ANTIGA TRADIÇÃO DE ENCONTROS DA LITERATURA BRASILEIRA COM O CINEMA: PAULO EMÍLIO E LYGIA EM CAPITU



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Transcrição:

ANTIGA TRADIÇÃO DE ENCONTROS DA LITERATURA BRASILEIRA COM O CINEMA: PAULO EMÍLIO E LYGIA EM CAPITU Julierme Sebastião Morais Souza* Universidade Federal de Uberlândia UFU juliermehistoriador@hotmail.com Ano de 1967. Rua Sabará, 400, São Paulo. Acordamos luminosos na manhã daquele mês de novembro, Paulo Emílio e eu: íamos começar, afinal, a escrever este roteiro. Já tínhamos discutido antes as dificuldades de recriar literariamente Dom Casmurro para uma futura adaptação cinematográfica. Lygia Fagundes Telles Capitu Algumas das melhores fitas realizadas atualmente renovam a antiga tradição de encontros da literatura brasileira com o cinema e confirmam que desapareceu finalmente o abismo que durante décadas divorciou o cinema nacional das elites intelectuais e artísticas do país. Paulo Emílio Salles Gomes Panorama do cinema brasileiro: 1896/1966 Depois de Três mulheres de três PPPês e do inédito Cemitério a Cosacnaify segue seu projeto para publicação da toda a obra de Paulo Emílio Salles Gomes com o roteiro cinematográfico Capitu. 1 Este texto, escrito por Paulo Emílio Salles Gomes e * Mestrando pelo Programa de Pós Graduação em História (PPHIS) pela Universidade Federal de Uberlândia. Integrante do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC). 1 GOMES, Paulo Emílio Salles Gomes; TELLES, Lygia Fagundes. Capitu. 2 ed. São Paulo: Cosacnaify, 2008.

2 Lygia Fagundes Telles sua esposa no período, data de 1967 e foi recuperado pela editora nos arquivos da Cinemateca Brasileira. A obra é uma revisita do casal ao clássico machadiano Dom Casmurro com o objetivo de transpô-lo em roteiro fílmico 2. Além de resguardar o essencial do texto original, esse volume conta com um Posfácio, de Lygia Fagundes Telles. Escrito na ocasião da primeira edição de 1993 e revisto para essa publicação, esse Posfácio revela algumas minúcias das circunstâncias da época deste desafio. Ademais, há o Apêndice, de Augusto Massi, que, redigido especialmente para a presente edição, traz à luz alguns importantes escritos de Paulo Emílio Salles Gomes depositados na Cinemateca Brasileira. Esses escritos revelam o apreço do crítico e historiador pela obra de Machado de Assis, assim como suas possíveis articulações na relação com o cinema. Para melhor entendimento do roteiro Capitu, de Paulo Emílio e Lygia, faz-se relevante rememorar ao leitor o enredo da obra Dom Casmurro, de Machado de Assis. O romance psicológico Machadiano narra a estória de Bentinho que, ao longo da trama, e por diversas nuanças, fecha-se em si mesmo até ser conhecido por Dom Casmurro. A ordem da narrativa é retrospectiva, o final da estória é evocado no início para posteriormente atingir um relato em ordem cronológica. É importante ressaltar que não vemos os fatos em Dom Casmurro, tomamos conhecimento deles pela narração de Bentinho, que relata em tom geral de ironia, cuja essência chega a atingir, até mesmo, suas autocríticas. 2 Cabe ressaltar que esta adaptação livre/roteiro teve seu desmembramento em filme homônimo de 1968 dirigido por Paulo César Saraceni, inclusive, contanto com atores importantes como Othon Bastos e Raul Cortez.

3 O lugar social do romance é o Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. Órfão de pai, criado pela mãe Dona Glória super-protegido por seu círculo familiar, Bentinho é prometido à vida sacerdotal por sua mãe. Não obstante, o jovem interessa-se mais pelo namoro com a filha dos vizinhos da família Capitu que pela vida que a mãe escolhera para ele. Desse modo, por intermédio do antigo amigo da família José Dias Bentinho abandona o seminário e, com o passar dos anos, formase em Direito, casa-se com Capitu e estreita os laços de amizade com seu ex-colega de seminário Escobar, que também abandona a vida sacerdotal e casa-se com a amiga de Capitu: Sancha. Dos laços matrimoniais de Bentinho e Capitu nasce o herdeiro Ezequiel. O momento forte e preponderante para o desenrolar do romance é a morte de Escobar, precisamente o velório. Naqueles momentos Bentinho julga estranho o modo no qual Capitu contempla o cadáver de seu amigo. Desde então, altas dosagens de ciúmes permeiam a vida do casal e, ao passo que Ezequiel cresce tornando-se cada vez mais parecido com Escobar, os ciúmes de Bentinho só fazem aumentar, chegando até a planejar o assassinato da esposa e do filho para posteriormente suicidar, porém, por falta de coragem não consegue realizar tal feito. A crise proeminente do caráter de Ezequiel, cada vez mais análogo ao de Escobar, e os ciúmes de Bentinho, Paulo Emílio e Lygia acabam por promover a separação do casal. Capitu viaja com o filho para Europa, local onde morre anos depois. Ezequiel volta ao país para visitar o pai, que mais uma vez constata a semelhança de Ezequiel à Escobar. Algum tempo depois Ezequiel volta para o estrangeiro e também morre. O romance desenvolve-se com Bentinho cada vez mais aprisionado por suas dúvidas, fator pelo qual é cognominado pelos amigos e vizinhos de Casmurro, momento então que inicia a narração do livro.

4 Em Capitu Paulo e Lygia salvaguardam o local e tempo social do romance machadiano. Com muita fidelidade ao original, o romance inicia-se com Bentinho e Capitu já casados e relembrando sua juventude. Tais lembranças aparecem com o amplo uso de Flash-Backs, que recontam a infância do casal, suas aspirações e alguns fatos importantes para o desenrolar do Romance. Por conseguinte, com esse recurso dos Flash-Backs, além de conseguir delinear uma perspectiva analítica do caráter de Bentinho, os autores dão ênfase no fator econômico que, de maneira sui generis, aparece no roteiro na proeminência das passagens que valorizam as jóias de Dona Glória, fundamentando um viés interpretativo no qual Capitu emerge como a traidora que se casou por interesses econômicos e Bentinho aparece como o puro e nostálgico apaixonado, ou seja, sobre Capitu começam a pairar, portanto, dúvidas sobre seu verdadeiro amor por Bentinho. Em um segundo momento (bloco de cenas) da adaptação de Paulo e Lygia, a supremacia da relação de amizade entre Bentinho e Escobar, e o nascimento de Ezequiel tomam corpo fundamentando um importante eixo de ligação temática e psicológica da trama. Sobre Ezequiel, são dedicadas várias cenas para uma caracterização de sua semelhança com Escobar: primeiro aparece como mania da criança em imitar todas as pessoas do círculo familiar, depois ganha tom mais agressivo e proporciona ao leitor/expectador novamente a desconfiança com relação à fidelidade de Capitu. Dessa maneira, todas as perspectivas de desconfiança são levantadas pelas atitudes da personagem Bentinho, o que, consequentemente, nos levam a conceder o benefício da dúvida à Capitu. Uma cena memorável e intrigante que, automaticamente, pode provocar uma reviravolta de interpretação do romance é a cena em que Sancha e Bentinho têm um suposto flerte romântico na casa de Escobar. Nela e em alguns de seus desmembramentos o leitor/expectador pode ser levado a pensar que Bentinho sente algo por Sancha, porém, tal perspectiva logo é subsumida pela grande ênfase nas emotivas e convincentes declarações de amor de Bentinho para Capitu. Nesse mesmo contexto do suposto flerte de Bentinho e Sancha, Paulo e Lygia engendram mais um momento de extrema importância e complexidade. Em um diálogo com Bentinho, Escobar abordando sua coragem em nadar no mar, afirma: Rapaz, tenho nadado em mares

5 piores. 3 Escobar logo após tal frase lança um olhar para Capitu como quem queria saber se ela estava ouvindo. Pronto, está criada mais uma cena que pode levar o leitor/expectador a conclusões precipitadas, mas que, logo depois, são elididas por dúvidas provenientes de uma maior reflexão. Assim, nos resta indagar: Será esta o arquétipo metodológico instrumentalizado pelos autores? Provavelmente, hoje em dia somente Lygia tem a resposta ou, talvez Paulo Emílio tivesse, porém, não teve tempo para expô-la. No terceiro bloco de cenas o caráter psicológico do romance suprime qualquer outro. A psicologia dos personagens aparece no âmago de todas as cenas. Em especial, merece destaque a capacidade dos autores em expor os acontecimentos sem nenhum diálogo, ou com muito poucos, dando ênfase ao caráter de cada personagem. A cena da revelação do afogamento de Escobar à Capitu possui pouquíssimos diálogos, porém, é extraordinária. Do mesmo modo, a cena do velório de Escobar, com destaque do foco narrativo à semelhança dos gestos de Capitu e Sancha que, por vezes confundiam-se, ao ponto de, supostamente, demonstrarem uma dor análoga das duas mulheres, demonstram uma habilidade intelectual que poucos autores possuem. Dessa forma, como o destaque do foco narrativo fica por conta da semelhança dos modos de sofrer de Sancha (a esposa de Escobar) e Capitu (a suposta amante), o leitor/expectador automaticamente é induzido a encarar com naturalidade a traição de Capitu. Não obstante, pouco tempo depois, é forçado a notar que o condutor do foco narrativo naquela cena, mesmo não a narrando, mas a conduzindo com os olhos, é a personagem Bentinho, assim, mais uma vez somos condicionados a considerar que o ponto de vista desta traição é o ponto de vista de Bentinho. Com efeito, cena sublime e incontestável que resguarda a tensão e a atenção do leitor/expectador é a passagem em que Bentinho toma a atitude de por fim à própria vida, sobretudo, no momento em que é interrompido resolvendo, assim, matar Ezequiel, quando é interrompido novamente. Indubitavelmente, o itinerário de Bentinho: passagem no teatro, onde estava sendo encenada Othelo; parada na farmácia, com a compra do veneno; noite em claro e manhã perturbadora, tomam corpo como uma das passagens mais envolventes de Capitu. Aqui, a supremacia da capacidade intelectual idiossincrática com que os autores tratam o objeto literário transpondo-o em linguagem 3 GOMES, Paulo Emílio Salles Gomes; TELLES, Lygia Fagundes. Capitu. 2 ed. São Paulo: Cosacnaify, 2008, p. 110.

6 cinematográfica ganha luz suprimindo outras passagens, não menos relevantes, do romance. Don Casmurro é respeitado em todas as suas características originais e, ao mesmo tempo, ganha complexidade com diversas outras nuances que podem ser desferidas sobre o leitor/expectador. Assim, o roteiro fílmico de Paulo e Lygia arregimenta ao texto original machadiano uma complexidade estética com maior precisão de detalhes nos cenário, nas ênfases cênicas, nas tomadas de câmera, que podem ser confundidas com o foco narrativo, além de proporcionar a quem toma contato com Capitu uma pequena dose do repertório cinematográfico de Paulo Emílio. Digno de referência é a perseverança dos autores em buscar trilhar os caminhos de uma neutralidade com relação os viesses interpretativos que a obra machadiana pode indicar. A cada leitura da obra é inevitável não tomar partido, seja pela vertente que condena Capitu como uma traidora, ou pela outra que atribui a Bentinho ciúmes excessivos. Não obstante, Paulo e Lygia condensam as duas em um roteiro fílmico que consegue um sintomático e pertinente automatismo com relação à obra original machadiana. No Posfácio denominado Às vezes novembro, escrito em 1992 por Lygia Fagundes Telles e revisto para esta publicação, ganha grande vulto o contexto da elaboração do roteiro. Emerge com muita naturalidade como Paulo César Saraceni os convidou para transpor Dom Casmurro em roteiro fílmico, o dia-dia do casal no processo da escrita de Capitu e algunas menções ao acirramento da ditadura militar pré- AI-5. Lygia consegue delinear, com bastante precisão no texto, a indissociabilidade do processo de escrita do roteiro e as discussões teóricas que se transformavam em discussões caseiras do casal. Desse modo, chega a nos revelar o apreço de Paulo Emílio por apelidos e a curiosidade, não menos relevante, de que no momento de preparação de Capitu, Paulo Emílio estava preparando seu ensaio clássico Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. No Apêndice por Augusto Massi tomamos contato com dois relevantes esquemas de curso ministrados por Paulo Emílio na pós-graduação de Teoria Literária da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. No primeiro, Massi torna público o esquema do curso Dom Casmurro e cinema de 1974, dando ênfase na exigência de Paulo Emílio aos alunos: Os alunos devem estar familiarizados com Dom Casmurro ao começar o curso e dispostos a relê-lo muito durante o mesmo. No segundo, Machado de Assis no cinema de 1975, demonstra

7 que Paulo abrira o leque temático arregimentando à Dom Casmurro alguns contos machadianos. A relevância atribuída aos olhos no romance é evidenciada pelo texto de Massi que, além disso, destaca a importância de Capitu por Paulo e Lygia no próprio curso ministrado pelo primeiro, ou seja, Massi nos demonstra que [...] sete anos depois, a paixão de Paulo Emílio por Dom Casmurro continuava acesa. 4 Complicar demais ou sobrecarregar analiticamente Capitu, lhe atribuindo importância indevida, não é nossa tarefa. No entanto, trazer ao público leitor a relevância teórica e estética dessa obra é quase que desempenhar um papel de arauto dessa adaptação livre/roteiro de Paulo Emílio e Lygia Fagundes Telles. À luz do primeiro exame salta em um primeiro plano na obra a consistência estética, a neutralidade, e o aparato técnico cinematográfico, demasiadamente conhecido por Paulo Emílio. Todavia, indubitavelmente, se debruçarmos mais atentamente sobre o romance, nos saltará aos olhos a crítica cinematográfica, os estudos acadêmicos e a consciência teórica de Paulo Emílio, obviamente, agregadas à capacidade intelectual em urdir um enredo literário de Lygia Fagundes Telles, formando, assim, uma inexaurível proposta fílmica para Dom Casmurro. Com efeito, esta obra é um documento de valor fundamental para os estudiosos em literatura, para historiadores que pesquisam linguagens, principalmente, cinematográfica, e para os apreciadores de uma boa leitura. Pois, Capitu, reconhece a importância de Dom Casmurro, com uma consciência literária muito respeitosa ao original, ao mesmo tempo, que perpassa suas possibilidades analíticas, proporcionando aos estudiosos em cinema adentrar em seu caráter técnico de tomadas de câmera, foco narrativo etc. trilhando o caminho de uma prolífica imbricação disciplinar, sem, no entanto, perder a rigidez teórica que estudos de relevância acadêmica requerem. Por estas razões elencadas, Capitu de Paulo Emílio Salles Gomes e Lygia Fagundes Telles é, de fato, leitura obrigatória. Diante dessa obra sabemos que é um truísmo recorremos a uma consagrada frase, porém, fazemos opção por pecar pelo excesso e não pela falta. Portanto: uma boa leitura! 4 GOMES, Paulo Emílio Salles Gomes; TELLES, Lygia Fagundes. Capitu. 2 ed. São Paulo: Cosacnaify, 2008, p. 196.