EDUCAÇÃO JESUÍTICA NO IMPÉRIO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVI: O COLÉGIO E O RATIO STUDIORUM 1 ]



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Transcrição:

EDUCAÇÃO JESUÍTICA NO IMPÉRIO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVI: O COLÉGIO E O RATIO STUDIORUM 1 ] Célio Juvenal Costa/UEM Este texto tem como objeto a educação na Companhia de Jesus como um dos componentes de sua racionalidade, destacando, para isso, os conceitos de Colégio e de Razão de Estudos (o Ratio Studiorum). O objetivo é mostrar que o colégio não era apenas o espaço da educação dada pelos jesuítas seja aos brancos cristãos, seja aos filhos de escravos e nativos, pois ele era o centro administrativo da vida dos jesuítas, principalmente nas terras em missão. O Ratio Studiorum também expressa o caráter histórico da Sociedade de Jesus nos seus primeiros decênios de existência, pois foi resultado de quase 50 anos de experiências em vários colégios e em todas as províncias jesuíticas até receber a chancela de documento oficial. O conceito de educação utilizado tem um sentido lato de produção e reprodução espiritual e cultural de uma determinada sociedade geral ou particular. Portanto, a educação jesuítica concebida aqui não se restringe à educação escolar, ou às relações didáticas entre professor e aluno mediadas por disciplinas etc.. O colégio aqui adquire mais o sentido geral de espaço cultural, profissional, religioso, espaço de formação de valores, do que um conjunto de salas de aula. Os colégios jesuíticos, abertos aos jovens em geral, público e gratuito para os estudantes, dispensava uma educação realmente séria e exigente. Nas terras em missão, principalmente, o colégio além de desempenhar seu papel educativo, era o centro administrativo e era assim uma espécie de pólo irradiador de uma cultura, que se traduzia tanto na educação escolar como na própria organização daquele instituto religioso. O colégio jesuítico e o Ratio Studiorum são apreciados, também, no contexto da expansão portuguesa que teve como motivador principal o comércio de riquezas e o monopólio das rotas comerciais e de alguns produtos. Como conseqüência praticamente natural da expansão comercial e política, ocorreu a expansão do cristianismo. Junto com a espada foi a cruz! 1 Este trabalho faz parte de uma tese de doutorado, defendida neste ano de 2004, que versou sobre a o tema da racionalidade jesuítica no Império Português, no período de 1540 a 1599. Juntamente com a adaptação e a organização, a educação foi analisada como um momento da racionalidade, como uma característica, historicamente construída, do modo de ser da Companhia de Jesus.

O colégio A atividade educacional da Companhia de Jesus foi intensa em sua história, apesar de não se configurar como um dos possíveis trabalhos quando da sua fundação. Quando Inácio de Loyola morreu, em 1556, existiam 35 colégios em funcionamento dos 40 já aprovados; neste mesmo ano a Companhia tinha cerca de 1000 membros, distribuídos em 110 Casas e 13 Províncias. Em 1773, quando a Companhia foi extinta, ela contava com 23.000 membros e dirigia, na Europa, 546 Colégios e 148 Seminários e, fora da Europa, 123 Colégios e 48 Seminários, num total de 865 estabelecimentos de ensino 2. No proêmio da quarta parte das Constituições da Companhia de Jesus 3, a que trata da formação do futuro jesuíta e da atividade educacional da Companhia, se encontra resumidamente os objetivos ao se estabelecer colégios. É interessante notar que quando da promulgação das regras e leis da Companhia ela já dispunha de uma certa experiência com colégios. A justificativa geral, como não poderia ser diferente, é baseada na religião, que tinha nos colégios e universidades espaços de doutrinação e salvação das almas: O fim que a Companhia tem diretamente em vista é ajudar as almas próprias e as do próximo a atingir o fim último para o qual foram criadas. Este fim exige uma vida exemplar, doutrina necessária, e maneira de a apresentar. Portanto, uma vez que se reconhecer nos candidatos o requerido fundamento de abnegação de si mesmos e o seu necessário progresso na virtude, devem-se procurar os graus de instrução e o modo de utilizá-la para ajudar a melhor conhecer e servir a Deus nosso Criador e Senhor. Para isso a Companhia funda colégios e também algumas universidades, onde os que deram boa conta de si nas casas e foram recebidos sem os conhecimentos doutrinários necessários possam instruir-se neles e nos outros meios de ajudar as almas. (...) (CONSTITUIÇÕES, 1997, p. 117) As experiências com colégios iniciam-se, entre os jesuítas, na década de 40 do século XVI. Em princípio somente de formação para seus futuros padres e, depois, para alunos externos, as experiências em Portugal e principalmente de Gandia e Messina, impulsionaram esta atividade na Companhia, fazendo com que, a partir dali, muitos colégios fossem fundados. Este sucesso refletiu-se na condução de Loyola à frente da 2 Fonte: http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/jesuitas/_private/hj.htm. 3 O livro que estabeleceu as leis internas da Companhia de Jesus foi apresentado como documento oficial somente no ano de 1556, praticamente 20 anos depois da fundação oficial da ordem. Este documento é expressão da preocupação inaciana de testar na prática o que se tornaria lei e rotina para todos os jesuítas, antes de se tornar oficial e público. Se estas constituições fossem escritas e oficializadas já em 1540, muito provavelmente elas não teriam a configuração de 1556.

Companhia, pois em muitas ocasiões, através de cartas, pediu, sugeriu, aconselhou, argumentou, determinou a fundação de colégios. Na carta de recomendações que escreve para João Nunes Barreto, futuro Patriarca da Etiópia, Inácio de Loyola mostra a importância de criar casas de ler e escrever e colégios para reduzir aquela população ao cristianismo, a começar pelas crianças e jovens: Para a inteira redução daqueles reinos seria muito útil, tanto no início como em todo tempo, que lá na Etiópia se fundassem muitas escolas de ler e escrever e outras letras e Colégios para instruir a juventude e também aos mais que precisarem, na língua latina, em costumes e doutrina cristã. Isto seria a salvação para aquele povo. Porque, quando estes crescerem, ficariam afeiçoados ao que tiverem aprendido no início e no qual pareceriam superar aos seus maiores. Desse modo, em breve, cairiam e se extinguiriam seus antigos erros e abusos. (in: CARDOSO, 1993, p. 115) A convicção de Loyola ia além da confiança nos aspectos especificamente educacionais proporcionados pelos colégios da ou administrados pela Companhia de Jesus. Na verdade se tratava de uma nova cruzada, não para reconquistar a terra prometida aos mouros, mas para levar a verdadeira salvação a todos os homens. Essa cruzada moderna objetivava reduzir os gentios ou, no caso da menção acima, os meio-cristãos, à verdadeira religião. A tarefa dos jesuítas era de imensa responsabilidade, pois eles se tornavam instrumentos de Deus para a salvação de todos, principalmente dos que não conheciam o Deus cristão ou o conheciam apenas parcialmente. O colégio, nesse sentido, seria um instrumento eficaz da nova cruzada, pois através do aprendizado de ler e escrever e dos assuntos mais complexos, a religião cristã, e obviamente a cultura ocidental, era introjetada em meio ao ensino. O fato de o público dos colégios se formar de crianças e jovens facilitava, na visão de Loyola, o aprendizado das coisas cristãs e, com o tempo, os erros característicos daquela cultura seriam sanados. Na carta do jesuíta Luís Fróis ao Geral Cláudio Acquaviva, de 1591, se encontra talvez o exemplo mais bem acabado da concepção dos jesuítas com relação ao papel dos colégios em terras de missões. O colégio é apresentado como espaço de reprodução da cultura ocidental cristã e como o meio mais eficaz à consecução dos objetivos da Companhia de Jesus: Quanto à fábrica do colégio para nele se criarem os irmãos japoneses como tão bem escreve o Pe. Visitador a Vossa Paternidade não foi sem grande consideração o que no Japão e na Congregação se fez e se tem tratado desta matéria porque ventilada com muita ponderação não se

achou remédio mais eficaz que isto para reduzir os irmãos japoneses ao objetivo que a Companhia deles pretende de tirá-los de seu Reino costumes e conversas para melhor se domesticarem e se unirem com os nossos da Europa. E são tantas as utilidades que deste adventum se pode seguir assim para a sólida direção dos irmãos japoneses em virtudes e letras e para o bem universal da cristandade e ainda, também, desta missão da China quando Nosso Senhor for servido de se abrirem as portas, que não se há visto meio mais eficaz e em todo acomodado ao objetivo da Companhia como a fundação deste colégio.... (In: BAPTISTA, 2003, p. 03) Os colégios não se restringiam a sua função educativa ou formativa, caracterizandose, também, como centros administrativos da organização jesuítica e, particularmente no Brasil, funcionavam da mesma forma que as paróquias e cúrias atuam hoje no seio da organização da Igreja Católica. Aos colégios eram subordinadas as casas, as reduções, enfim, todas as atividades dos jesuítas. Não é sem razão que na escala hierárquica da Companhia, o Reitor do colégio estava abaixo apenas do Provincial na esfera da província. Para exemplificar o entendimento de que os colégios cumpriam, na organização da Companhia, funções para além das especificamente escolares, vejam-se as ordenações de D. Sebastião acerca do padrão de fundação do Colégio da Bahia: 4. O qual collegio fosse tal que nelle podessem residir e estar até sessenta pesoas da dita Companhia, que parece que por agora deve aver nele, pellos diversos lugares e muitas partes, em que os ditos Padres residem e a que do dito collegio são emviados pera bem da conversão e outras obras de serviço de Nosso Senhor. (in: LEITE, 1960, p. 97) Os residentes do colégio não eram apenas os professores, irmãos, reitor etc., mas todos os padres que pertenciam à província e que estavam espalhados por ela toda; é essa a informação prestada por Serafim Leite, em nota informativa, de que os padres e irmãos eram exatamente sessenta e um em toda província do Brasil, o que representa que nesta primeira doação régia, o Colégio da Baía não se apresentava como entidade local, mas representativa de toda a Companhia de Jesus no Brasil. (idem, ibidem, p. 97). E mesmo depois da fundação dos outros colégios, eles não perderam a sua função de entidade representativa, mesmo que local, da Companhia de Jesus. Na Informação do Brasil e de suas Capitanias, de 1584, Anchieta fornece com precisão a notícia sobre o papel dos colégios na organização da Companhia, ao narrar com detalhes a história dos colégios e o estado em que se encontravam. Ao referir-se às demais casas dos jesuítas, depois de falar dos colégios, mostra que os últimos tinham por função sustentar as primeiras:

As mais casas vivem de esmola que lhes dão os moradores, fracamente, conforme a sua possibilidade, que é pouca; e porque eles não podem suprir a tudo por serem pobres, os colégios provêm as casas que lhes são subordinadas de vestido, vinho, azeite, farinha para ostias e outras cousas que não ha na terra e hão de vir necessariamente de Portugal. Em todas estas casas ha sempre escola de lêr, escrever e algarismo para moços de fóra. (ANCHIETA, 1988, p. 334) Os colégios jesuíticos não desempenhavam, portanto, o único papel de centros de estudos, mas não se pode deixar de considerar, entretanto, que o ensino e a formação dos jovens, tanto os internos como os externos à Companhia, eram suas atividades principais. A necessidade de estabelecer uma formação adequada aos futuros jesuítas e a experiência adquirida na educação de jovens em geral, resultaram, inclusive, na formulação do Ratio Studiorum, como um documento a ser aplicado exatamente nos colégios da Companhia da Jesus. Assim, a Companhia de Jesus estabeleceu dois tipos diferentes de colégios: um privado exclusivamente para a formação de futuros jesuítas e outro público, para a formação dos jovens em geral. Esta divisão não era, porém, tão rigorosa que não permitisse a existência de colégios onde estudassem tanto os seminaristas quanto os externos. 4 : Nos colégios da Companhia, particularmente os de Portugal, como o Real Colégio das Artes, entregue para a administração dos jesuítas em 1555, tiveram, de fato, uma inspiração humanista no que toca à valorização da forma antiga, que se baseava no aprendizado clássico do latim e do grego. Aquele colégio, por exemplo, mesmo depois da administração jesuítica, teve uma forte inspiração no movimento chamado modus parisiensis, ou seja, na forma como os colégios de Paris entendiam o estudo das chamadas Artes 5. Este método de estudo compôs, junto com outros estudados atentamente pelos padres da Companhia de Jesus, os fundamentos teórico-pedagógicos do Ratio Studiorum, 4 Antonio Lopes, no artigo D. João III e Inácio de Loyola, apresenta uma síntese da história dos modelos de colégios que a Companhia de Jesus foi concebendo com o tempo. Ao todo, Lopes enumera seis diferentes tipos de fórmulas da organização dos colégios. 5 O modus parisiensis é o conjunto de normas pedagógicas que caracterizavam o ensino parisiense e lhe conferiam uma personalidade única e original. Como mostra Joaquim Ferreira Gomes (1995: 30), de todos os modelos universitários disponíveis, o modus parisiensis era o que apresentava maior coerência, rigor e eficácia e aquele que mais valorizava a ordem, a rapidez e a disciplina da aprendizagem, leque de características que se adaptavam perfeitamente aos intentos normativos da docência Jesuíta. O modus parisiensis caracteriza-se por quatro tópicos fundamentais: a distribuição dos alunos em classes, uma actividade constante dos alunos através de exercícios escolares, um regime de incentivos ao trabalho escolar, e a união da piedade e dos bons costumes com as letras. (www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/jesuitas/_private/mp.htm).

sendo, no testemunho de historiadores dos jesuítas, o mais importante, principalmente pelas coincidências existentes. Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu Em 1599 a Companhia de Jesus lançou oficialmente um documento pedagógico, educacional, que se tornou um dos mais citados e conhecidos da história, objeto tanto de loas como de críticas ácidas, dependendo do contexto em que é analisado. O Ratio Studiorum, como ficou mais conhecido, é um exemplo característico de como a Sociedade de Jesus foi se construindo durante, principalmente, o século XVI. Da primeira tentativa de esboçar um regulamento para os colégios jesuíticos até a publicação oficial do Ratio, decorreram praticamente cinqüenta anos. E, mesmo numa perspectiva mais prática, da redação inicial até a final deste documento passaram-se quinze anos. Em síntese, poder-seia afirmar que o Ratio Studiorum, espelhado na Companhia de Jesus como um todo, é filho da prática e da experiência de assumir e avaliar as tarefas novas. Com o objetivo de desmistificar a idéia de que o Ratio é um documento que veio à luz como resultado simplesmente da cabeça de três ou quatro padres, os quais teriam elaborado um tratado pedagógico com força de lei dentro da Companhia, obrigando de imediato que ele fosse cumprido à risca em todos os colégios e universidades jesuíticas, apresenta-se a seguir um pouco da história da construção das regras pedagógicas e educacionais dos jesuítas 6. A primeira experiência em tentar estabelecer um regulamento pedagógico na Companhia de Jesus se deu com a fundação do primeiro colégio clássico, plenamente organizado, que foi o Colégio de Messina, na Sicília, em 1548. É a quarta fórmula dos colégios jesuíticos, segundo a propositura de Lopes. Neste colégio, segundo Franca, se utilizou pela primeira vez o modus parisiensis, que foi seguido deliberadamente pelos professores na organização dos estudos, em matéria de repetições, disputas, interrogações e declamações (FRANCA, 1952, p. 03). O próximo passo dado em direção à organização de um plano de estudos para os colégios se deu em 1551, quando o jesuíta Jerônimo Nadal, a pedido do Geral Loyola, recolhe informações a respeito dos colégios, principalmente o de Messina, por ocasião de viagens realizadas como Visitador da Companhia, e, a partir das observações, elaborou o 6 Para realizar esse breve histórico do Ratio utilizou-se de dois historiadores jesuítas: Leonel Franca e Francisco Rodrigues.

primeiro regulamento, chamado De Studiis Societatis, o qual foi enviado, com o tempo, aos colégios existentes e os que se iam fundando à época. Em 1551 também foi fundado o que se tornou o principal colégio da Companhia em todo o mundo: o Colégio Romano, de onde partiram inúmeros docentes da Companhia para trabalhar nos outros colégios e aonde se fizeram algumas experiências importantes. Entre os anos de 1557 e 1559 o Colégio Romano teve como seu Reitor o padre Nadal que, acumulando essa experiência ao plano de estudos elaborado em 1551 e a visita a vários colégios da Companhia, elaborou, novamente a pedido do Geral, a nova Ordo Studiorum, que foi posta em execução durante o seu reitorado. Além do Jerônimo Nadal, outro padre jesuíta que individualmente foi importante para o estabelecimento do plano de estudos foi Ledesma, o qual foi professor, tendo exercido, também, várias funções no Colégio Romano de 1557 a 1575. Franca informa que dos 132 documentos publicados na série Monumenta Paedagogica, 59 foram tanscritos, anotados e corrigidos pelo padre Ledesma. A principal contribuição dele foi ter escrito, em substituição ao documento elaborado por Nadal, o De Ratione et Ordine Studiorum Colegii Romani, apesar de ter ficado incompleto. Mas, é a partir de 1584 que definitivamente os dirigentes da Companhia, através de seu Geral Cláudio Acquaviva, decidem realizar um plano de estudos para todos os colégios e universidades, uniformizando, dentro das possibilidades, a educação tanto dos futuros jesuítas como dos estudantes externos no mundo todo. Franca informa que entre 8 de dezembro de 1584 e agosto de 1585, uma comissão de seis padres das principais províncias da Europa (Portugal, Espanha, França, Áustria, Alemanha e Itália) se reuniram em Roma para elaborar um regulamento único e universal. O resultado do trabalho da comissão de notáveis veio à luz em 1586 e imediatamente foi mandada para todas as províncias da Companhia para ser experienciada, na prática, nos colégios e universidades. Em 1591 uma nova comissão, composta por três dos seis membros da comissão de 1584/85, examinou as respostas vindas das províncias, agregando ao novo documento as críticas e sugestões. Em 1592, o Geral Acquaviva enviou novamente às províncias o regulamento com o título de Ratio atque Institutio Studiorum, Romae, un Collegio Soc. Iesu, ano Dni, 1591. Este documento, informa Franca, teve um caráter legal para ser utilizado imediatamente na prática, ainda que não de modo definitivo: o Geral orientava para que pusessem em execução o novo sistema de estudos durante três

anos, no fim dos quais remetessem a Roma os resultados desta experiência decisiva para sua promulgação final (Idem, ibidem, p. 11). Uma definitiva comissão se reuniu em 1598 em Roma para apreciar as novas críticas e sugestões e, em 8 de janeiro de 1599, finalmente o Geral Acquaviva mandou uma circular para todas as províncias acompanhada do Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu, informando que já não se tratava de um projeto de estudos, mas de um plano de estudos promulgado na forma de uma lei. Para mostrar que a síntese foi uma necessidade colocada para os membros da última comissão, Franca informa que do documento de 1591 para o de 1599, reduziu-se de 400 para 208 páginas e o número total das regras baixou de 837 para 467. O documento que define o plano de estudos para os colégios da Companhia de Jesus é normativo, prescrevendo regras para todos os envolvidos no processo educativo, desde o Provincial, o Reitor e o prefeito de estudos, passando pelos professores dos vários cursos e níveis e terminando com as regras para os estudantes e suas diferentes opções de organização. E a primeira conclusão a que se chega quando se acompanha, mesmo que de forma sucinta, a história do plano oficial de estudos da Companhia de Jesus, é que se trata de um documento filho da experiência. Os colégios jesuíticos, abertos aos jovens em geral, público e gratuito para os estudantes, dispensava uma educação realmente séria e exigente, o que se pode perceber analisando as regras dos cursos de Humanidades, Filosofia e Teologia do Ratio Studiorum.. Nas terras em missão, principalmente, o colégio além de desempenhar seu papel educativo, era o centro administrativo, ao qual as casas, igrejas, fazendas, reduções estavam subordinadas. O colégio era assim uma espécie de pólo irradiador de uma cultura, que se traduzia tanto na educação escolar como na própria organização daquele instituto religioso. A cultura irradiada era a cristã-ocidental, que por ser a única verdadeira, no contexto do século XVI, deveria ser disposta e, se fosse o caso, imposta àqueles que não partilhavam dela. Os gentios e os infiéis deveriam ser reduzidos à verdadeira fé; essa a síntese do trabalho dos missionários jesuítas; esse o objetivo último da educação e dos colégios jesuíticos nas terras em missão. Tanto os colégios como o Ratio não nasceram prontos com sua configuração final. Se se tomar a definição aristotélica de que a natureza de uma coisa é o seu estágio final, então somente depois de dezenas de anos é que a Companhia de Jesus assumiu sua forma definitiva e definiu sua natureza, pois foi com o tempo e com inúmeras experiências que a

atividade educacional se tornou fundamental para a ordem jesuítica, compondo, historicamente, uma racionalidade própria a serviço das coroas cristãs num mundo que se expandia rapidamente. Referências bibliográficas ANCHIETA, José de. Cartas informações, fragmentos históricos e sermões. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988. Cartas Jesuíticas. BAPTISTA, António. A correspondência de Luís Fróis. http://www.loriente.com/rm2000junhog.html. Acesso em 11.09.2003. CARDOSO, Armando, SJ. (org). Cartas de Santo Inácio de Loyola. Volume 3. São Paulo: Loyola, 1993. CONSTITUIÇÕES da Companhia de Jesus e NORMAS Complementares. São Paulo: Loyola, 1997. LEITE, Serafim (org). Monumenta Brasiliae. Volume IV (1563-1568). Roma: A Patribus Eiusdem Societatis Edita, 1960. Monumenta Historica Societatis Iesu, v. 87. RATIO atque Institutio STUDIORUM Organização e plano de estudos da Companhia de Jesus. In: FRANCA, Leonel, O método pedagógico dos jesuítas. Rio de Janeiro: Agir, 1952. FRANCA, Leonel. O método pedagógico dos jesuítas. Rio de Janeiro: Agir, 1952. (edição recebida via internet) LOPES, António (A). D. João III e Inácio de Loyola. IN: Brotéria. Vol. 134, Porto: Porto Médico, 1992, pp. 64-85. RODRIGUES, Francisco. A formação intellectual do jesuíta leis e factos. Porto: Magalhães & Moniz, 1917.