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Performa 09 Encontros de Investigação em Performance Universidade de Aveiro, Maio de 2009 À solta, num bilhete de ida e volta A Música Popular Brasileira na obra de músicos portugueses: o caso de Sérgio Godinho Pedro Almeida, Universidade de Aveiro / INET-MD pedro.almeida@ua.pt Objectivos Esta comunicação pretende ilustrar, a partir do exemplo do cantautor português Sérgio Godinho, o modo como a Música Popular Brasileira tem sido incorporada no trabalho criativo de músicos portugueses. Num quadro de relação entre dois países que partilham uma história comum e, por consequência, uma mesma relação pós-colonial, este trabalho procura também demonstrar como o desenrolar dos fluxos musicais entre Portugal e o Brasil revela outros processos de vai-e-vem no quadro da música e que de algum modo permitem compreender outras realidades que a poscolonialidade de ambos os países em foco produziu. Finalmente, interroga os próprios conceitos de música portuguesa e de música popular brasileira sugerindo uma reflexão sobre a localização da música enquanto factor decisivo para a localização e a definição da cultura (Bhabha 1998). Contexto A Música Popular Brasileira (MPB) tem constituído, através de diferentes meios de comunicação, uma presença assídua em Portugal nas últimas décadas, especialmente a partir da Revolução dos Cravos (1974) e da exibição da primeira de muitas telenovelas brasileiras de grande sucesso em Portugal (Gabriela, exibida em 1977). Com efeito, a MPB tem encontrado em Portugal um receptor privilegiado e a sua influência tem sido evidente no trabalho de músicos portugueses associados a diversas áreas musicais e correntes estéticas. O conceito de Música Popular Brasileira tem sido, contudo, objecto de diferentes acepções. Apesar de não ter ainda reunido consenso, é utilizado muito frequentemente por músicos, ouvintes de música, críticos e repórteres, entre outros, o que torna particularmente pertinente um tratamento clarificador da sua operacionalidade científica. De facto, tanto a designação por extenso como a sigla MPB, em uso corrente desde os anos sessenta do século XX, têm sofrido actualizações ao nível do seu significado, numa progressiva redefinição de algum modo paralela ao próprio percurso do gosto, da indústria, do perfil dos mass media e da prática criativa musical do Brasil. Há no entanto pressupostos que são transversais às transformações do significado desta expressão: nela está contemplada fundamentalmente música de raiz urbana (embora eventualmente inspirada em princípios da música de raíz rural); a música em questão é marcada pela presença dos meios de comunicação de massa enquanto processo preferencial de divulgação; o conceito exclui a música habitualmente rotulada de erudita (rótulo correspondente aos ingleses art music ou classical music), embora seja muito difícil encontrar linhas divisórias claras entre estes universos, conforme demonstra Richard Middleton (1990). Em grande parte dos casos, notoriamente na fase inicial da sua categorização, a MPB era protagonizada por músicos que personificavam a figura do

cantautor, i.e., um cantor que assina a autoria das letras e músicas que interpreta, ou de apenas uma dessas duas componentes, à semelhança do singer-songwriter inglês ou do cantautore italiano (Sardo: no prelo). Em Portugal, um conjunto de realidades e contextos propiciou, na década de 1960, o arranque de uma importante revolução no cenário musical português, que teve a sua gestação associada a José Afonso, entre outros. O seu exemplo inspirou outros músicos que, tal como ele, se tornariam cantautores à procura de novas abordagens musicais e poéticas para a música portuguesa. De entre os cantautores portugueses, Sérgio Godinho, no activo desde a década de 1970, é um caso particularmente interessante, já que muitas das suas canções têm revelado marcas do Brasil a vários níveis. Sérgio Godinho, nascido em 1945 e exilado por razões ideológicas entre 1965 e 1974, teve oportunidade de visitar o Brasil diversas vezes e até compôs alguma da sua música nesse país. No entanto, refere que, ainda antes dessas ocasiões, o seu contacto com a MPB, especialmente com a bossa nova, foi marcante na formação do seu estilo pessoal, a nível de estilo vocal, harmónico e literário (Galopim 2006: 27). Em termos de estilo vocal, Godinho refere como fulcral a contribuição de João Gilberto, a quem se assemelhou na adopção constante de um modo de vocalização naturalista. A semelhança é reconhecida por Arnaldo Saraiva em 1983 (Godinho e Saraiva 1977/1983: 25). Ainda no que toca à bossa nova, a música de Jobim foi referência fundamental por ter apresentado novas soluções harmónicas ao músico português (idem: 27). De facto, são detectáveis pontos de contacto entre processos harmónicos e até, nalguns casos, melódicos dos dois compositores. É o caso da canção Espectáculo, em que por alguns compassos Godinho repete uma sucessão harmónica em muito semelhante à que se pode encontrar numa passagem da canção Estrada do Sol de Jobim. Entre outros aspectos relacionáveis com a música do maestro soberano, contam-se a utilização de acordes paralelos (que figuram tanto em Águas de Março como em Espalhem a Notícia), de processos sequenciais (presentes em inúmeras composições brasileiras, de Jobim e não só, e espelhados por exemplo em Farto de Voar) ou de construções apoiadas em cromatismos descendentes, nomeadamente em direcção ao quinto grau da escala. Esse recurso, típico do compositor brasileiro é reconhecível, entre muitos outros contextos, numa linha instrumental do refrão de Água de Beber. Sintomaticamente, encontra-se no início da melodia de Paula, de Godinho (por sinal apoiado no mesmo encadeamento harmónico base) ou nos primeiros compassos da melodia da já referida Espalhem a Notícia. A nível de recursos literários, embora Jacques Brel tenha sido uma inspiração importante, Sérgio Godinho refere reiteradamente a afinidade que sente para com Chico Buarque e a importância que este teve na sua aprendizagem daquilo a que chama a carpintaria da letra de uma canção (idem:p.33). Arnaldo Saraiva, no seu estudo crítico (Godinho e Saraiva 1977/1983), denota que Sérgio tira partido humorístico de inúmeras frases feitas, idiotismos, provérbios, coloquialismos que desloca e actualiza ou modifica sabiamente (p.33), o que se reflecte na letra da canção Os Demónios de Alcácer-Quibir. Por outro lado, nas canções de Sérgio Godinho, como aponta Susana Sardo (no prelo), os jogos de palavras e de fonética são também abundantes. Estas características, reconhecíveis em Sérgio Godinho, estão patentes nas criações de Chico Buarque, como ilustram Pedro Pedreiro (com jogos fonéticos análogos aos que Sérgio utiliza por exemplo com as palavras excesso e ex-sexo em O Elixir da Eterna Juventude), Construção, Bom Conselho (em que é Chico quem tira partido de provérbios e frases feitas, como Sérgio faz em inúmeras canções ou no título do álbum De Pequenino se Torce o Destino). Godinho considera que a canção O Galo É o Dono dos Ovos, editado em disco em 1978, é uma das que tem muita carpintaria (i.e., é muito trabalhada do ponto de vista da letra), revelando que procurou ser conciso ao nível das metáforas (Galopim 2006:77). A canção, com a sua sugestão alegórica, lembra A Galinha, de Enriquez e Bardotti com tradução e adaptação de Chico Buarque para a peça Os Saltimbancos (cuja versão discográfica foi editada em 1977). Muitos outros exemplos destes recursos poderiam ser aqui referidos, quer a propósito da obra de Chico Buarque, quer a propósito da de Sérgio Godinho. Também a nível melódico e rítmico há nas canções de Godinho similitudes detectáveis com alguns traços típicos da MPB. A canção Cuidado com as Imitações é um interessante caso. Exibe movimentados percursos melódicos apoiados em harpejos de acordes de nona, tão tipicamente presentes no choro, por exemplo. A nível rítmico e, no fim de contas, formal

a articulação do verso e dizia ele com os seus botões, antes da entrada do refrão, num jeito declamado e durante uma pausa geral dos instrumentos, é perfeitamente associável ao chamado samba de breque, em que, analogamente, o cantor faz comentários falados em pausas do colectivo instrumental. A característica acentuação do contratempo em alguns versos da ponte (como em ficava de olho aberto / via as coisas de perto ), é analisável também como descendente de uma divisão irregular de 3-3-2, muito comum em alguns géneros da MPB, designadamente nordestinos. Um outro caso interessante é a canção O Labirinto, cuja melodia apresenta uma célula rítmica sincopada de semicolcheia-colcheiasemicolcheia. Tal célula é elemento estrutural muito presente e importante na Música Popular Brasileira, sendo sobejamente conhecida como brasileirinho, conforme atesta Walter Garcia (1999). A marca da MPB faz-se sentir também a nível dos arranjos. Arranjadores como Luís Caldeira e João Paulo, detentores de formação musical académica e versados no jazz, conferiram aos arranjos das canções refinamento e subtileza a nível de combinações instrumentais, texturas, construções melódicas e colorido harmónico, traços frequentes em arranjos da MPB, nomeadamente de Francis Hime. Hélder Gonçalves, outro arranjador que figura em discos de Sérgio Godinho, tem entre as suas referências o disco Tropicália 2, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, o que se reflecte nos arranjos que assina, impregnados de fortes contrastes tímbricos, estilísticos e texturais de algum modo identificáveis com as inovações tropicalistas. Talvez o exemplo mais imediatamente evidente da presença da MPB na obra de Sérgio Godinho seja o álbum Coincidências, editado em 1983. O disco contém canções feitas em parceria com músicos brasileiros de renome, designadamente Chico Buarque, João Bosco, Milton Nascimento, Ivan Lins e Novelli. Mais recentemente evidenciaram-se novas parcerias com o Brasil no disco O Irmão do Meio, de 2003, desta vez apenas a nível de interpretação. Entre os músicos convidados destaca-se Caetano Veloso, com quem já tinha tentado uma parceria aquando de Coincidências, e que contribuiu para revitalizar a canção Lisboa que Amanhece e tornar o disco um grande sucesso comercial. Metodologia Considerando que a investigação sobre o tema ainda não deu origem a uma bibliografia de dimensões significativas e que os fenómenos principais a abordar se situam num passado próximo, assumiu significativa pertinência para este trabalho o recurso a registos extrabibliográficos. Assim: A par da leitura de obras dedicadas aos estudos em música popular (popular music), foi efectuada pesquisa bibliográfica no sentido de clarificar contextos sociais, políticos, culturais e musicais em que a música a estudar se inscreve. Recorreu-se a obras relacionadas com a canção e os cantautores em Portugal e no Brasil, bem como a fontes que contivessem elementos biográficos acerca de personagens relevantes para o tema ou dados históricos relevantes; Tendo em conta a publicidade a que a música abordada neste trabalho tem sido sujeita, foi feita também pesquisa em páginas da Internet e blogues diversos que possibilitassem não só o acesso a informação útil acerca das questões enunciadas no ponto anterior, mas também a notícias, novidades editoriais ou registos sonoros e videográficos pertinentes; De canções da Música Popular Brasileira, foram recolhidas gravações diversas e partituras. Procedeu-se à respectiva análise musical, no sentido de ajudar a melhor entender processos musicais comuns no universo da MPB; Foi levada a cabo o recenseamento de registos sonoros de canções de Sérgio Godinho, dos quais alguns foram parcialmente transcritos e sujeitos a análise musical.

Conclusões Na sua reflexão sobre música e identidade, Simon Frith (1996) advoga que a música é a forma cultural mais bem apetrechada para cruzar todos os limites, sejam eles geográficos, espaciais, temporais, geracionais ou sociais, e para definir lugares. Esta característica absolutamente fluida da música que lhe permite múltiplas adopções, se por um lado a transforma num dos comportamentos expressivos por natureza mais democráticos traz também outros problemas de análise porque a define como um território humano sem lugar. A transferência entre a música dita e a música escrita, ou seja, entre a dimensão performativa e a dimensão arquivística (partitura ou suporte áudio gravado), nada mais faz do que construir itinerários de pertença individual, atribuindo ao compositor ou ao intérprete o poder autoral sobre ela. Mas o modo como ela se construiu e os princípios que estiveram na base da escolha dos materiais musicais por parte de quem a compôs ou a interpretou, é revelador de uma multiplicidade de processos que inevitavelmente corroboram a possibilidade de sistematicamente tomar de empréstimo sons, ou características estilísticas dos outros, adoptando-os e, por conseguinte, transformando-os em sons nossos. E é justamente essa característica intrínseca de mobilidade que define a música como um dos instrumentos mais poderosos no processo de construção identitária, de (in)definição de lugares, de reivindicação ou luta política e ideológica, e, finalmente, lhe ofereceu um protagonismo assinalável nos processos de colonização levados a cabo, por exemplo, pelos portugueses durante os séculos XV, XVI e XVII. Não quero advogar aqui a proposta do luso-tropicalismo proposta por Gilberto Freyre e tão bem desmontada por Mário de Andrade e seus seguidores. Mas é certo que o ambiente musical que o Brasil hoje expõe, em especial no universo da MPB, se inscreve num quadro dos trânsitos coloniais e define, por si só, o resultado de uma expressão pós-colonial. Firmada sobre a base da música tonal ocidental, fazendo recurso de instrumentos estilísticos claramente herdados de uma relação colonial com a Europa, a MPB constitui também o exemplo acabado de um tipo de expressão híbrida, desenhada a partir da substituição de práticas musicais existentes e reveladora de uma capacidade de reinvenção invulgar que a transforma, também, numa expressão e numa música de resistência. Esta ambivalência, tão bem expressa por Homi Bhabha e por Appadurai sobre o modo como as culturas incorporam e reinventam aquilo que lhes é imposto politicamente, gerando produtos que são, simultaneamente próximos e distantes da cultura hegemónica, mas suficientemente cúmplices para guardarem ingredientes identitários centrais, confere à MPB um papel fulcral enquanto marcador de distinção e, por conseguinte, de brasilidade, no quadro da identidade musical brasileira. A proximidade que inevitavelmente se gerou entre o Brasil e Portugal quer pelas relações históricas que o colonialismo definiu ao exportar, por exemplo, a língua portuguesa, quer pela partilha, já no século XX, de ideários semelhantes perante situações políticas idênticas marcadas pelos regimes ditatoriais dos dois países que adoptaram até a mesma designação de Estado Novo, quer, ainda, pelos fluxos de emigração e diáspora que se desenharam em permanência entre os dois territórios, ofereceu à música um papel singular em todo o processo que não cabe aqui desmontar. Mas torna-se claro, após o trabalho de reflexão que entretanto desenvolvi sobre um músico português em particular, neste caso o cantautor Sérgio Godinho, que se no passado a música portuguesa se implantou no Brasil como instrumento de colonização é também certo que essa transferência produziu resultados expressivos que hoje ultrapassam os impasses ideológicos dessa relação a todos os níveis censurável e devolveram à história outros itinerários que se definem agora pela inversão dos sentidos da viagem. A MPB, pela proximidade que revela com a definição de um ambiente de música popular urbana portuguesa mas, e sobretudo, pela proximidade ideológica que entretanto se gerou entre um segmento de músicos portugueses e brasileiros, tem constituído um dos mais importantes repositórios de inspiração para os músicos portugueses que nela se revêem quer pela adopção de muitos dos seus ingredientes estilísticos quer pela partilha, com os próprios músicos brasileiros, de autorias, de performances e de manifestos. A marca da MPB em Sérgio Godinho atravessa a sua formação e estende-se a toda a sua carreira,

podendo manifestar-se em múltiplos aspectos do seu trabalho e da sua personalidade. E é, claramente, um dos exemplos mais acabados de como a música nos permite interrogar a definição de lugar e, também, a própria teoria que entretanto se produziu sobre a colonialidade do planeta. Bibliografia Bhabha, Homi K. The Location of Culture. London: Routledge, 1995. Castro, Ruy (1990/2001), Chega de Saudade a História e as Histórias da Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras. Correia, Mário (1984) Música Popular Portuguesa Um Ponto de Partida. Coimbra: Centelha MC / Mundo da Canção. Freyre, Gilberto. (1940) O Mundo que o Português Criou. Rio de Janeiro: José Olympio. (1963). Novo Mundo nos Trópicos. Lisboa: Livros do Brasil. Frith, Simon (1996) "Music and identity", in Stuart Hall and Paul du Gay (eds) (1996) Questions of Cultural Identity. London: Sage Publications. (19-36) (2002) Performing Rites: Evaluating Popular Music. Oxford: Oxford University Press. Galopim, Nuno (2006) Retrovisor uma Biografia Musical de Sérgio Godinho. Lisboa: Assírio e Alvim. Godinho, Sérgio e Saraiva, Arnaldo (1977/1983), Canções de Sérgio Godinho. Lisboa: Assírio e Alvim. Garcia, Walter (1999), Bim Bom a Contradição sem Conflitos de João Gilberto. São Paulo: Paz e Terra. Macedo, Jorge Borges de (1989) O Luso-Tropicalismo de Gilberto Freire Metodologia, Prática e Resultados. In Revista ICALP, vol. 15, Março de 1989, 131-156. Middleton (1990/2002), Studying Popular Music, Philadelphia: Open University Press. Shepherd, John (ed) (2003), Continuum Encyclopedia of Popular Music of the World. London: Continuum. Ulhôa, Martha Tupinambá de (2000). Pertinência e música popular Em busca de categorias para análise da música brasileira popular In Actas del III Congreso Latinoamericano de la Asociación Internacional para el Estudio de la Música Popular. Acedido em 15 de Dezembro de 2008, em: http://www.hist.puc.cl/historia/iaspm/filiacion2.html#ulhoa Wernek, Humberto (1995), Chico Buarque Letra e Música, São Paulo: Companhia das Letras.