Ética como questão fundamental para excelência moral: estudo da obra Cartas a Lucílio, de Lúcio Aneu Sêneca



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Transcrição:

822 IV Mostra de Pesquisa da Pós-Graduação PUCRS Ética como questão fundamental para excelência moral: estudo da obra Cartas a Lucílio, de Lúcio Aneu Sêneca Joel Extramar, Reinholdo Aloysio Ullmann (orientador) Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, PUCRS Resumo O presente estudo teve por objetivo identificar na obra Cartas a Lucílio, que é considerada a mais importante de quantas subsistem da autoria de Lúcio Aneu Sêneca, uma soma de reflexões sobre enorme variedade de problemas, na sua totalidade de caráter ético, conquanto firmados num quadro teórico perfeitamente delimitado e coerente, se revestem de um caráter extremamente prático, isto é, constituem uma análise de situações concretas e de apreciações de grande agudeza sobre a natureza e o comportamento humano na busca do conhecimento e na forja de uma sabedoria. A ética ou a busca da excelência em todas as questões que se articulam em torno dela é um pensamento em ação desde, pelo menos, a antiga Grécia, berço e origem do debate filosófico. Ao longo dos tempos, questões fundamentais ocuparam espaço de reflexão constantemente renovado, de acordo com as mudanças históricas da humanidade. A natureza dos problemas suscita uma pertinência transcendente à época em que foram redigidas e oferecem uma viva fonte de meditação para aqueles que pretendam questionar-se sobre os valores da sociedade em que estão inseridos. Aliás, esse aspecto foi determinante no empreendimento deste reduzido estudo, provocativo e persuasivo, de que a leitura de Sêneca pode ser, nos dias de hoje, de uma utilidade prática evidente como precioso auxiliar no entendimento da natureza humana, na determinação dos valores da existência, de uma vida mais digna e uma existência moral com excelência.

823 Introdução O ético é, na filosofia senequiana, central, substantivo e quase que exclusivo, onde ao aspecto moral se subordina todo outro; o caráter filosófico moral da obra faz-se presente e atuante na nossa realidade sociocultural. A ética existe para as pessoas e estas são seus agentes vivos: não há como colher frutos, se ela depender apenas de regras codificadas. Muitos são os equívocos possíveis que podem ser cometidos por qualquer um de nós. Assim, somos gentil e luminosamente dirigidos a exercitar ao máximo todas as potencialidades de nosso intelecto, segundo suas diferentes disposições. A ética é um grande caminho para o encontro com a felicidade. Estamos diante de um problema: como atingir a plena felicidade, sem uma excelência moral de nossos atos e hábitos? O objetivo geral foi empreender um estudo da obra para identificar questões éticas fundamentais e suas implicações para excelência moral, bem como evidenciar como Sêneca colocava-se frente a problemas do cotidiano e que dificultavam a excelência nos atos e hábitos dos homens, na sociedade na qual se inseria e, por fim, extrair questões éticas fundamentais, destacando-as do campo da abstração filosófica e dando-lhes concretude visível, ou, em outras palavras, a sonhada escola da vida, em que emoção e razão devem construir juntas o equilíbrio do ser humano. Sêneca fez consistir toda a sua Filosofia na moral, sobretudo na prática de preceitos concretos, podendo, pois, ser denominada parenética. A maior parte de suas obras constitui-se de ensaios de ética, perpassados de conselhos sobre como proceder no dia-a-dia e são endereçados a pessoas que lhe expunham o estado da alma, que lhe vinham pedir orientação espiritual e um regime de vida a ser seguido. Razão tem, portanto, Rivaud (1940, T I, p. 451), ao escrever: Filosofia, para Sêneca, é arte de agir, remédio das paixões ou doenças da alma, ou ainda, sã pedagogia, que molda os homens para a virtude.

824 Para progredir moralmente, Sêneca prescreve o exercício constante do exame interior. A prática da virtude não há de ser interesseira e, sim, prêmio de si mesma. Confirmam-nos vários textos. Bastam dois tópicos: O preço de todas as virtudes está nelas mesmas. Não se praticam em razão de prêmio: a recompensa está em ter agido corretamente (Sêneca, Cartas 84 e 91). Neste estudo, o foco recaiu sobre a ética senequiana, relevando apenas os tópicos que se afiguram fundamentais para a concepção de uma excelência moral. Cumpre dizer que os termos ética e moral serão empregados, indistintamente, como o faz a maioria dos autores. O motivo baseia-se em que o vocábulo grego éthos, com o significado de costume, reta conduta, foi traduzido para o latim, com o mesmo sentido mos, moris, donde mores, moralis, moral. Já o vocábulo excelência é empregado no sentido de virtude. Metodologia O procedimento metodológico empregado foi o analítico-descritivo, entendendo-se por analítico uma clarificação de conceitos, tais como: moral, ética, valores, excelência, disposições, virtude, entre outros, com o intuito de precisar e compreender o uso desses conceitos no tema em questão. Por descritivo compreenda-se uma exposição sobre as questões fundamentais a serem identificadas na obra e relacionadas à formulação de uma moral nos atos e hábitos do cotidiano. O estudo foi realizado em fases, a saber: 1ª Fase: Definição prévia de questões fundamentais para formulação de uma excelência moral, tais como: não ser escravo do dinheiro; dose adequada de pretensão e ambição; bom senso e sensibilidade; verdade; bom humor; recato e os bons costumes da ética. 2ª Fase: Leitura preliminar da obra, identificando, carta por carta, as questões previamente definidas.

825 3ª Fase: Leituras complementares da obra, agrupando as cartas relacionadas às questões previamente definidas, bem como de outras obras, procedendo a análise e descrição sobre questões fundamentais definidas na 1ª fase e as respectivas considerações. 4ª Fase: Elaboração do relatório final, relacionando as questões definidas para o estudo do conteúdo de cada carta. Resultado Como resultado, podemos afirmar que a leitura e estudo da obra citada pode ser uma fonte de questões fundamentais para a concepção de uma excelência moral, tendo em vista que bons atos e hábitos são fundamentais para a realização de atividades harmonizadas com excelência, porque boas ações precisam fazer parte do cotidiano. Conclusão Estamos diante de uma aparente contradição à ética: vivemos em um mundo que independe de nós, rodeados de pessoas com vontade própria e, portanto, sujeitos a nos depararmos com as mais variadas situações, mas ao mesmo tempo a ética se volta, sobretudo, para os hábitos, o que dá a entender, à primeira vista, que ela se preocupa com aquilo que se repete em nossos comportamentos, nos diferentes contextos em que estamos mergulhados no dia-a-dia. Mas esta é uma falsa contradição, pois os hábitos que a ética procura estudar são, na verdade, as nossas disposições em agir de uma ou de outra maneira, conforme nos encontramos diante de uma ou de outra situação. Explicando de outra maneira, os hábitos que a ética aponta serem bons é que indicam como agiremos e a tendência de nosso comportamento diante de uma decisão que tenhamos de tomar. Está claro, pois, que a ética se relaciona intimamente com os costumes, com o cotidiano, com as ações que mostram o que e como somos; mostra os nossos valores, o nosso caráter. Desse modo, para sermos bons e alcançarmos um dos objetivos da ética, ou seja, a excelência moral, temos de praticar bons atos e não só nomeá-los. Identificar questões éticas fundamentais na obra de Sêneca, relacionadas à excelência moral, parece um bom caminho.

826 REFERÊNCIAS ARISTÓTELES.Ética a Nicômacos. 4.ed. Brasília:Ed. Universidade de Brasília,2001. RIVAUD,Albert.Histoire de La Philosophie.Paris:PUF,1940.Tome I. SÊNECA,Lúcio Aneu.Cartas a Lucílio.2.ed. Lisboa:Fundação Calouste Gulbenkian,2004. ULLMANN,Reinholdo Aloysio.Estoicismo romano:sêneca,epicteto,marco Aurélio. Porto Alegre:EDIPUCRS,1996(Coleção Filosofia;45).