UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA FÁBIO OLIVEIRA PAVÃO



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Transcrição:

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA FÁBIO OLIVEIRA PAVÃO A DANÇA DA IDENTIDADE Os usos e significados do samba no mundo globalizado Niterói 2010

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA FÁBIO OLIVEIRA PAVÃO A DANÇA DA IDENTIDADE Os usos e significados do samba no mundo globalizado Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor. Vínculo temático Linha de Pesquisa do orientador: Ritual e simbolismo no mundo moderno Niterói 2010 2

Prof. Orientador Dr. José Sávio Leopoldi Universidade Federal Fluminense 3

Banca Examinadora Prof. Orientador Dr. José Sávio Leopoldi Universidade Federal Fluminense Profª. Drª. Sylvia França Schiavo Universidade Federal Fluminense Prof. Dr. Isidoro Maria da Silva Alves Museu de Astronomia Profª. Drª. Simoni Lahud Guedes Universidade Federal Fluminense Prof. Dr. Felipe Ferreira Universidade do Estado do Rio de Janeiro 4

Aos meus pais, Vanderlei e Glória. Ao meu sobrinho Davi, com a certeza de que as adversidades existem para serem superadas. 5

Agradecimentos Escrever os agradecimentos nunca é uma tarefa fácil. Existe o risco de esquecer alguém importante, que contribuiu de alguma forma para a realização do trabalho e da pesquisa, o que é sempre uma gafe imperdoável. No entanto, como mandam as convenções da academia, esta é uma parte fundamental na realização de qualquer dissertação ou tese. Em primeiro lugar, agradeço ao professor Dr. José Sávio Leopoldi, que, ao longo dos últimos sete anos, acumulou, sempre com muita paciência, as funções de orientador e amigo. Sua contribuição não apenas para os meus trabalhos finais, tanto no mestrado quanto no doutorado, mas, sobretudo, para a minha formação profissional, são impossíveis de serem descritas nestas páginas. Agora, com a conclusão desta tese, sinto-me em condições de caminhar sozinho, mas seu exemplo continuará guiando os meus passos. Também agradeço ao PPGA da UFF, que, de forma transparente e profissional, sempre acreditou e, principalmente, fez com que eu mesmo acreditasse na minha capacidade. Desde 2003, quando ingressei no mestrado, encontrei um ambiente, acima de tudo, de companheirismo. As crescentes cobranças, necessárias para a boa avaliação do Programa, sempre foram por mim compreendidas como parte de um esforço coletivo em que todos, dentro da sua área, se empenhavam. Ao longo destes sete anos, nunca me vi apenas como um aluno, mas como parte de uma equipe que buscava um objetivo comum: o crescimento e o sucesso de nosso Programa. Fico muito feliz em constatar que, durante o período em que estive vinculado ao PPGA, várias conquistas foram alcançadas. Agradecimentos especiais dedico à professora Drª Simoni Lahud Guedes, coordenadora do Programa durante os anos em que cursei o doutorado, e aos professores com quem tive o privilégio de freqüentar cursos nos últimos quatro anos: Dr.Sidnei Clemente Peres, Dr. Marco Antonio da Silva Mello, Drª Laura Graziela F. F. Gomes e Drª Priscila Faulhaber Barbosa. Acho importante também lembrar dos amigos que entraram comigo no processo seletivo de 2005: Pedro Fonseca Leal, Lênin Pires, Rolf de Souza e Andréa Bayerl Mongim. Em relação ao andamento deste trabalho, de grande valia foram as observações da banca que examinou o pré-projeto aceito pela coordenação do programa, formada pelos professores Dr. Paulo Gabriel H. da Rocha Pinto, Dr. Marco Antonio da 6

Silva Mello, Drª. Simoni Lahud Guedes, Dr.ª Lygia B. P Segala Pauleto e Drª. Laura Graziela F. F. Gomes. As muitas críticas construtivas, formuladas quando ainda estruturava este trabalho, foram fundamentais para que encontrasse um rumo definitivo, estabelecendo um norte para o prosseguimento da pesquisa. De grande importância também foi a banca que examinou o projeto durante a qualificação, em maio de 2007, e, posteriormente, o copião da tese, já na fase final. Tenho muito o que agradecer à professora Drª. Sylvia França Schiavo e ao professor Dr. Isidoro Maria da Silva Alves, cujas recomendações, críticas e sugestões contribuíram para que minhas idéias fossem aperfeiçoadas e, de fato, se transformassem em um trabalho acadêmico. Ao longo dos quatro anos que durou a pesquisa para esta tese, foi necessário também aprofundar o conhecimento sobre alguns temas relevantes que surgiam à medida que o trabalho avançava. A participação em debates e reuniões com especialistas, realizadas durante encontros e congressos de Antropologia em várias cidades do Brasil, como Goiânia, Porto Alegre e Porto Seguro, foram imprescindíveis para o meu aprofundamento teórico sobre várias questões. Da mesma forma, igualmente relevante foram as participações em vários encontros realizados nas cidades do Rio de Janeiro e de Niterói, com destaque para as Jornadas de Antropologia do PPGA. Infelizmente, por uma das gafes acima mencionadas, não vou recordar o nome de todos que, de alguma, contribuíram e mereceriam agradecimentos. Em relação aos dados empíricos, deixo meus agradecimentos aos vários grupos que me receberam e permitiram, além de participar, ampliar os meus conhecimentos sobre o samba e as escolas de samba. Agradeço a Simone, Alice e Elisa Fernandes, responsáveis pelo site Tudo de Samba, que, nos últimos anos, possibilitou que eu tivesse contato com várias personalidades importantes do mundo do samba. As participações nas transmissões das rádios Transamérica e 107 FM, respectivamente nos carnavais de 2008 e 2009, me fizeram compreender que, após tantos anos de estudos, já era, além dos muros da academia, considerado um especialista no tema. Agradeço ao jornalista Marcelo Barros e a toda equipe pela oportunidade. De fundamental importância também foi a participação no grupo Portelaweb, onde, desde a pesquisa para a dissertação de mestrado, encontrei amigos dispostos a passar a madrugada conversando sobre as escolas de samba e, especialmente, sobre a Portela. Foi 7

a partir deste grupo que, ampliando meus contatos, conheci a realidade da velha guarda da Portela e estreitei relações com a Associação de Moradores de Oswaldo Cruz e com sambistas importantes, como Marquinhos de Oswaldo Cruz. Agradeço, sobretudo, ao Rogério Rodrigues e ao Vanderson Lopes. Também não posso deixar de agradecer aos membros das listas de debates e discussões pela internet Planeta Samba e Rio-carnaval, espaços onde aprendi muita coisa sobre a folia carioca. Esta última, criada e mantida pelo Professor Dr. Felipe Ferreira, além das discussões e trocas de informações pela grande rede, organizou também debates sobre a relação entre a internet e o carnaval, em parceria com o mestrado em artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tive a oportunidade de mediar dois destes encontros que estreitaram os laços entre intelectuais e sambistas. Também agradeço aos coordenadores da premiação samba-net, grandes amigos que faço questão de citar nominalmente: Luiz Fernando Reis, Paulo Renato Vaz Arranha, Vitor Augusto do Rego Monteiro, Mauro Cortez Samagaio, Jorge Mendes Carneiro, André Bonatte, Tatiana Ribeiro, Marcos Capeluppi, Thiago Saldanha Lacerda, Rafael Marçal, Chico Frota, Márcio Zuma, Fernando Peixoto, Eduardo Campos e Ana Paula Bressanelli. Agradeço também ao meu amigo jornalista Anderson Baltar, profundo conhecedor de samba e carnaval, que me ensinou muita coisa sobre as escolas de samba da pequena cidade catarinense de Joaçaba. Também considero ter sido importante minha estada na cidade gaúcha de Uruguaiana, na fronteira com a Argentina, para contribuir, como julgador, dos desfiles das agremiações carnavalescas locais. As comparações com as escolas cariocas e porto-alegrenses, que eu conheci em outra oportunidade, se mostraram de grande valia. Agradeço ao jornalista Cláudio Brito, pela oportunidade, e a Vinícius Brito e Gláucio Guterres pelas trocas de informações sobre a folia na capital e na fronteira oeste gaúcha. Agradeço também aos amigos do mundo do samba paulistano, cujas agremiações eu já conhecia desde o início da década, pelas preciosas informações e troca de idéias sobre o samba na maior metrópole da América do Sul: Rodrigo Prates, Sérgio Salvaia, Vitor Aroli, Fábio Parra e Emerson Braz. Não menos importante foi a contribuição de Marcelo Sudoh, que, com sua paixão carnavalesca e perspicácia intelectual, me ensinou muita coisa sobre as escolas de samba no Japão e o encontro de cultura que elas promovem. Por fim, 8

deixo meus agradecimentos também ao mestre e diretor de bateria Sinésio Farias, que compartilhou comigo informações importantes sobre os ritmistas de uma escola de samba. Todos aqui mencionados, sem exceção, bem como os que, por uma gafe que eu reconheço ser imperdoável, deixei de citar, foram fundamentais para que eu pudesse, agora, após quatro anos de estudos teóricos e pesquisas empíricas, compreender um pouco melhor a dança da identidade. 9

Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar Friedrich Nietzsche 10

Resumo Surgido nos morros e subúrbios do Rio de Janeiro, o samba carioca ascende à condição de elemento constitutivo de nossa identidade nacional, percorrendo o caminho de inúmeras outras práticas culturais ao redor do planeta, que, oriundas das camadas populares da sociedade, passaram a significar a unidade da nação, representando não mais uma determinada classe social ou grupo étnico, mas a comunidade imaginada que se pretendia agregar. Entretanto, no mundo globalizado de hoje, o aumento dos fluxos migratórios e das influências culturais promovem a chamada crise das identidades nacionais, ou da própria idéia de nação. Este trabalho mostra como o samba carioca, reconhecido pelo IPHAN como patrimônio cultural imaterial, ressignifica suas práticas e atualiza sua importância para a sociedade, sendo instrumentalizado e gerenciado como um recurso, conferindo privilégios aos grupos de sambistas em um cenário caracterizado pela diversidade. Palavras-chaves: identidade, tradição, globalização, cultura popular. 11

Abstract The samba of Rio de Janeiro appeared in the slums and suburbs of the former capital of Brazil. In the 1930s, took the condition symbol of national identity, representing the nation-state and forming what the historian Benedict Anderson calls "imagined community". However, in today's globalized world, the increase in immigration and cultural influences promotes the so called crisis of national identity". This study shows how the samba of Rio de Janeiro, recognized as intangible cultural heritage, renovates their meanings and maintains its importance to society. Managed as a resource, grants privileges for the samba performers in a reality characterized by diversity. Keywords: identity, tradition, globalization and popular culture 12

Résumé Le samba de Rio de Janeiro surgi dans les taudis et des banlieues de l'ancienne capitale du Brésil. Dans les années 1930, assume le statut de symbole de l'identité nationale, représentant l'etat-nation, formant ce que l'historien Benedict Anderson appelle la «communauté imaginée». Toutefois, dans le monde globalisé d'aujourd'hui, l'augmentation des flux migratoires et les influences culturelles forment ce que de nombreux spécialistes appellent la «crise de l'identité nationale». Cette étude montre comment le samba de Rio de Janeiro, reconnu comme patrimoine culturel immatériel, renouvelle son sens et conserve son importance pour la société. Géré comme une ressource, Confère des privilèges à des groupes d'artistes interprètes ou exécutants de samba Dans une situation caractérisée par la diversité. Mots-clés: Identité, Tradition, mondialisation et culture populaire. 13

Sumário Introdução...pg.15 1º PARTE - Ascensão e crise das práticas culturais do consenso Cap. 01 A ascensão do samba como elemento de identidade nacional 1.1 A cultura popular e os elementos nacionais...pg.44 1.2 As identidades nacionais...pg.54 1.3 O longo caminho para uma identidade nacional brasileira...pg.68 1.4 O samba como componente da identidade nacional brasileira...pg.93 Cap. 02 A crise das identidades nacionais 2.1 As identidades nacionais no mundo globalizado...pg.113 2.2 Globalização e resistência local...pg.126 2.3 A realidade brasileira e as diferenças culturais...pg.136 2.4 A redescoberta do povo...pg.147 2.5 - A valorização dos aspectos regionais...pg.163 2º PARTE - Os usos das práticas culturais no mundo globalizado Cap. 03 - A cultura instrumental 3.1 A cultura como instrumento e recurso...pg.189 3.2 Tradição e autenticidade...pg.201 3.3 As múltiplas vozes do carnaval carioca...pg.212 3.4 Oswaldo Cruz...pg.224 Cap.04 O samba como patrimônio 4.1- Patrimônio imaterial: a identidade cultural na tempestade...pg.246 4.2 -O reconhecimento em dois momentos históricos...pg.254 4.3 -O samba como patrimônio cultural imaterial...pg.264 Cap. 05 O samba como recurso 5.1 Lazer e trabalho na cidade do samba...pg.278 5.2 O samba cidadão...pg.299 Conclusão...pg.310 Bibliografia...pg.328 14

Introdução Lançado em 1942, como parte da política norte-americana de boa vizinhança, o desenho animado aquarela do Brasil, de Walt Disney, mostra alguns elementos que compõem o imaginário da maioria dos estrangeiros sobre o nosso país. Ao som da música homônima de Ary Barroso, um pincel desliza na tela e faz surgir uma densa floresta. O rio nasce da tinta e corre por entre os coqueiros exaltados pela canção. Flores, frutas e pássaros coloridos enfeitam o quadro exótico que está sendo pintado, ressaltando nossos vínculos com a natureza, condição sine qua non de todo colonizado, e ratificando antigos estereótipos que nos remetem ao longínquo período do descobrimento. O tema principal da produção, entretanto, é o encontro entre os personagens Pato Donald e Zé Carioca, representando a visita de um norte-americano ao Brasil, o caráter receptivo do povo brasileiro e, principalmente, simbolizando um encontro entre duas culturas diferentes, mas caracterizadas pela amizade, como a conjuntura política do período exigia ressaltar. Como se tivesse sido inspirada em uma etnografia antropológica, a produção explora, mesmo em tom jocoso, as diferenças culturais. Ao invés do frio aperto de mão, cumprimento anglo-saxão formal, Zé Carioca ignora a mão estendida do visitante e dá um caloroso e demorado abraço. Juntos, os personagens passeiam pelo calçadão de Copacabana, embora a rigidez apolínea de Pato Donald tenha certa dificuldade para acompanhar a sinuosidade do anfitrião, sentam em um bar para beber cachaça, que, evidentemente, queima a boca do norte-americano, e seguem para o Cassino da Urca, onde o alegre turista dança ao lado da famosa silhueta de Carmem Miranda. Todavia, o ponto alto deste encontro entre culturas é a musicalidade brasileira, expressa através do samba. Zé Carioca veste um terno bege e uma gravata borboleta, que lembra os antigos malandros sambistas, semelhança que também pode ser percebida pelo gingado que intercala seus passos. Como assessório, um chapéu panamá, também típico dos malandros, e um guarda-chuva que tem múltiplas funções. Natural do Rio de Janeiro, como o nome do personagem, o cenário e um cartão pessoal indicam, o anfitrião convida o visitante para conhecer a cidade e seu gênero musical característico. A dança do nativo encanta o famoso turista. Como num passe de mágica, o guarda-chuva vira uma flauta, que emite uma melodia agradável e envolvente. Nas mãos de Pato Donald, entretanto, o mesmo 15

guarda-chuva volta a ser apenas um guarda-chuva. As tentativas de extrair som se mostram inúteis, passando a mensagem de que apenas os brasileiros possuem a magia de transformar qualquer elemento em instrumento musical. Momentos depois, após ter experimentado cachaça, ou seja, ter tido um contato mais próximo com os elementos da brasilidade, o soluço ritmado do personagem norte-americano se transforma na marcação para o início de um novo samba, acompanhado, como nas melhores rodas em bares ou botequins, pelo toque da caixa de fósforos de Zé Carioca. O desenho Aquarela do Brasil é um exemplo do olhar estrangeiro para as representações culturais sobre o povo brasileiro. Um olhar que, longe de ser imutável, inevitavelmente está associado a um contexto histórico específico. Neste caso em particular, ao período em que os elementos urbanos, sobretudo os oriundos das classes populares do Rio de Janeiro, então capital federal, emergiam à condição de genuínos símbolos nacionais. O samba dava seus primeiros passos, caminhando para o reconhecimento na própria sociedade brasileira. O estereótipo do malandro, antes associado à marginalidade, passa a representar, com o personagem Zé Carioca, a própria imagem do povo brasileiro no exterior. Hoje, milhares de pessoas refazem, todos os anos, os passos do famoso personagem de Walt Disney. Chegam de avião ou transatlântico, ávidos por conhecerem as exóticas belezas naturais ou os estranhos hábitos e costumes de nosso povo. Seus corpos brancos, avermelhados pelo sol dos trópicos, também são excessivamente apolíneos para apreender o gingado do samba. Também não foram tocados pela magia brasileira, que transforma as mais simples situações quotidianas em notas musicais. Todas as quintasfeiras chegam em grupos à cidade do samba, mistura de parque temático e oficina de produção das escolas de samba, para assistir a um espetáculo chamado forças da natureza. Ficam encantados com a beleza das cores e, principalmente, com o requebrado das mulatas. Assim como Pato Donald no citado desenho animado, experimentam o som e os sabores do Brasil, sentindo na pele a criatividade e a musicalidade de nosso povo. O espetáculo forças da natureza também explora os estereótipos reconhecidos do Brasil no exterior. O samba, gênero musical típico do povo brasileiro, é mais uma vez protagonista deste encontro entre culturas. Pacientemente, os turistas conhecem a capacidade de uma bateria extrair sons, ouvindo apresentações solo de cada instrumento. 16

Atentos, observam e movimentam seus corpos no ritmo de sambas antigos, e, como o nome do espetáculo sugere, são apresentados aos elementos da natureza, especialmente em uma exaltação ao sol, outro traço marcante do país. Por fim, seguem em procissão no interior do espaço, como se estivessem em uma escola de samba em desfile, com alegorias e carro de som 1, simulando uma animada noite de carnaval. Apesar de promoverem o mesmo fascínio diante do exótico, as duas situações, entretanto, são bem diferentes, sobretudo por corresponderem a contextos históricos específicos. Em 1942, o samba era a referência para um encontro entre culturas diferentes porém amigas, ajudando a estreitar os laços da América Latina com os Estados Unidos, proposta da política de boa vizinhança no período da segunda grande guerra. Hoje, com o aumentou do fluxo de informações e pessoas, que amplia as possibilidades de contatos culturais, o samba é usado na arena turística para representar os elementos tipicamente brasileiros, constituindo um conjunto de estereótipos apropriados para aumentar os lucros de setores importantes da economia. São os impactos e conseqüências do que se convencionou chamar de globalização. Muitas vezes, a globalização é simplificada como o avanço de hábitos e costumes, quase sempre de origem norte-americana, rumo a uma suposta homogeneização ao redor do planeta. Vistos como se estivessem fadados ao desaparecimento, os aspectos locais, geralmente de origem popular e reivindicados como expressão de identidade regional ou nacional, seriam não apenas suplantados, como o próprio significado simbólico de suas práticas passaria por um esvaziamento que ameaçaria as próprias comunidades imaginárias para a qual forneceriam o reconhecimento coletivo. Um conjunto de novas práticas culturais adquire espaço, conquistando, sobretudo, os mais jovens, a partir da fusão dos elementos do exterior com a realidade local. As antigas identidades nacionais, construídas em outros contextos, têm suas estruturas abaladas e veem a hegemonia de outrora ameaçada. Diante das incertezas do mundo moderno, em suma, passam a ter sua própria existência em risco. Na realidade brasileira, as novas manifestações culturais que surgem deste processo passaram a rivalizar com o samba, disputando espaço no imaginário sobre o povo 1 Veículo dotado de potentes auto-falantes, usado pelos cantores das escolas de samba durante o desfile. Assemelha-se aos famosos trio-elétricos soteropolitanos, embora menores e menos potentes, em função do sambódromo possuir um sistema de som em toda a extensão da avenida. 17

e a nação. É verdade que, mesmo nas décadas de 1930 e 1940, é errôneo pensar no samba como uma prática cultural homogênea. A ascensão do samba como elemento constitutivo da identidade cultural do povo brasileiro e, de certa forma, sua relativa hegemonia no campo das representações, é resultado de um conjunto de fatores e culmina, na década de 1930, no populismo que se alastra na política nacional e latino-americana de uma forma mais abrangente. Stuart Hall já chamou a atenção para os perigos que podem surgir ao pensarmos as formas culturais como algo inteiro e coerente, isto, inteiramente corrompidas ou inteiramente autênticas, enquanto que elas são profundamente contraditórias, especialmente quando funcionam no domínio popular (HALL, 2006, p. 239). Outrossim, a globalização parece desorganizar a rigidez das antigas identidades. Ela varre as certezas e instaura um período de dúvidas e contestações, promovendo a chamada crise das identidades nacionais e, de certa forma, da própria idéia de nação. Nesta realidade em constante transformação, o samba permanece vivo no imaginário popular e nas representações sobre a nação, como o interesse dos turistas pelo espetáculo da cidade do samba demonstra. Diante deste quadro, acreditamos ser pertinente fazer a seguinte indagação: como as práticas culturais transformadas em símbolos nacionais, quase sempre de origens populares, conseguem sobreviver na diversidade do mundo atual, bombardeada pela indústria cultural e pelas influências recíprocas da globalização? De fato, apesar de alimentarem o discurso constante de desaparecimento de certos valores tidos como tradicionais, a diversidade e as novas influências, de forma aparentemente paradoxal, justificam os discursos de preservação e revitalização, ajudando a promover o fortalecimento de suas práticas. São práticas culturais de consenso, para usarmos uma denominação de George Yúdice (2006), que no contexto atual perdem a hegemonia que, pelo menos no campo das representações, tiveram no passado, mas mantêm status, prestígio e fiéis seguidores na sociedade. Vale a pena destacar que, ao denominá-las de práticas culturais do consenso, Yúdice não está concebendo-as como algo alienante ou acreditando que são sempre cooptáveis enquanto elementos de ligação, ou domesticação, acrescentamos, que favoreçam as elites. Para o autor, esta definição tem como referência o fato de que, desde a década de 1930, práticas culturais como o samba, pagode, capoeira, candomblé e umbanda, que se consolidariam ao longo dos anos como elementos fundamentais para a identidade 18

cultural do povo brasileiro, sobretudo das classes populares, virem sendo mobilizadas por setores importantes da mídia, negócios, turismo, política e outros fatores de mediação para a reprodução simbólica de um Brasil cordial, que resulta no abocanhamento de benefícios materiais por parte da elite (YÚDICE, 2006, p. 161). Todavia, no seio das próprias classes populares cariocas, que deram origem às práticas que se pretendiam homogêneas, as diferenças culturais minam não apenas o antigo imaginário nacional, mas a própria transmissão do saber, normalmente passado de geração para geração. É importante frisar também que, quando afirmamos que o samba adquiriu certa hegemonia no campo das representações, ascendendo, no imaginário nacional, à condição de símbolo de identidade nacional, acima das demais práticas locais ou regionais, estamos dialogando com a tese de Hermano Vianna (1995), que transforma esta questão em seu mistério do samba. Chamamos a atenção também para a questão da hegemonia, de forma mais específica, no campo das representações porque, como Said ressalta em relação ao discurso e ao intercâmbio cultural dentro de uma cultura, aquilo que comumente circula não é a verdade, mas uma representação desta. Em sua análise, para a visão ocidental sobre o oriente fazer sentido, dependeria mais do ocidente que do próprio oriente, e este sentido estaria relacionado com as várias técnicas de representação que tornaram o oriente visível nos discursos a seu respeito. Para obter seus efeitos, estas representações se baseiam em instituições, tradições, convenções, códigos consensuais de compreensão, e não em um amorfo oriente (SAID, 2007, p. 52). Assim, no caso brasileiro, o estereótipo do samba como comportamento típico de uma identidade cultural brasileira se intensifica no exterior, nas imagens idealizadas e vendidas para os turistas, por exemplo, embora a realidade empírica demonstre a existência de outros ritmos e gêneros musicais mais populares e atrativos, sobretudo para as novas gerações, assim como a inegável diversidade regional do país. A constituição destas representações será discutida no momento oportuno. O suposto risco de desaparecimento, de fato, estimula a instituição dos patrimônios culturais imateriais, ou seja, um reconhecimento oficial de sua importância cultural que estabelece salvaguardas capazes de contribuir para sua preservação. Mais uma vez, o contexto da globalização, com o conseqüente aumento dos fluxos de informação e pessoas, oferece o cenário que apavora os fiéis defensores das tradições herdadas dos ancestrais. Em outras palavras, o risco de desaparecimento pode ser associado ao que José 19

Reginaldo Santos Gonçalves denominou de retórica da perda, isto é, uma prática discursiva que recria a distância e a ausência nas narrativas nacionais, que coexistiria com o esforço de preservação (GONÇALVES, 1996, p. 23). Isso nos leva a uma segunda indagação: Qual o papel destas práticas culturais consensuais, elevadas à condição de patrimônios imaterial, na realidade de hoje, caracterizada pela diversidade e diferenças culturais? Ressaltamos aqui a distinção entre diversidade cultural e diferença cultural, seguindo os passos de Bhabha. A diversidade cultural seria um objeto epistemológico, ou seja, a cultura como objeto empírico, a representação de uma retórica radical da separação de culturas totalizadas que existem intocadas pela intertextualidade de seus lugares históricos, protegidas na utopia de uma memória mítica de uma identidade coletiva única. Por sua vez, a "diferença cultural é o processo de enunciação da cultura como conhecível, legítimo, adequado à construção de sistemas de identificação cultural. É um processo de significação através da qual afirmações da cultura ou sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade. A diferença cultural concentra-se no problema da ambivalência da autoridade: a tentativa de dominar em nome de uma supremacia cultural que é ela mesma produzida apenas no momento da diferenciação. O processo enunciativo da diferença, novamente acompanhando Bhabha, introduz uma ruptura no presente performativo da identificação cultural, uma quebra entre a exigência culturalista tradicional de um modelo, uma tradição, uma comunidade, um sistema instável de referência, e a negação necessária da certeza na articulação de novas exigências, significados e estratégias culturais no presente político como prática de dominação e resistência (BHABHA, 2007, p. 63 e 64). Por fim, neste processo de revitalização das antigas práticas culturais do consenso, vale a pena também indagarmos, dialogando com as várias teorias elaboradas pela antropologia e pelas ciências sociais de uma forma geral, como estes discursos que remetem ao passado e a uma suposta origem, associados à tradição, se mantêm atual, a despeito de seu conteúdo saudosista e romântico. Qual o papel que a tradição possui hoje, num mundo em constante transformação e caracterizado pela lógica mercantil que valoriza a novidade? 20

Em nossa visão, as práticas culturais elevadas à condição de símbolos nacionais em um contexto histórico específico, entre as quais o samba carioca é um bom exemplo, passariam por uma ressignificação de seus conteúdos simbólicos. A globalização, ao intensificar os fluxos culturais, impõe novos desafios para sociedades um dia vistas como culturalmente homogêneas. Na prática, o bombardeio de informações potencializa a enunciação das diferenças culturais, transformando os papéis que a cultura possui para o corpo social. Ela se torna um campo de lutas e reivindicações para o reconhecimento de importantes setores sociais antes discriminados, ou, no sentido inverso, de atores sociais que almejam manter o status e o prestígio diferenciado de outrora, agora ameaçados. A antiga homogeneidade cultural, na verdade, trata-se mais da representação de uma cultura homogênea do que, de fato, uma realidade que exclui a diferença. Em outras palavras, as antigas práticas culturais do consenso mantinham a hegemonia no campo das representações por uma série de motivos que veremos adiante, como, por exemplo, permitir a leitura dos mitos que compõe o imaginário de formação do povo e da nação. Assim, a cultura é apropriada e usada pelos atores sociais na luta pelo reconhecimento, de acordo com o contexto das interações sociais e dos interesses em jogo, mesmo no fragmentado contexto urbano do início do século XXI. Utilizamos como referência inicial a obra de George Yúdice, que explora os usos da cultura no contexto atual, sobretudo como um recurso. Segundo o autor, a cultura como recurso desviaria a atenção da premissa gramsciana segundo a qual a cultura é um terreno de luta para a adoção de uma estratégia orientada pelos processos de gestão. Esta forma de uso da cultura, compatível com as reconversões neoliberais da sociedade civil, é considerada uma maneira de prover assistência social e qualidade de vida dentro do contexto de uma redução progressiva dos recursos públicos e da retirada do Estado como garantia de uma vida digna (YÚDICE, 2006, p. 373). Na incorporação da cultura como recurso, as antigas práticas culturais do consenso gozam de uma situação privilegiada. A velha hegemonia no campo das representações é convertida em legitimidade, alimentando o prestígio e, conseqüentemente, ampliando a possibilidade de investimentos privados. No caso específico do samba, as agremiações carnavalescas, legítimas representantes de uma localidade no imaginário popular, se tornam um importante veículo para a promoção da cidadania, obtendo, graças à 21