CARTA ARGUMENTATIVA PROPOSTA DE LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTOS. Ronaldo Martins (http://www.ronaldomartins.pro.br)



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Transcrição:

CARTA ARGUMENTATIVA Há algum tempo, o professor Rubem Alves fez publicar, na Folha de S. Paulo e em outros jornais, duas cartas, uma endereçada ao empresário Roberto Marinho (texto complementar 1), e outra para o Ministro da Educação, Paulo Renato de Souza (texto complementar 2). Embora nenhuma das duas cartas tenha obtido resposta dos destinatários, elas foram largamente comentadas por inúmeros leitores que escreveram para o jornal, saudando as palavras e as intenções do professor (texto complementar 3). Imagine que, assim como esses outros leitores, você também tenha ficado comovido com as palavras de Rubem Alves e que tenha decidido escrever-lhe uma carta apoiando-o. No entanto, você tem alguns problemas. O primeiro, evidentemente, é o tempo. As cartas foram publicadas há mais de quatro anos, e você não tem certeza de que Rubem Alves se lembrará de tê-las escrito, ou do que nelas disse. O segundo problema diz respeito à atualidade do assunto. Será que valerá ainda a pena escrever a Rubem Alves sobre essas cartas? Será que as questões por ele levantadas são efetivamente pertinentes? Por fim, você sabe que Rubem Alves deve ter recebido milhares de manifestações de apoio, exatamente como aquelas publicadas no Painel do Leitor, e que se a sua carta se resumir aos elogios ou à reafirmação do óbvio, será apenas mais uma entre as inúmeras manifestações de solidariedade recebidas pelo autor. Você não quer isso. Você quer escrever uma carta de apoio mas quer igualmente ser notado, quer que sua carta seja efetivamente lida, que provoque reações no autor, que faça com que autor lhe responda. Para isso, comentários elogiosos, como os apresentados no texto complementar 3, não bastam. É preciso que você se valha de algo mais, que você reforce a argumentação do autor trazendo novos elementos para discussão, elementos que reafirmem a posição e as idéias de Rubem Alves. Esta atividade de produção é essa carta. Leia atentamente os textos, os comentários tecidos, e redija uma carta que procure convencer Rubem Alves de que ele está certo. Faça-o com novos argumentos, diferentes daqueles apresentados pelo próprio autor. E lembre-se: trata-se de uma carta, e as cartas devem conter cabeçalho, vocativo, saudações, despedidas, e contínua interlocução com o destinatário.

Caro senhor Roberto Marinho RUBEM ALVES Folha de São Paulo, 11 de março de 1998. Faz algum tempo eu lhe escrevi. O senhor não respondeu. Eu compreendo o seu silêncio. Bachelard declara que, se desejamos convencer, é necessário reabrir as avenidas dos sonhos. Tentei fazê-lo sonhar com uma imagem que mora nos meus sonhos: a dos ipês que, pensando que a morte está próxima, desandam a florescer para, assim, ejacular suas sementes pelos campos. Ipês: metáforas para aqueles que já não são jovens, eu e o senhor. Queria que o senhor se sonhasse como ipê florido, ejaculando sementes por este Brasil afora. O seu silêncio diz que o senhor não gostou da imagem. Ninguém gosta de ser lembrado de que a hora crepuscular já chegou. Mas eu não desisto. Volto ao assunto só que, agora, em vez de usar uma imagem crepuscular, usarei uma metáfora de meio-dia. O senhor é um homem que ama a beleza. Acho que foi para isso que o senhor criou a fundação que leva o seu nome: para restaurar, preservar e celebrar a beleza. A beleza é uma experiência intrigante: ela vem sempre misturada com uma pitada de tristeza. Vinicius de Moraes se referia à sua "vontade de chorar diante da beleza''. E Adélia Prado mostrou que "o que é bonito enche os olhos de lágrimas''. Sinto essa mistura de alegria e tristeza quando ouço Bach e Beethoven, quando vejo Van Gogh e Salvador Dalí. Foi o filósofo Ernst Bloch quem me deu a explicação mais satisfatória para esse fato. Ele disse que as obras de arte "são uma estrela que antecipa e um canto de alento sobre o caminho que conduz o homem através das trevas''. Nelas mora o "princípio da esperança''. Elas contêm uma "antecipação da morada final do homem, a pátria tanto do humanismo acabado quanto do naturalismo acabado''. As artes, assim, contêm um elemento de visão utópica. A beleza anuncia uma possibilidade de felicidade que se abre diante dos homens. Referindo-se à "Bíblia de Chagall'', Bachelard comenta: "O universo os desenhos de Chagall o provam tem, para além de todas as misérias, um destino de felicidade. O homem deve reencontrar o Paraíso''. A arte está cheia de alegria. Mas, ao assim lançar sua luz alegre sobre o mundo, torna visíveis todos os seus sofrimentos. A arte está cheia de tristeza. Se a arte é, nas palavras de Bloch, "uma antecipação da morada final do homem'' o Paraíso, conclui-se que a intenção da beleza é a transformação do mundo. Cada obra de arte é uma oração pela volta do Paraíso. Beethoven teria alegremente trocado a beleza da "Nona Sinfonia" pela beleza de um universo embriagado pela alegria. Vi faz uns dias, na televisão, um anúncio que já vira muitas vezes. Campos verdes se perdendo no horizonte, riachos de água cristalina, bosques, cavalos selvagens livres, em galope. A imagem era cheia de beleza. Utópica. Impossível não desejar estar lá. Era o anúncio do Marlboro. Logo depois, por alguns segundos na tela, o aviso: "O Ministério da Saúde adverte: fumar pode causar câncer''. Dos dois, qual é o verdadeiro? É a advertência do Ministério da Saúde. Trata-se de verdade comprovada cientificamente. Já o anúncio seduz pela beleza, mas mente ao sugerir que o cigarro é o caminho para a beleza desejada. Não conheço nenhuma pessoa que tenha sido convencida pela verdade da ciência. Conheço muitas, entretanto, que foram mortalmente seduzidas pela beleza da imagem. A verdade fica guardada na cabeça. Mas a beleza faz amor com o corpo. O senhor a televisão sabe disso: as pessoas não são movidas pela verdade, são movidas pela beleza. Imagino que o senhor alegremente trocaria toda a arte e toda a beleza que a Fundação Roberto Marinho tem restaurado, preservado e celebrado pela alegria de uma beleza encarnada num povo e num país. Toda a beleza do mundo anuncia o Paraíso. Conclui-se que o Paraíso é bem superior a toda a beleza da arte porque o Paraíso é a arte tornada vida, ou, como Hegel diria, "a objetivação do espírito''. A tarefa de tornar belos um povo e um país, assim, é superior à tarefa (maravilhosa) de restauração, preservação e celebração da beleza. E é esse o desafio que lhe lanço: o de ser mais que um simples mecenas, protetor das artes. O senhor pode ser um artista que arranca da pedra bruta um povo e um país. Dirijo-me ao senhor porque o senhor é, no Brasil, a pessoa que tem mais poder para fazer isso; é a pessoa que domina a imagem e que sabe usar sua magia. O anúncio do Marlboro me contou. A ciência, coitadinha, tão certinha, tão cheia de pesquisas e de verdades, sabe como levar o homem à Lua, mas não sabe como fazê-lo amar. A advertência do ministério, pelo que sei, até hoje não levou ninguém a amar a própria vida. Não há verdade científica que faça o homem sonhar com o Paraíso. Mas o senhor é um bruxo: sabe como fazer os homens sonhar. É dono de uma fantástica máquina de fazer sonhar; tem mais poder para mexer com as pessoas do que tudo o que, no Brasil, se faz sob o nome de "escola''.

O senhor não se assusta com esse poder que lhe foi dado? "A quem muito se deu, muito se lhe pedirá'', diz o Evangelho. Se o senhor quisesse, poderia fazer com que milhares sonhassem com o Paraíso e se pusessem a trabalhar para a sua construção. O senhor tem nas suas mãos o poder para plantar as sementes de um novo país. O senhor sabe: a receita está no anúncio do Marlboro. A beleza pode seduzir o povo, fazê-lo amar a natureza, preservar a saúde, alegrar-se com as artes, cuidar das crianças, viver de forma civilizada, respeitar a vida... Se o senhor fizer isso, quem sabe, num futuro possível, alguém venha a dizer do que o senhor fez o mesmo que Bachelard disse da obra de Chagall: "O universo tem um destino de felicidade. O homem deve reencontrar o Paraíso''. Rubem Alves, 64, educador, escritor e psicanalista, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Caro senhor ministro da Educação RUBEM ALVES Folha de São Paulo, 27 de maio de 1998. Acho, Paulo Renato, que você ocupa a posição política mais importante do Brasil mais que a da Presidência. Sobre o presidente paira uma maldição terrível, descrita por Maquiavel em "O Príncipe": a maldição do poder. O poder é um demônio que não dá descanso, não havendo exorcismo que o resolva. Totalitário, ele se apossa do corpo e da alma; exige lealdade total e não deixa sobrar tempo para mais nada. Tal qual são Jorge, o presidente passa os dias e as noites lutando com um dragão que ressuscita a cada manhã, não lhe sobrando tempo para dedicar-se às coisas que são essenciais. O essencial na vida de um país é a educação. Se não me falha a memória, você estudou em colégio de padres e vai entender o que digo. No Evangelho de João, está escrito que "no princípio era o Verbo". "Princípio", em grego, é palavra filosófica, que não significa só começo no tempo, mas fundamento aquilo que é a base do que existe. Acho que o autor sagrado não ficaria bravo comigo se eu fizesse uma tradução livre do seu texto para os tempos modernos: "No princípio é a educação". A educação, em essência, é precisamente isso: o exercício do Verbo. Pensa-se que a tarefa de um político é administrar o país: pôr a casa em ordem, construir coisas novas, consertar as velhas; cuidar de finanças, saúde, segurança, Justiça e meios de comunicação; administrar os meios de escolarização existentes, coisa sob a responsabilidade do Ministério da Educação. Discordo. Há uma diferença qualitativa entre o que fazem os ministérios administrativos e o que o Ministério da Educação deve fazer. Os primeiros cuidam do "hardware" do país; lidam com a "musculatura" nacional. O segundo cuida do "software", da "inteligência" nacional. Seu objetivo é fazer o povo pensar. Porque um país ao contrário do que me ensinaram na escola não se faz com as coisas físicas que se encontram no seu território, mas com os pensamentos do seu povo. Explico: o que está no início, o jardim ou o jardineiro? É o segundo. Havendo um jardineiro, cedo ou tarde, um jardim aparecerá. Mas um jardim sem jardineiro, cedo ou tarde, desaparecerá. O que é um jardineiro? Uma pessoa cujo pensamento está cheio de jardins. O que faz um jardim são os pensamentos do jardineiro. O que faz um povo são os pensamentos dos que o compõem. Os grandes políticos não foram administradores de coisas. Foram criadores de povos. E o que é um povo? Santo Agostinho, 15 séculos atrás, disse que um povo é "um conjunto de seres racionais unidos por um mesmo objeto de amor". Ou seja, pessoas que partilham de um mesmo sonho. Émile Durkheim percebeu igual. Os povos, disse, não são feitos só "da massa de indivíduos que os compõem, dos territórios que ocupam, das coisas que usam, dos movimentos que executam. Eles são feitos, sobretudo, com as idéias que os indivíduos têm de si mesmos". Foi precisamente isso que Chico Buarque disse em "A Banda". Cada um estava concentrado no seu sonhinho: a namorada, o faroleiro, o homem rico, a moça feia, o homem velho... Cada um na sua, não havia povo; tal como nós, do Brasil, país que não tem povo porque não há sonhos belos a ser sonhados. Mas aí passou uma banda. E o que ela tocava era tão bonito que os sonhos de cada um logo ficaram pequenos e foram esquecidos. Esquecidos os sonhinhos individuais, formou-se a procissão dos que seguiam o sonhão que a banda tocava. Um povo nasceu. "A Banda" contém uma teoria política sobre o nascimento de um povo. Faz uns meses, publiquei nesta seção uma carta inútil ao sr. Roberto Marinho. Usei de uma metáfora: o anúncio do Marlboro que aparece na TV. É lindo, com riachos cristalinos, raios de sol, bosques de pinheiros, cavalos selvagens. Eu, que não fumo, vendo o comercial, fico encantado. A beleza seduz, me faz sonhar. Quero estar lá. Após o curto feitiço, aparece a advertência do Ministério da Saúde: "Fumo produz câncer". É conhecimento científico. Frase verdadeira. E morta. Não conheço ninguém que tenha deixado de fumar por causa das verdades que o conhecimento científico enuncia. Conheço muitas que vieram a fumar por causa da sedução da beleza. Nossas escolas têm se dedicado a ensinar o conhecimento científico, com todos os esforços para que isso aconteça de forma competente. Isso é muito bom. A ciência é indispensável para que os sonhos se realizem. Sem ela, não se pode plantar nem cuidar do jardim. Mas há algo que a ciência não pode fazer. Ela não é capaz de fazer os homens desejarem plantar jardins. Ela não tem o poder para fazer sonhar. Não tem, portanto, o poder para criar um povo. Porque o desejo não é engravidado pela verdade. A verdade não tem o poder de gerar sonhos. É a beleza que engravida o desejo. São os sonhos de beleza que têm o poder de transformar indivíduos isolados num povo. As escolas se dedicam a ensinar os saberes científicos, visto que sua ideologia científica lhes proíbe lidar com os sonhos (coisa romântica!). Assombra-me a incapacidade das escolas para criar sonhos. Enquanto isso, os meios de comunicação (principalmente a TV), que conhecem melhor os caminhos dos seres humanos, vão seduzindo as pessoas

com seus sonhos pequenos, frequentemente grotescos. Assombra-me a capacidade desses meios para criar sonhos. Mas de sonhos pequenos e grotescos só pode surgir um povo de idéias pequenas e grotescas. Se o Ministério da Educação for só um gerenciador dos meios escolares, será difícil ter esperança. Pensei, então, que o ministério talvez tivesse poder e imaginação para integrar os meios de comunicação num projeto nacional de educação: semear os sonhos de beleza que se encontram no nascedouro de um povo. Assim, realizaria a sua vocação política de criar um povo. Por isso, Paulo Renato, considero sua posição de ministro da Educação a mais importante na vida política do Brasil. Da educação pode nascer um povo. Rubem Alves, 64, educador, escritor e psicanalista, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

PAINEL DO LEITOR ''Não poderia deixar de tecer um elogio à Folha pelo artigo publicado na pág. 1-3 de 27/5, de autoria do grande educador e escritor Rubem Alves, intitulado 'Caro senhor ministro da Educação'. Reflete de uma maneira dócil, mas intrépida, como seria bom se o homem mais importante deste país, o ministro da Educação, procedesse de maneira sábia, levando a educação do nosso país ao pódio. Só assim nos tornaremos um povo.'' Romário Rondineli Nóbrega (Muzambinho, MG) ''Belo e comovente o artigo de Rubem Alves ('Caro senhor ministro da Educação', pág. 1-3, Opinião, 27/5). 'O que faz um jardim são os pensamentos do jardineiro... O que faz um povo são os pensamentos dos que o compõem', assim como a teoria sobre o nascimento de um povo expressa em 'A Banda', de Chico Buarque de Holanda, são antológicos. Um presente para o ministro Paulo Renato Souza. Espero que o assimile se abrindo mais no diálogo com os educadores.'' Eduardo Matarazzo Suplicy, líder do PT e do bloco de oposição no Senado (Brasília, DF) ''Li o artigo do professor Rubem Alves, 'Caro senhor ministro da Educação' (pág. 1-3, Opinião, 27/5), e estendo a ele minha mão. É um servidor respeitoso e entusiasta da educação. A metáfora 'o que faz um jardim são os pensamentos dos jardineiros' é perfeita. 'Quem carrega um livro carrega consigo um jardim', diz o aforismo chinês. Se há um mal-estar nacional, sendo o guia pobre e o povo triste, a esperança está em que ainda há jardineiros e jardins, na fecundidade inesgotável da vida. E a esperança, disse o escritor Jorge Luis Borges, é a memória do futuro.'' José Fernando Rocha (São Paulo, SP)