PALAVRAS-CHAVE: Tomás de Aquino. Ensino. Memória. Introdução



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Transcrição:

1 TOMAS DE AQUINO NA UNIVERSIDADE PARISIENSE: ENSINO, POLITICA E MEMÓRIA NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MEDIEVAL TEREZINHA OLIVEIRA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ Pesquisa Financiada pelo CNPq/PQII teleoliv@gmail.com PALAVRAS-CHAVE: Tomás de Aquino. Ensino. Memória. Introdução Este texto tem por objetivo trazer à baila aspectos educacionais contidos em escritos de Tomás de Aquino, mestre da Universidade de Paris da segunda metade do século XIII. Os escritos medievais, em geral, e deste mestre em particular, possuíam como características centrais direcionar o ensino e os debates teóricos para o mundo prático e real dos homens. Destacar este aspecto, para nós historiadores da educação, é bastante relevante, uma vez que a historiografia, quando retoma este tempo histórico, particularmente questões que tangenciam a educação, mantém-se presa, de um modo geral, às lentes dos renascentistas e iluministas. Os teóricos da modernidade precisaram, historicamente, refutar os autores medievais e tudo o que eles investigavam, uma vez que este combate implicava a construção da sociedade que lhes era contemporânea e cujo primeiro objetivo consistia em destruir as forças e instituições do Antigo Regime. Daí a necessidade de soterrar as teorias que os legitimavam, especialmente o modelo escolástico de ensino e conhecimento. A crítica renascentista e iluminista à escolástica é, portanto, legítima, pois é histórica, expressou a luta entre as novas teorias que surgiam, em face das transformações sociais, que tornavam os homens o epicentro de tudo e deslocava Deus para um papel secundário. Nesse cenário, é compreensível e justificável que fossem rechaçados todos os escritos que tratavam Deus como a força motora de todas as coisas, não se considerando embasados em teorias válidas. A ambiência histórica, a eminente ruptura entre aristocracia e burguesia, conduzia os olhos dos teóricos da modernidade em relação aos escritos medievais. Ainda assim, é inegável a proximidade existente entre estas duas formulações: [...] ora, a operação própria do homem, enquanto é homem, consiste em pensar, pois é nisto que difere dos animais [...]. O princípio pelo qual pensamos é o intelecto, tal como Aristóteles diz. (TOMAS DE AQUINO, Unidade do Intelecto..., p. 119. Grifos nossos), e [...] notando que esta verdade: eu penso logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia [...] (DESCARTES, 1987, p. 46. Destaque do autor). A primeira é do teólogo/filósofo Tomás de Aquino na obra Unidade do Intelecto..., a segunda do fundador do racionalismo, René Descartes. Se lermos estas duas ideias como máximas do conhecimento abstrato, independentemente de quem as formulou e do tempo histórico em que vieram à tona, verificaremos nelas que ambas traduzem a concepção de que o homem é homem porque pensa e o pensar é que o torna distinto dos demais animais. Logo, tanto Tomás de Aquino como Descartes vêem os homens da mesma forma: como seres reflexivos. Certamente não estamos afirmando que estes dois intelectuais pensassem da mesma forma. Não seria possível esta afirmação pela época que os distingue e pelas concepções antagônicas que tinham no que diz respeito às relações sociais e ao mundo, em geral. O dominicano explica os homens por meio de

2 criação divina e o racionalista por meio da materialidade, mas ambos definem o homem pela mesma máxima: pelo pensar. A questão que se coloca a nós, historiadores e historiadores da educação, diz respeito ao fato de que mesmo tendo decorrido quase três séculos entre a revolução que varreu da história as principais instituições do antigo regime e oito séculos do ápice do conhecimento e do ensino escolástico, no âmbito da teoria, conservamos o mesmo olhar que os iluministas dirigiram ao saber medieval. Não é incomum encontrarmos textos que apresentem os intelectuais medievais, denominados de escolásticos, como teólogos que trataram da religiosidade e, quando muito, ao tratarem dos homens, se inquietaram somente com o mundo das ideias i. Nesse sentido, a lente de teóricos contemporâneos, quando se volta para este tempo do ensino e do conhecimento, ainda está envolta em brumas que, muitas vezes, encobrem o sentido histórico das obras e as conservam na penumbra do desconhecimento. Evidentemente nossa intenção não é trazer luz ao debate com o fito de explicitar que os olhares iluministas ou atuais estão equivocados. Se pretendêssemos fazer isso estaríamos negando o próprio ofício do historiador. Em primeiro lugar porque concordamos com Bloch (2001) quando afirma que a forma como vemos o passado diz muito mais sobre nosso presente do que o passado, uma vez que somos nós que visitamos o passado e não o contrário. Portanto, se pensamos que hoje estamos corretos e o passado equivocado é porque consideramos que há uma verdade certa no presente. Temos, então, um dogma e não o conhecimento. Por conseguinte, a história passa a ser religião e não ciência. Em segundo lugar, não somos os únicos a ver a Idade Média e o ensino da escolástica na universidade parisiense como expressão da vida prática e material dos homens do século XIII. Muitos intelectuais assim o fizeram antes de nós. Diga-se de passagem, autores como Guizot (1857), Tocqueville (1985), Hugon (1998), Grabmann (1949), Chenu (1967), Pieper (1973), Nunes (1979), Steenberghen (1990), Gilson (1995; 1997), Torrell (2004), Le Goff (1984; 1991; 1994), Políbios (1985), De Boni (1996), Lauand (2002), entre outros, são alicerces do nosso discurso. Todavia, estes autores, na sua maioria, estão na ambiência da história e da filosofia e o lócus de seus discursos foi ou são as universidades europeias. Com raríssimas exceções, encontramos historiadores brasileiros envolvidos com esta leitura do ensino medieval. Assim, nosso olhar volta-se para questões tomasianas com o propósito de entender a história e o modo como ele inseria as relações sociais de seu tempo no ensino. Não pretendemos idealizar os escritos do mestre, mas, também, não temos a intenção de julgá-los, pois, como já afirmamos em outros textos, não julgamos a história. Apenas a buscamos para continuar conservando-a. Nossas formulações sobre o mestre Tomás, especialmente nas questões analisadas neste texto, partem da premissa de que ele procurava nas suas aulas e escritos tratar de homens reais. As duas questões que elegemos, a 101, sobre a Piedade, e a 102, sobre o Respeito, estão inseridas na parte II a II ae da principal obra do mestre, a Suma Teológica. As duas questões exemplificam o modelo de ensino que era realizado na Universidade e, ao mesmo tempo, explicitam como o mestre dominicano, ao ensinar seus alunos, não perdia de vista os problemas pontuais de sua época. As aulas e os escritos de Tomás tinham como cenário a vida cotidiana de uma das mais importantes cidades do Ocidente medievo, Paris. Esta e a sua universidade apresentavam um cenário distinto daquele vivenciado no feudo. Estas cenas traziam à baila um novo modo de vida, na qual as

3 diferenças sociais, culturais e de saberes eram apresentadas aos homens. Estes precisavam ensinar e aprender a conviver com elas. Ao tratar da piedade e do respeito, o mestre Tomás busca ensinar aos seus alunos a importância da tolerância e do respeito entre os homens para que a vida pudesse transcorrer no espaço coletivo. Este intelectual explicitou as diferenças entre as concepções teóricas ensinadas, ou seja, os escritos sagrados e os textos de Aristóteles. Também expôs aos seus alunos e aos que o ouviam pois, este dominicano era mestre da universidade e frade pregador - os diferentes níveis de relacionamento que os homens travavam entre si, para evidenciar que o respeito devido aos pais tem uma natureza, em relação aos mestres outra, em relação ao governante, outra ainda, e a Deus, uma quarta. Diante deste cenário da urbis, Tomás mostrou às pessoas que não existia mais uma única forma de relacionamento, mas múltiplas e, em cada uma delas, exigiase daqueles que as estabeleciam, compreensões e atitudes diferenciadas. A vida na cidade e na universidade tornara-se complexa, exigindo que os homens tivessem novas noções de convívio social, especialmente em relação ao governante. Necessitavam, por isso, aprender a arte de conviver em comum e a arte da política para obedecer às novas leis sociais. Ao refletirmos sobre os escritos tomasianos apreendemos, por meio da memória histórica, como teóricos de outros tempos conseguiram aliar em seus escritos e aulas os conteúdos programáticos a serem ensinados e princípios norteadores da política, tão caros ao convívio social, independentemente do tempo histórico. Desse modo, não iremos exaltar o mestre dominicano, mas tão somente vê-lo como mestre e autor de seu tempo, que se serviu do ensino da teologia e da filosofia, conteúdos de seu magistério, para conduzir os homens nos seus atos cotidianos, especialmente no interior da cidade. Ainda acerca da eleição das questões que analisaremos destacamos o fato de que estudiosos do mestre indicam que as escritas nesta seção II a II ae da Suma Teológica tratam de temas que foram definidos por estes mesmos autores como virtudes sociais, ou seja, virtudes necessárias ao convívio social. Ainda que estranha ao vocabulário tomista a expressão <<virtudes sociais>> já recebeu ampla adesão para designar esta seção da Suma. Indica com felicidade o caráter mais geral que liga essa dezena de virtudes: distinguindo-se da religião, cujo objeto consiste nas relações com Deus, visam o comportamento e as relações da vida em sociedade. [...] Ora as virtudes que aqui designamos como <<sociais>>, segundo a posição adotada com conhecimento de causa por Sto. Tomás, são apenas virtudes anexas da justiça, suas partes potenciais; e isto precisamente porque têm a ver com a desigualdade, seja nas relações entre pessoas e na medida de seus direitos e do caráter dos deveres que deles derivam. Isso será facilmente percebido com um mero sobrevôo sobre esse conjunto de virtudes, e com um simples destaque dado a suas principais articulações. Em sua distinção e na disposição que lhes foi definitivamente atribuída, vê-se emergir um duplo princípio, destinado a ordenar todas as virtudes, enumeradas como anexas da justiça, levando em conta os critérios ali mencionados. O primeiro é justamente o princípio de desigualdade, não no sentido moderno de desigualdade de direitos em uma sociedade política, mas

4 aquele que se liga às raízes da vida social, quando se olha para sua gênese e constituição progressiva. Em outros termos: sua formação histórica é considerada a partir desse núcleo que é a família, e dessa unidade primeira que é a pátria, o lugar original onde cada um recebe a vida e a educação. Com efeito, o ponto de referência ética continua sendo a pessoa. Mas ela será examinada diretamente em seu acesso à vida e à comunhão sociais, como parte engendrada, formada e desenvolvida, graças a uma partilha de dons e benefícios que ela começa por receber (ST. II a II ae, Introd., 1 a 3). As observações dos tradutores apresentadas na passagem acima explicitam o fato de o mestre preocupar-se em entender como os homens vivem em comunidade e destacar a importância de cada pessoa singular, no uso de sua capacidade reflexiva, desenvolver virtudes sociais que possibilitem o convívio de todos. É preciso salientar que a ambiência citadina na qual Tomás de Aquino ensina e prega é composta por pessoas desiguais e a condição para a vivência comum é o estabelecimento de um estado social equilibrado no qual a prática das virtudes sociais fosse a base para o estabelecimento de relações justas entre os homens. É importante lembrar, como bem destacam os tradutores desta edição da Suma Teológica, que a comunidade/cidade de onde parte o discurso do mestre possui características bem distintas da cidade que vivemos hoje e o sentido de desigualdade do qual trata o mestre também é distinto do que entendemos no presente. Como a sociedade medieval é organizada a partir de uma hierarquia, a diferenciação é a essência da constituição de tal sociedade, enquanto na nossa, a desigualdade é explicitada nas diferenças econômicas e políticas. No tempo presente, todos nascem iguais juridicamente e são as condições econômicas que diferenciam um dos outros e definem as classes a que cada um pertence. Na época do mestre dominicano, os homens eram juridicamente diferentes por origem, portanto, por lei, desiguais. Desse modo, o lugar que cada um ocupava nas relações sociais estava definido desde antes do nascimento. Essa era a condição das relações no seio das relações feudo-vassálicas, a lei assegurava privilégios e benefícios a alguns e o restante da população vivia a mercê dos interesses dos senhores. Entretanto, à medida que as cidades se desenvolviam, o comércio galgava cada vez mais espaço e importância na vida das pessoas, as escolas citadinas e as universidades principiavam a enfatizar o ensino de outros saberes, especialmente o aristotélico. Assim, a essência das relações se modificou. Os homens, ainda que vissem e aceitassem como natural as diferenças sociais, necessitavam conviver, cotidianamente, com elas e precisavam estabelecer princípios novos que propiciassem a conservação da diferença, mas possibilitassem também direitos a todos. É, pois, em virtude deste cenário que Tomás de Aquino apresenta e debate as virtudes sociais, especialmente a piedade e o respeito, pois nelas estão os fundamentos que permitiriam um convívio citadino entre os desiguais, com certa possibilidade de harmonia, na qual cada um, firmando o seu agir, a partir do respeito e piedade com o outro, fiaria o tecido social comum a todos. A nosso ver, estas virtudes ainda continuam, atualmente, sendo imprescindíveis ao convívio social. Acerquemo-nos, pois, dos escritos de Tomás de Aquino.

5 A questão 101 A Piedade é apresentada pelo mestre em quatro artigos: 1) A quem se estende a piedade; 2) O que a piedade assegura a alguns; 3) A piedade é uma virtude especial? 4) Será lícito invocar a religião para omitir deveres da piedade? A questão 102 O Respeito é debatida a partir de três artigos: 1) O respeito é uma virtude especial, distinta das outras? 2) Em que consiste o respeito? 3) Comparação entre respeito e piedade. Cumpre observar que, ainda que tenhamos apresentado como recorte estas duas questões para nossa análise, destacamos que não trataremos de todos os artigos delas, bem como não nos limitaremos somente a estas duas questões, pois as questões 101 a 110 desta parte da Suma tratam das virtudes sociais e apresentaremos alguns artigos de outras questões para melhor analisar o debate e o ensino tomasiano. Como já mencionamos anteriormente, o mestre sempre relaciona as suas formulações ao mundo real dos homens. Com efeito, há nos seus escritos a preocupação que o aluno, o ouvinte e o leitor compreendam a finalidade de sua ideia e a associe com suas ações. Na questão 103 A Dulia ii, por exemplo, quando Tomás de Aquino reflete sobre a louvação, a homenagem aos superiores, especialmente Deus e destaca o fato do quanto a honra é importante aos homens como elemento da virtude. A honra expressa o quanto a pessoa é virtuosa. Quanto ao 2 o,, deve-se dizer com o Filósofo que a honra não é um prêmio suficiente da virtude, mas entre as coisas humanas e corporais não pode existir algo maior que a honra, na medida em que estas expressões materiais são sinais demonstrativos de uma virtude excelente. É um dever manifestar o bem e o belo como está escrito: <<Não se acende uma lâmpada para colocá-la debaixo de um móvel qualquer, mas sobre um candelabro para que ela brilhe e ilumine todos os que estão na casa>>. E é neste sentido que a honra é um prêmio da virtude (ST. II a II ae, q. 103, a. 1. sol. 2. Grifos nossos) Mas esta virtuosidade não deve ser em razão, simplesmente, de a pessoa ser boa e justa. Acima de tudo, o individuo que recebe a honra deve ser alguém que possui estas virtudes e as vivencia no seu entorno. O Ser a ser honrado deve ser excelente para a sociedade iii. Exatamente por isso o mestre Tomás compara a honra a uma luz. A luz só é importante quando ilumina todos aqueles que estão a sua volta. Quanto ao 3 o, deve-se dizer que o louvor se diferencia da honra de duas maneiras. 1 o, porque o louvor consiste apenas em sinais da linguagem; a honra, em alguns sinais exteriores. Neste sentido, o louvor está englobado na honra 2 o, pela manifestação de honra damos testemunho da excelência da bondade de alguém de maneira absoluta; enquanto que, pelo louvor, damos testemunho da bondade de alguém, relativamente a um fim; por exemplo, louvamos uma pessoa que age corretamente em vista do fim. A honra é própria também dos melhores, que não estão ordenados para o fim, mas que já o conseguiram, como diz o Filósofo (ST. II a II ae, q. 103, a. 1. sol. 3). De acordo com o mestre só pode ser honrado aquele que possui a luz que ilumina o ambiente. Só pode receber a homenagem da honra aquele que, por suas virtudes, auxilia os demais por sua bondade e bem. Tomás de Aquino não concebe o homem fora das relações sociais. Seguindo as pegadas de Aristóteles, considera que a pessoa só existe

6 em comunidade, portanto, aquele que não auxilia o outro, que não visa, com seus atos, o melhor para si e para os demais, não merece a honra. Esse entendimento dos atos humanos aparece de forma evidente no primeiro artigo da Questão 101 sobre a Piedade O homem se torna devedor de outras pessoas, de diferentes maneiras, segundo os diferentes graus de excelência que estas pessoas possuem e segundo os diferentes benefícios que delas tiver recebido. Em ambos os planos, Deus ocupa o primeiríssimo lugar, pelo fato de ser o mais excelente, e de, ser para nós o primeiro princípio de existir e de governo. Mas os nossos pais e nossa pátria, dos quais recebemos vida e subsistência, merecem também, embora de modo secundário, este título de princípio de existir e de governo. É por isto que depois de Deus, o homem é o máximo devedor dos pais e da pátria. [...] Consequentemente, assim como cabe à religião prestar culto a Deus, assim, também, em grau inferior, pertence à piedade render culto aos pais e a pátria. Por outro lado, no culto dos pais se inclui o culto de todos os consangüíneos que são chamados porque procedem dos mesmos pais, como demonstra o Filósofo. E no culto à pátria está incluído o culto a todos os concidadãos e a todos os amigos da pátria. É por isso que a piedade se estende a todos estes de maneira prioritária (ST. II a II ae, q. 101, a. 1, resp.). Ao discorrer sobre a intensidade e diversidade das relações travadas entre as pessoas, o mestre Dominicano nos aponta para os diferentes níveis de comportamento e de dependência existentes entre os homens na sociedade. De acordo com ele, só o fato de a pessoa estar viva, respirar, já a torna devedora e dependente de outros. Contudo, há uma intensa variação nestes níveis de relacionamento. Os homens não podem se relacionar com Deus (a religiosidade) da mesma maneira que vivem no cotidiano com os pais (relação familiar). Por seu turno, não podem ter o mesmo comportamento que têm com os pais quando se relacionam com os amigos. O agir da pessoa quando se relaciona com outras que não sejam seus familiares ou amigos deve ser distinto daquele com o qual está habituada a praticar quando em ambiente mais reservado. Por fim, os atos da pessoa devem ser distintos de todos os demais atos quando precisa praticar alguma ação que envolva os interesses da pátria. Com efeito, ao explicitar que a piedade/amor deve estar presente em todas as nossas ações, mas que a sua intensidade e forma se modificam em relação a quem estes atos e sentimentos são dirigidos, o mestre Tomás revela as diferenças existentes entre a ambiência privada e pública. Em relação à religião, à família e aos amigos, devemos nos comportar e devotar sentimentos particulares. No que diz respeito às demais pessoas, que denominamos concidadãos, bem como à pátria, nossos atos devem ter características distintas, pois, estão direcionados ao público. Assim, no debate sobre a devoção da piedade o Aquinate apresenta como deve ser o agir do homem em um e outro espaço. Cada um deles exige atitudes específicas. Nesse sentido, aponta para o fato de que viver na cidade implica no existir de todos para com todos; daí a necessidade premente dos atos humanos serem norteados pela piedade, porque dela depende o existir de todas as pessoas. Ao responder à solução de número três do primeiro artigo, A piedade se estende a algumas pessoas determinadas? da Questão 101, o mestre destaca: Quanto ao 3 o., deve-se dizer que as relações de

7 consangüinidade e de concidadania mais se referem aos princípios de nosso existir mais do que outro tipo de relacionamento. Por isso a elas mais se estende o nome de piedade (ST II a II ae, q. 101, a. 1, sol. 3). Segundo ele, pelo fato de os homens viverem em comum e a piedade ser a condição da existência das pessoas, ela se torna especial, pois, é condição de o homem existir coletivamente. Sem a piedade, ou seja, sem sentimentos, não é possível a convivência entre pessoas desiguais. Prosseguindo em suas reflexões acerca das virtudes humanas, ainda na mesma questão, na resposta ao segundo artigo, A piedade assegura o sustento aos pais? O mestre destaca que, ainda que os homens devam amar iv a todos que habitam a pátria, não devem servi-los com a mesma intensidade. Primeiro serve-se aos pais e àqueles aos quais possui laços de parentescos para, em seguida, e, se e quando possível, os demais habitantes. Quanto ao 3 o, deve-se dizer que, como diz Túlio, o culto e os serviços se devem a todos aqueles que são unidos pelo sangue e que amam a mesma pátria, mas não a todos da mesma maneira; em primeiro lugar, aos pais; aos outros, apenas na medida de nossos próprios recursos e da situação social deles (ST. II a II ae, q. 101, a. 2, resp.,). Fica explicito na passagem do mestre que ele entende que a cada um deve-se servir de acordo com a intensidade das relações. Não propõe, portanto, ações que conduzam à sujeição ou à servidão dos homens. As palavras do mestre demonstram que ele entende que a sociedade é regida pelas diferenças e que elas fazem parte da vida cotidiana dos indivíduos. O que ele evidencia é a necessidade de as ações humanas produzirem um bem viver na comunidade. Por isso, as pessoas devem amar ao próximo, mas este amor não é o da subserviência incondicional. Ao contrário, as pessoas devem dirigir-se a cada um como convém a vida coletiva. Na resposta ao terceiro artigo da Questão 101, A piedade é uma virtude especial distinta das outras?, Tomás de Aquino salienta que a piedade é uma virtude especial e condição para a existência social, mas ela é praticada no âmbito da singularidade de cada pessoa, ou seja, a partir dos atos individuais. Todavia, a justiça cabe aos homens enquanto seres universais, ou seja, os atos que visam ao conjunto da sociedade e não aos interesses privados. Ainda que possa ser praticada por uma pessoa, o seu fim é o conjunto dos homens, é a pátria, consequentemente, o bom andamento da justiça resulta no bem comum da comunidade. Quanto ao 3 o., deve-se dizer que a piedade se estende à pátria enquanto a pátria constitui para nós um certo princípio de nosso existir. Mas a justiça legal considera o bem da pátria sob o ponto de vista do bem comum. Por isso a justiça legal tem mais motivos que a piedade para ser considerada uma virtude geral (ST. II a II ae, q. 101, a. 3, resp.). Para o mestre de Aquino, a piedade e a justiça são virtudes fundamentais e, sem elas, não é possível a vida em comunidade. Percebe-se também por estas formulações que o autor pensa o homem a partir das novas relações sociais. Ele define a sociedade a partir de conceitos como cidade e pátria. Ainda que considere a organização das relações a partir das diferenças - seria impossível outra leitura que não essa para o século XIII -, a ideia de sujeição absoluta, de isolamento, situação natural ao mundo rural, instituído pelo feudalismo, não coaduna com as definições que ele apresenta das virtudes. O homem a quem ele se dirige e explicita a

8 importância de atos carregados de piedade e de justiça é o citadino, habitante da urbis, da comuna. Com efeito, nas cidades permanecem as diferenças sociais que existiam no feudo, entre os senhores, os vassalos e os suseranos, mas, a subordinação de alguns homens em relação a outros não deve ser explicada mais apenas pela ordem de nascimento como até então era apresentada. Nesta nova ambiência tumultuada, diversa e confusa da cidade, as diferenças precisam ser argumentadas e justificadas. Esse quadro aparece com nitidez quando, na Questão 102 O Respeito, o mestre Dominicano reflete sobre os diferentes níveis de respeito que existem na sociedade. Esse é, aliás, o objeto da questão. Na resposta à segunda solução do artigo primeiro, intitulado O respeito é uma virtude especial, distinta das outras?, ele especifica quais seriam as qualidades necessárias à pessoa para que esta possuísse a dignidade de seus pares. Quanto ao 2 o, deve-se dizer que uma pessoa constituída em dignidade possui não apenas um determinado grau de excelência, mas também um certo poder de governo sobre os súditos. Cabe a ela, portanto, a razão de princípio enquanto governa outras pessoas. Mas, pelo fato de alguém possuir a perfeição da ciência e da virtude não adquire a razão de principio em relação a outros, mas somente uma determinada excelência. E é por isso que se faz necessário uma virtude especial para prestar honra e culto àqueles que se acham constituídos em dignidade. Entretanto, como pela ciência e pela virtude e por outras qualidades do gênero, uma pessoa se torna apta a alcançar o estado de dignidade, a reverência prestada por uma excelência pertence à mesma virtude (ST. II a II ae, q. 102, a. 1, sol. 2). Percebe-se pelas palavras do mestre que só pode ser objeto de diferenciação social e receber a gratidão dos demais homens a pessoa que, por alguma qualidade excelente, seja superior aos demais. Somente será apto a governar os demais homens e passível de reverência aquele que possuir virtudes especiais. Dentre estas virtudes ou qualidades, Tomás de Aquino, inclusive, destaca a ciência. Sob este aspecto podemos inferir que, para Tomás de Aquino, o dirigente ou líder de uma comunidade não o deve ser em decorrência de seu nascimento, mas de sua virtude pessoal. Evidentemente que o autor não está propondo o fim da nobreza, pois não se encontra em seus propósitos esta revolução. Aliás, esta crítica só veio aparecer de forma candente em fins do século XVII e no XVIII, com os iluministas. Entretanto, é inegável que o mestre já aponta para o fato de que o ato de governar não é para qualquer pessoa ou em decorrência da linhagem sanguínea, mas resulta daquele que está, por sua condição de pessoa virtuosa, mais apto a dirigir e cuidar do bem comum de todos, portanto, passível de dignidade e honra. É preciso lembrar que a ideia de governo do mestre Tomás não está estreitamente ligada ao governo geral, no sentido político, que concebemos hoje. Para ele, todo ato humano é proveniente de governo. As atitudes singulares que cada pessoa toma em seu cotidiano resultam da sua capacidade particular de dirigir sua vida, daí inclusive a defesa tomasiana de que cada homem possui em si um intelecto agente único que direciona seu agir. Por conseguinte, pelo uso deste intelecto o homem tem o livre arbítrio para comandar sua vida. Em última instância, toda pessoa é responsável pela direção da sua vida. Todavia, como a vida é coletiva, o agir singular de cada um, como já mencionamos antes, relaciona-se e interfere no agir do outro. Daí o mestre destacar, na Questão 102, na resposta ao segundo artigo Cabe ao respeito prestar culto e honra

9 às pessoas constituídas em dignidade?, nas soluções dois e três, mais um aspecto do imbricado relacionamento existente entre os homens. Trata-se da conceituação de dívida. Quanto ao 2 o, deve-se dizer que, como se disse anteriormente, há duas espécies de dívida. Uma é a dívida legal, que a lei obriga a quitar. É assim que uma pessoa deve honra e culto àqueles que estão constituídos em dignidade e que sobre ela têm autoridade. A outra é a dívida moral, exigida em termos de honestidade. É assim que devemos culto e honra àqueles que são constituídos em dignidade, mesmo não sendo súditos deles. Quanto ao 3 o, deve-se dizer que se deve a honra às pessoas constituídas em dignidade em razão do grau superior; o temor, em razão do poder coercitivo de que dispõem. À função de governo que eles exercem deve-se a obediência pela qual os súditos são movidos pelo mando dos que presidem, e os tributos, que são uma espécie de remuneração de seus trabalhos (ST. II a II ae, q. 102, a. 2, sol 2 e 3). Tomás de Aquino apresenta algumas condições nas quais um homem tem dívidas para com o outro e todas elas, indubitavelmente, mantêm-se até os nossos dias e colaboram para conservar os homens unidos uns aos outros. A primeira é a divida financeira ou como o designa, legal. É aquela que a lei obriga a efetivação do pagamento, portanto, é de natureza jurídica. A segunda dívida, o mestre a define como moral, pois, está relacionada às obrigações que todos possuem em relação ao governante aos quais todos os súditos devem prestar homenagem e obedecer. Como o pagamento de tributos está vinculado ao governante, ele também considera esta dívida no campo da moral, pois, ainda que todos saibam da obrigação dos impostos, seu pagamento, em síntese, está vinculado à honra de cumprir ou não os compromissos públicos. Na resposta ao artigo terceiro da Questão 102, O respeito é uma virtude superior a piedade?, o mestre dominicano trata de uma terceira natureza de dívida entre os homens. A nosso ver, esta é a mais complexa, pois, os homens, em geral, independentemente do tempo histórico, têm dificuldades em discerni-la na medida em que nem sempre é percebida. Trata-se da dívida que todos têm para com aquelas pessoas as quais se deve algo, em relação à dignidade da própria pessoa. Nesta instância, Tomás de Aquino elege aqueles que, do seu ponto de vista, são os receptores das dívidas. RESPONDO. Pode-se servir às pessoas constituídas de dignidade de duas maneiras: 1 o Em função do bem comum; quando, por exemplo, alguém lhes presta serviço na administração pública. Este serviço não se refere ao respeito, mas à piedade que presta culto não somente ao pai, mas à própria pátria. 2 o Quando o serviço é prestado especialmente pelo interesse ou à glória individual das pessoas constituídas em dignidade. E isto se refere propriamente ao respeito enquanto distinto da piedade. Desta forma, para estabelecer uma comparação entre respeito e piedade é preciso levar em consideração os diferentes tipos de relacionamento que têm conosco as diferentes pessoas afetadas diretamente por estas duas virtudes. É evidente que nossos pais e todos aqueles a nós ligados pelos laços do sangue então unidos a nós de modo muito mais substancial do que as pessoas constituídas em dignidade; de fato, a geração e a educação, cujo princípio é o pai, nos concernem muito mais substancialmente do que o governo exterior, que tem por princípio aqueles que estão estabelecidos em dignidade. A este respeito, a piedade supera o respeito, porque rende culto a

10 pessoas que nos tocam de mais perto e para com as quais temos muito mais obrigações (ST. II a II ae, q. 102, a. 3, resp. ). De acordo com o mestre Tomás, os homens, em geral, são devedores daquelas pessoas que possuem dignidade porque os atos destes estão dirigidos ao bem comum do grupo, da comunidade/cidade e da pátria. Em relação a estas pessoas, o mestre não está se referindo, especificamente, ao governante ou líder, ainda que estes possam ser objetos de reverência e de dignidade. Ao contrário, ele está se dirigindo às pessoas comuns que, por seus atos em benefício de alguém ou do grupo, beneficiam individualmente ou coletivamente as pessoas. O mestre de Aquino, inclusive, exemplifica com as figuras paternas e de parentesco. Aliás, para o mestre dominicano, as pessoas são mais devedoras dos pais e parentes do que das autoridades e pessoas externas às suas relações de parentesco. Em face desta comparação em relação aos níveis de dignidade que ele diferencia a quem os homens devotam piedade ou respeito. Lembra o mestre que as pessoas precisam respeitar todos para viver em comunidade, uma vez que as virtudes da piedade e do respeito asseguram a harmonia nas relações sociais. Todavia, Tomás de Aquino salienta que a piedade, quando dirigida às pessoas que nos são próximas, é superior ao respeito, pois, ama-se mais, bem como se tem mais obrigações para com aqueles que possuem laços mais próximo. No debate acerca destas três naturezas de dívida, o mestre aponta suas formulações para a necessidade de os homens praticarem atos que se coadunem com a vida em comum. Sob este aspecto, as pessoas devem saber que, em níveis diferenciados, todos têm alguma natureza de dívida para com o próximo e no cumprimento delas precisam fazer uso da piedade e do respeito. Evidentemente, o exemplo das diferenças quanto aos níveis sociais da dívida é apenas um, dentre uma infinidade de outros, que o mestre Tomás expõe. Todavia, em seus escritos sobre as virtudes, um mesmo fio condutor norteia suas ideias: o homem é livre para fazer escolhas e agir. Esta formulação é explicitada na solução do artigo primeiro da Questão 104 A Obediência Um homem deve obedecer a outro homem? Quanto ao 1 o, portanto, deve-se dizer que Deus deixou o homem entregue ao seu próprio conselho, não porque lhe é permitido fazer o que quiser, mas porque o homem não é obrigado por necessidade da natureza a fazer o que deve, como ocorre com as criaturas irracionais, mas porque o faz por uma escolha livre procedente de seu próprio conselho. E assim como para fazer outras coisas deve seguir seu próprio conselho, assim ele deve proceder também quando obedece a seus superiores, pois como diz Gregório, <<submeter-se humildemente à voz do outro é se elevar interiormente acima de si próprio>>. Quanto ao 2 o, deve-se dizer que a vontade divina é a regra primeira pela qual se regulam todas as vontades racionais, à qual se aproxima uma mais que a outra, de acordo com o plano divino. Por conseguinte, a vontade de um homem que manda pode ser considerada como a regra segunda da vontade daquele que obedece. Quanto ao 3 o, deve-se dizer que uma obra pode ser avaliada gratuita de dois modos: do lado da obra, em si mesma, quando o homem não é obrigado a executá-la. Do lado do agente, quando o faz por livre vontade. Ora, o que faz uma obra ser virtuosa, louvável e meritória é, principalmente, o fato de proceder da vontade. Por conseguinte, embora [sic] obrigação obedecer, se alguém obedece por livre decisão, o mérito não fica diminuído em nada, principalmente diante de Deus que vê não somente as obras exteriores, mas também a vontade interior (ST. II a II ae, q. 104, a. 1, sol. 1, 2 e 3).

11 Esta passagem de Tomás de Aquino expõe de forma explícita que, do ponto de vista do autor, o homem é responsável pelos seus atos e por ser um SER que possui intelecto, pode, por conseguinte, fazer uso da razão. Logo, espera-se que ele tenha discernimento para fazer o que é certo e correto e que seus atos expressem sua vontade. Mas esta deve ser sempre fruto da razão. Ao fazer uso do intelecto, o homem pode aconselhar-se a si mesmo, sempre saber o que fazer independente do outro. Desse modo, se um homem se submete a outro, por escolha, no pleno uso da sua razão, esta obediência é o melhor para si. Do contrário, no uso pleno de suas condições intelectivas, ele não se submeteria a algo ou a outro homem se, por princípio, esta relação lhe fosse prejudicial. Por seu turno, aquele que manda, se também o faz no pleno uso da razão, não produz a tirania, mas, por possuir virtudes especiais, como a da dignidade, a da ciência, a da honra, pode mandar e ser obedecido. Do ponto de vista do mestre, uma obra só é bem executada quando expressão da vontade de quem a faz. Tudo que é feito na ausência da vontade não expressa o bem, mas sujeição e negação do intelecto. Aquele que não dirige seus atos, por meio do intelecto, não pode ser considerado uma pessoa porque não se assemelha a Deus, mas sim, aos irracionais que não têm vontades, somente necessidades. Para Tomás de Aquino, o homem é a imagem de Deus somente quando possui vontade própria e esta define seu caminho. CONSIDERACÕES FINAIS Ao discorrer sobre as virtudes da Piedade e do Respeito, o mestre Tomás de Aquino apontou, para os homens de seu tempo, que a vida em comum exige das pessoas uma série de comportamentos que se coadunem com os interesses da comunidade e que estes comportamentos implicam um viver político. Do ponto de vista do autor, todas as pessoas precisam ter clareza ou, como diríamos nos dias atuais, consciência de que os seus atos singulares interferem na vivência universal de todos na comunidade. A preocupação do mestre dominicano incidiu no fato de que a vida citadina exigia, de cada um, um nível de doação e abnegação das vontades particulares com o qual os homens medievais não estavam habituados. Para Tomás de Aquino, a vida coletiva é feita de concessões, mas estas não podem refletir o abandono de vontade ou submissão. Ao contrário, é por terem consciência que pertencem a uma ambiência comum que os homens precisam fazer uso de seu intelecto. É preciso observar que as ideias tomasianas nos apontam para questões candentes da sua época. Como os homens estavam principiando a viver nas cidades, era preciso criar neles hábitos de convívio social que antes não possuíam porque estes não eram necessários. Foi com a intenção de apontar para estes hábitos que o mestre buscou ensinar virtudes que desenvolvessem esses novos comportamentos nas pessoas. Procurou explicitar aos homens que a Piedade (a misericórdia e amor ao próximo) não é somente um sentimento proveniente da religiosidade, mas condição para a existência da sociedade. O Respeito não é sinônimo de sujeição e servidão, mas condição para a harmonia e a tolerância, aspectos essenciais à vida comum. As diferenças entre as pessoas são inerentes aos homens, pois ainda que todos sejam Seres possuidores de intelecto, portanto iguais, cada indivíduo tem características singulares únicas que os tornam diferentes. Todavia, o mestre Tomás já alertava, no século XIII, que a diversidade social entre os homens é fruto da condição e do papel que cada pessoa desempenha na sociedade e não decorrência de nascimento, como os homens medievais estavam habituados a conceber. Esta posição foi explicitada em diversas citações, a exemplo da honra, da dignidade, da dívida, que apresentamos de Tomás de Aquino. Não podemos nos esquecer que o mestre apontava, também, para os diferentes níveis de relações e ações das pessoas, nos quais já se desenhava, com muita nitidez,

12 que a ambiência coletiva da cidade impunha a separação entre a vida privada e a vida pública. Por fim, retomando o diálogo com a história, com o qual iniciamos nosso texto, esperamos ter conseguido explicitar que os escritos tomasianos, exemplo e modelo da teoria e do método escolástico, trataram diretamente de questões reais dos homens. Na última citação do texto, por exemplo, quando o mestre Tomás discorre sobre a liberdade que o homem tem para agir, em razão do intelecto, explicita o que há de mais real e prático no homem, o livre arbítrio com o qual decide todos seus atos e vontades. Entretanto, só apreenderemos estas formulações tomasianas se as consideramos com as nossas próprias lentes e depreendermos de seus escritos o quanto ele estava se referindo aos homens citadinos no seu entorno. Transformemos os escritos do mestre Tomás em história e sigamos os seus conselhos. Façamos as leituras de seus textos fazendo uso da liberdade e da vontade, como seres intelectivos que somos, examinemo-los com os olhos do nosso tempo e não como os dos autores do século XVIII. Se assim o fizermos, perceberemos que ele tem muito a ensinar e nós muito a aprender, porque os seus escritos fazem parte do passado e em nada nos ameaçam. Para seguir a história e fazer dela nosso oficio, temos que ter lentes próprias e com elas ler outros tempos da história. Mas, quando usamos os óculos de outros tempos, que não o nosso, incorremos em dois graves perigos: 1) não entendemos o passado; 2) tornamo-nos juízes deste passado. Em ambas as situações, abandonamos a história. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: UnB, 1985. BLOCH, M. Apologia da História, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BLOCH, M. Introdução à História. Lisboa: Plublicações Europa-América, 1969. CHENU, M. D. Santo Tomás de Aquino e a Teologia. Rio de Janeiro: Agir, 1967 DE BONI, L. A. Idade Média: Ética e Política. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. DESCARTES, R. Discurso do Método. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987. GILSON, E, A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1995. GILSON, É. Le Tommisme. Paris: J. Vrin, 1997. GRABMANN, M. Filosofia Medieval. Barcelona: Labor, 1949. GUIZOT, F. Essai sur l Histoire de France. Paris: Didier et Cª Librairies-Éditeurs, 1857. HUGON, E. Os princípios da filosofia de São Tomás de Aquino. As vinte e quatro teses fundamentais. Porto Alegre: Edipucrs, 1998. LAUAND, L. J. Em diálogo com Tomás de Aquino. São Paulo: Editora Mandruva, 2002. LE GOFF, J. Mercadores e Banqueiros na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1991. LE GOFF, J. O imaginário medieval. Lisboa: Estampa, 1994. LE GOFF, J. Os Intelectuais na Idade Média. Lisboa: Gradiva, 1984. NUNES, R. A. C. História da Educação na Idade Média. São Paulo: Edusp, 1979. PIEPER, J. Filosofía Medieval y Mundo Moderno. Madrid: Rialp, 1973. POLÍBIOS. História. Brasília: UnB, 1985.

13 SAVIANI, D. & DUARTE, N. A formação humana na perspectiva histórico-ontológica. Revista Brasileira de Educação, v. 15, set/dez, n o. 45, p. 422-433, Rio de Janeiro, 2010. SÊNECA, L. A. Da Tranquilidade da Alma. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973, STEENBERGHEN, F. O Tomismo. Lisboa: Gradiva, 1990. TOCQUEVILLE, A. O Antigo Regime e a Revolução. Brasília: UnB, 1982. TOMÁS DE AQUINO. A Unidade do Intelecto contra os Averroístas. Lisboa: Edições 70, 1999. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2005, II a II ae. TORREL, J-P. Iniciação a Santo Tomás de Aquino. São Paulo: Loyola, 2004. i Um exemplo desta forma de interpretação pode ser encontrada no recente artigo do professor Dermeval Saviani e Newton Duarte. Os autores, ao analisarem aspectos da formação humana sob as perspectivas da história e da filosofia, recuperam Marx para explicitar a tese de que o conhecimento e a formação pautam-se nas relações materiais entre os homens: [...] o problema da possibilidade de atribuir ao pensamento humano uma verdade objetiva não é um problema teórico, mas sim um problema prático. É na prática que o homem deve demonstrar a verdade, ou seja, a realidade e o poder do seu pensamento isolado da prática é um problema puramente escolástico (MARX apud SAVIANI & DUARTE, 2010, p. 425). ii Douleía 'servidão, submissão'; 'culto aos servos de Deus' (Dicionário Houaiss). iii É importante destacar que o debate sobre a importância da virtude como condição da vida em sociedade não é inaugurada por Tomás de Aquino. Vários outros autores da Antiguidade já indicaram a virtude como base da vida em comunidade. Encontramos estas reflexões em Aritóteles, na Ética a Nicômacos. Aliás este filósofo fundamente, em grande medida, o pensamento tomasiano. Em Sêneca, autor latino, do século I, ela também é tratada. Ele explicita, na obra Da Tranqüilidade da Alma, que a virtude é a condição do homem viver e servir a sociedade. Do mesmo modo que o mestre Tomás, Sêneca, séculos antes, apontava para o fato de que o homem só é virtuoso quando serve a comunidade. 2. Aqui está, segundo minha opinião, o que deve fazer a virtude: se o destino triunfa e lhe tira os meios de agir, que ele não se apresse em virar as costas e fugir, largando suas armas e tratando de procurar um abrigo, como se existisse um lugar no mundo onde se pudesse escapar do destino: mas que ele imponha somente maior reserva à sua atividade e procure com perspicácia algum emprego que lhe permita tornar-se outra vez útil à cidade. 3. A carreira militar lhe é proibida? Que ele pretenda as magistraturas: está ele reduzido à vida particular? Que advogue. O silêncio lhe é imposto? Que nas residências particulares, nos espetáculos, à mesa, ele se mostre companheiro honesto, amigo fiel, conviva moderado. Ele não pode mais cumprir com seus deveres de cidadão? Restam-lhes os deveres de homem (SÊNECA, 1973, p. 212). iv Evidentemente que o amar a todos, para Tomás de Aquino, está vinculado ao ato da piedade, do sentimento de tolerância e respeito que todos devem devotar a todos na comunidade citadina. Não tem a ver com a ideia de amor filial ou entre casais. É a afetividade necessária entre os homens.