evidente na sociedade contemporânea, tendo em vista os deslocamentos que vêm ocorrendo no que diz respeito à relação da mulher com a maternidade. Considerando o objeto discursivo que se pretende analisar, com foco no discurso sobre a maternidade e o Dia das Mães, passa-se à apresentação de referências teóricas fundamentais. 2 MULHER E MATERNIDADE, UM BREVE HISTÓRICO Segundo Emidio (2008), na Antiguidade, a figura da mulher era associada à feitiçaria e ao mistério. Na Bíblia, livro do Cristianismo, especificamente em Gênesis, há a narração da criação da mulher por esse ponto de vista: E Deus disse: não é bom que Adão esteja só. Far-lhe-ei uma adjuvante apropriada, o que revela a mulher como uma figura construída para a companhia do homem. A partir desse pensamento, a mulher, por um longo período de tempo, ocupou um espaço de devoção ao homem, sendo assim relegada a uma posição de inferioridade. Considerava-se que a mulher era incapaz de exercer qualquer tipo de atividade diferente das atividades domésticas e do cuidado com os filhos, associava-se que estas atividades faziam parte da natureza da mulher. Desta forma, legitimava-se a superioridade do homem e se assegurava o poder dado a este desde a criação do mundo (EMIDIO, 2008 p. 47). Assim, a mulher teve a sua vida atrelada à família e, em decorrência disto, sua identidade foi construída em torno do casamento, da maternidade e da vida doméstica. Nesse sentido, Venâncio (2000) recorda que, no Brasil Colônia, as mulheres ocupavam essa posição, de modo que eram educadas para casarem e terem filhos, sendo a procriação a única finalidade do casamento. Entretanto, como é evidenciado por Emidio (2008), com as mudanças sociais, essa configuração patriarcal começou a ser questionada e modificada. Muitas mulheres iniciaram a refletir sobre seu papel, culminando no delineamento de novos espaços ocupados pelas mulheres na sociedade. O advento do Capitalismo entre os séculos XVIII e XIX contribui para essa evolução, pois, com a necessidade de mão de obra, as mulheres passaram a trabalhar 114

como operárias nas fábricas, o que as levava a certa representatividade no mercado de trabalho. Porém, a nova jornada de tarefas permanecia juntamente com seu papel de mãe e esposa, ocasionando uma dupla jornada de trabalho. Outro fator propulsor das mudanças em relação aos papéis das mulheres na sociedade foram os movimentos feministas, que surgiram por volta de 1960, quando mulheres puderam buscar novos lugares a fim de mostrar suas capacidades e potencialidades, atuação antes restrita ao contexto doméstico. Paralelamente a essa mesma época, surgiu um movimento em direção à maior liberdade sexual, juntamente com o advento de métodos contraceptivos, o que causou uma cisão entre a sexualidade e a procriação (BADINTER, 1985). Quanto à construção do papel social da mulher, é possível perceber que a identidade feminina fora construída a partir da masculina, considerada como modelo ou padrão hegemônico. Outra questão bastante evidente quanto à identidade feminina é a ligação com a maternidade. Como esclarece Emidio (2008), a questão do ser-mulher, ser-mãe perpassa toda a história do feminino e da maternidade na sociedade. Contudo, ao considerar os diferentes períodos históricos e as colocações que se organizaram em torno da maternidade, Badinter (1985) buscou comprovações da gênese do amor materno. De acordo com a autora, o amor materno não é um sentimento inerente à condição de mulher, e não há um determinismo, trata-se de algo produzido a partir da evolução social. Como a própria história demonstra, o conceito de amor de mãe para filhos nem sempre foi o mesmo, como ressalta Venâncio (2000). Por exemplo, nos séculos XVII e XVIII, as crianças eram normalmente entregues às amas de leite e só voltavam ao convívio do lar depois de completarem cinco anos. Além disso, o amor materno é um sentimento como qualquer outro, que pode estar sujeito a fragilidades e imperfeições, bem como à extrema variabilidade de um indivíduo para outro. Como expõe Aries (1981), por muitos anos, houve altos índices de mortalidade infantil em decorrência do desinteresse de se cuidar das crianças, que eram vistos como pequenos adultos. Desse modo, verifica-se que o interesse e a dedicação à criança não existiram de modo idêntico ou constante em todas as épocas e para todas as sociedades. Há diferentes maneiras de se expressar o amor materno, que pode estar presente (em maior ou menor grau) ou ausente. Assim, como afirma Forna (1999, apud BADINTER 1985, p. 136), o amor materno que nasce da relação mãe-filho é uma expressão do livre arbítrio. 115

Como citam Tfouni e Santos (2013), no cenário contemporâneo, o papel assumido pela mãe vem se alterando e assumindo diversas outras possibilidades, gerando assim diversas adjetivações e perfis variados de mães. Neste contexto, há ainda a publicidade, que divulga figuras maternas contemporâneas e funciona como um locus discursivo pertinente, à medida que faz circular um conjunto de discursos que aparecem no discurso ordinário e são disseminadas no senso comum (TFOUNI; SANTOS, 2013). Outro fato colocado pelas autoras é relativo a uma situação ambígua que têm se formado, em tempos em que a maternidade é (ou parece ser) uma opção bastante postergada, porém, a figura da mãe ainda é muito valorizada na mídia, no contexto do capitalismo. 3 ANÁLISE DO DISCURSO Como foi expresso anteriormente neste trabalho, a Análise do Discurso (doravante AD) é a área que se toma como base para realizar a análise do texto publicitário. A AD surgiu na década de 60, na França, colocando o discurso como seu objeto de estudo. Essa vertente busca considerar a língua não como um meio transmissão de informações, mas a partir de uma visão discursiva que busca a exterioridade da linguagem, com foco na ideologia e no fator social, uma vez que compreende que não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido. (ORLANDI, 2009, p. 17). Desse modo, a AD também entende que a linguagem não é mais evidência, transparência de sentido produzida por um sujeito uno, homogêneo, todo-poderoso. É um sujeito que divide o espaço discursivo com o outro. (BRANDÃO, 2004, p. 59). A memória, para a AD, é tratada como interdiscurso, ou seja, como aquilo que já foi dito antes, em outro lugar, e que retorna sob a forma do pré-construído: ( ) o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pre-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra.(...)o interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada (ORLANDI, 2009, p. 31). O interdiscurso é, portanto, todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos. Assim, há uma relação entre o já-dito e o que se está dizendo (ORLANDI, 2009, p. 32). Também, o interdiscurso se organiza a partir das chamadas 116

formações discursivas (doravante FD s). As FD s constituem o espaço em que é articulado o discurso e a ideologia. Segundo Brandão (2004, p. 48), um lugar central da articulação entre língua e discurso, as FD s são componentes de uma formação ideológica, uma vez que as materializam através do discurso. O dado, na AD, se realiza a partir dos indícios apontados pelas marcas linguísticas, que se voltam ao processo discursivo, recortados e interpretados pelo analista, cujo trabalho se situa entre a descrição e a interpretação (ORLANDI, 2009), instâncias que se colocam de forma complementar. A análise não se dissocia da teoria, e a interpretação ocorre desde a seleção e a delimitação do corpus, até o fechamento da análise. Assim, teoria e análise não são etapas distintas, mas que se entrecruzam continuamente no processo de pesquisa. Esses são os elementos teóricos centrais que serão utilizados na análise a seguir, embora a AD possua um referencial muito mais amplo a ser considerado. 4 A PUBLICIDADE DO DIA DAS MÃES: RELIGIÃO, CONSERVADORISMO E CAPITALISMO A publicidade impressa selecionada para esta análise é de uma marca tradicional de camisas, Dudalina, peça que foi publicada na Revista Cláudia, em maio de 2012, em um número denominado Mães campeãs. A revista possui periodicidade mensal e é dividida em secções com diversos assuntos habitualmente relacionados ao público feminino, tais como: moda, beleza, saúde e trabalho, entre outros. Segue o texto publicitário: 117

Figura 1. Publicidade selecionada. Fonte: Revista Cláudia, n. 5, ano 51, maio 2012. O enunciado principal cita o nome da marca e traz a seguinte sequência Camisas para mães que decidem. Em seguida, O Nascimento dos filhos, para a mãe / Era como uma Dádiva divina / A felicidade dela era tão grande/ Tanto fazia ser menino ou menina.. Ao fim do texto citado, há a referência De Duda para Adelina do seu livro: uma vida de amor em verso e prosa. No centro, há imagens fotográficas de crianças ainda bebês, referentes aos dezesseis filhos da figura da mulher impressa ao fundo, em tamanho maior na página e, portanto, em posição de destaque. O primeiro elemento a ser considerado nesta análise é o enunciado Camisas para mães que decidem (grifo do anúncio na palavra mãe). A camisa, objeto de venda a ser comercializado, destina-se, segundo o enunciado, a mães, sendo que o substantivo mãe, neste caso, engloba toda a categoria das mulheres, possíveis consumidoras do produto. Entretanto, não são quaisquer mães, mas mães que decidem. As marcas linguísticas vinculam essa formulação com um discurso que pode ser lido a partir de FD s distintas: um discurso capitalista, que coloca a mulher a quem o anúncio se dirige em uma posição de consumidora, com poder aquisitivo para comprar o produto, mas que, ao se referir à empresa que leva a fusão do nome de seus fundadores ( Dudalina, Duda e a esposa Adelina), coloca a 118

marca, substantivo feminino, também em posição de autoridade, como uma mulher que vende e, assim, é bem sucedida. Contudo, outro aspecto emerge a partir do interdiscurso que constitui esse dizer. Ao instituir a categoria mães que decidem, imediatamente subentende-se que existe um outro grupo: o das não consumidoras do produto, que seria o das mães que não decidem. Além disso, pode-se mencionar o fato de que a palavra decidir realiza-se polissemicamente, à medida que seu sentido pode estar relacionado à decisão enquanto uma posição de poder da mulher que tem poder aquisitivo para tanto, nesse caso, da mãe, que é tomada como sinônimo de mulher. O sentido também pode estar relacionado à decisão de comprar ou não o produto, o que produz um efeito de interpelação no sujeito-interlocutor. Já o texto apresentado após, demarcado por aspas na peça, foi escrito por Duda (fundador da marca, marido de Adelina e pai da família representada nas fotografias), trecho presente no livro Uma vida de amor em verso e prosa, autoria indicada por De Duda para Adelina, o que demarca uma visão masculina sobre a maternidade. Embora tanto a imagem da mulher ali colocada, quanto o texto expresso verbalmente após sejam relativamente antigos, o que se pode perceber pela imagem em preto e branco de Adelina e pelo tipo de fotografia dos filhos (fotografias múltiplas da face de cada bebê), por exemplo, o efeito discursivo que a propaganda revela permanece atual, pois se trata de uma campanha realizada em 2012. Tal constatação demonstra que, ainda hoje, se tem uma concepção de mãe bastante conservadora e ligada a uma FD religiosa. Tal elemento discursivo é materializado na expressão Dádiva Divina, que remete a um interdiscurso ligado ao Cristianismo, associado à figura de Maria, o qual permite uma relação da noção de filho como sinônimo de alegria ( dádiva ) e legitima o lugar da mãe como algo sagrado ( divina ). A mãe representada é uma mulher também conservadora, o que se pode perceber pelos elementos visuais, a partir da roupa, do cabelo e inclusive pelo fato de ser representada apenas de rosto, sem a evidenciação do restante de seu corpo. Ainda na descrição apresentada pelo marido Duda sobre a esposa, tem-se o trecho que naturaliza o amor materno e coloca a maternidade como um estado de felicidade plena para a mulher: A felicidade dela era tão grande, tanto fazia ser menino ou menina. Mais uma vez, esse efeito é legitimado pela FD religiosa. Ao produzir esse sentido, pela filiação a essa e não outra FD silencia-se toda e qualquer referência aos elementos históricos apontados por Badinter (1985), como se fosse natural ou divina a associação da mãe com o amor materno. Outro aspecto a ser considerado é 119

o fato de esse trecho ter sido retirado do texto escrito por Duda, patricarca da família fundadora da camisaria, o que indica um lugar discursivo específico ao expressar a importância do papel da maternidade para aquela família e, especialmente, para aquela mulher ( Adelina ). Passado o período moderno, em que muitas mudanças significativas se deram na história das mulheres, as configurações identitárias foram cada vez mais se afastando do foco central da maternidade e incorporando outras possibilidades de realizações e papéis (EMIDIO, 2008). Contudo, a publicidade analisada não faz referência a outras possibilidades de realização ou de papel feminino, pois, apesar de considerar que a mulher pode ser alguém que decide, ainda assim, não é uma mera mulher que decide, mas uma mãe, como se fosse inerente ao papel feminino a função da maternidade. Nesse sentido, o texto ainda aponta para um discurso que se apega ao que se pode denominar uma FD conservadora, fato confirmado pela imagem visual de família que é vendida pelo anúncio: uma família tradicional, de posses, nuclear e religiosa, o que se materializa na informação colocada ao final, abaixo da imagem: Duda e Adelina tiveram 16 filhos e fundaram a Dudalina em 1957. Essa última informação congrega enunciados de uma FD religiosa e conservadora, que coloca a família nuclear e a maternidade como algo divino e modelo a ser seguido, juntamente com uma FD capitalista, que apresenta a empresa como produto dessa família bem sucedida. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O papel social da mulher passou por diferentes períodos e visões, sendo, por um longo período, associado à função de esposa, dona de casa e cuidadora. Embora tenham ocorrido diversos acontecimentos que propiciaram alterações nesse cenário, tais perspectivas ainda permanecem comuns em alguns segmentos. Esse é o caso da propaganda analisada, que aponta para lugares discursivos diversos, apoiando-se em formações discursivas religiosas, conservadoras e capitalistas, produzindo sentidos que naturalizam o papel da mulher em relação à maternidade e trazem o amor materno como inerente à constituição da própria mulher. Deixa de ser mencionada, dessa maneira, toda a realidade histórica referente à construção da maternidade e do amor materno, que afirma a extrema variabilidade desse sentimento e assim, sua não instintividade ou inerência. 120

A campanha produz, dessa forma, um sentido de evidência desse amor como algo natural e que faz parte do cotidiano de toda mulher. Ao mesmo tempo, toma como objetivo vender um estilo de vida e, para isso, alia a imagem de uma família/produto conservadora, cristã e bem sucedida, e de uma mãe tradicional que é associada à marca de camisas e, por conseguinte, à consumidora que pode adquiri-la. REFERÊNCIAS ARIES, P. História social da criança e da família. 2. Ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981. BADINTER, E. Um Amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do discurso. 2. ed. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2004. EMIDIO, T. S. Diálogos entre feminilidade e maternidade: um estudo sob o olhar da mitologia e da psicanálise. 2008. 146 p. Dissertação (Mestrado em Psicologia)- Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2008. NADER, M. B. Mulher: Do destino biológico ao destino social. Vitória: EDUFES, 1997. ORLANDI, E. P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 8. ed. Campinas, São Paulo: Pontes, 2009. PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3. ed. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 1997. REVISTA Cláudia, n. 5, ano 51, maio 2012. TFOUNI, L; SANTOS; K.A. Reproduzir é a nossa natureza : a propaganda do dia das mães sob a ótica discursiva. Linguagem e publicidade, 2013 (no prelo). VENÂNCIO, R.P. Maternidade negada. In: PRIORE, M. D (Org). História das Mulheres no Brasil. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2000. p. 189-222. 121