A habitação própria solução do problema habitacional?



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Raul da Silva Pereira* Análise Social, vol. XIX (77-78-79), 1983-3., 4. 5., 737-741 A habitação própria solução do problema habitacional? 1. UMA TENDÊNCIA RECENTE A compra e a construção directa de habitações para uso próprio desenvolveram-se consideravelmente em Portugal nos últimos anos. Basta dizer que no quinquénio de 1976-80 foram contratados com as instituições de crédito que financiam estas operações cerca de 140 000 empréstimos, no valor total de 86 milhões de contos. A média anual do número de contratos entre 1978 e 1980 excedeu os 34 000, atingindo-se o máximo em 1980, com quase 39 000. Trata-se de um facto recente, cujas causas são relativamente simples de identificar, mas cujas consequências ainda se não conhecem em toda a sua extensão, com vista a poder avaliar-se a sua real aptidão para resolver o problema habitacional português. Em primeiro lugar, as causas. São elas, fundamentalmente, a pressão resultante da falta de habitações para arrendar (fruto do desinteresse pelos investimentos desta natureza) e o estímulo dos regimes de crédito com juros bonificados, criados a partir de 1976. Naturalmente que o desejo de possuir casa própria vem de longe melhor diríamos, talvez, que vem de sempre. Difícil de realizar nas zonas urbanas, tanto mais difícil quanto mais perto dos grandes centros, nem por isso as populações, sobretudo as oriundas de meios rurais, deixaram de acalentar o sonho de terem a sua própria casa. Mas foi preciso esperar pelo regime jurídico da propriedade horizontal, o qual veio a tornar possível a individualização da propriedade dos vários fogos que compõem um imóvel urbano, criando o sistema do condomínio. Depois, o desinteresse pela propriedade urbana, gerado pela fixidez das rendas, em período inflacionista, e as facilidades de crédito aos compradores de fracções, criadas em parte para evitar o colapso da indústria da construção, completaram o quadro que conduziu à generalização do sistema. 2. O PERFIL DOS COMPRADORES Para uma análise, mesmo sucinta, deste tema é importante conhecer-se o perfil do comprador 1 de habitação para uso próprio. Recorremos para isso a um trabalho publicado pelo Gabinete de Planeamento e Controlo da Habi- * Caixa Geral de Depósitos. 1 Por uma questão de simplificação, designaremos por compradores as pessoas que compram ou constróem directamente a sua própria casa. 737

tacão e Urbanismo e baseado numa amostra de cerca de 3000 processos de empréstimo contratados em 1977 e 1978 2 com a Caixa Geral de Depósitos e o Crédito Predial Português. Eis as principais conclusões desse estudo: As categorias socioprofissionais de compradores mais representativas são os empregados de escritório (47,9%), os funcionários públicos (19,7%) e os operários industriais (16,1%) o que significa que cerca de 2/3 são trabalhadores do sector terciário ou exercendo funções dessa natureza. Os produtores e trabalhadores agrícolas representam apenas 1,3%. A análise dos rendimentos dos agregados familiares indica os estratos com solvabilidade ligeiramente superior à média com os que mais recorrem ao crédito para habitação própria. Cerca de 2/3 das habitações dizem respeito a andares e 1/3 a moradias; mas os andares representam 88% no distrito de Lisboa (99,1% na cidade) e 82,3% no distrito de Setúbal. As aquisições concentram-se sobretudo nas maiores zonas urbanas: distritos de Lisboa (44,3%), do Porto (23,4%) e de Setúbal (13,8%). Muitas outras conclusões de interesse foram apuradas, mas, na impossibilidade de alongar a presente comunicação, remetemos o leitor para a fonte já citada. Apenas uma observação mais: o Estado e o Banco de Portugal subsidiavam em média, respectivamente, 13,3% e 7,7% do custo total das habitações, ou seja, no conjunto, cerca de 1/5 do referido custo. Se fosse necessário traçar um «retrato-roôot» do comprador de habitação própria, teríamos, reunindo as situações mais frequentes, um empregado de escritório com a idade de 35 anos, rendimentos acima da média nacional, agregado familiar de 3 pessoas, vivendo na área da Grande Lisboa, candidato a um andar com 3 assoalhadas. Caracterizado o perfil médio do adquirente de casa própria, algumas conclusões parecem fáceis de tirar: a aquisição de habitações permanece limitada a certos estratos da população com rendimentos acima da média; só excepcionalmente abrange a população activa agrícola; é iniciativa tomada por pessoas com vida supostamente «estabilizada» (2/3 com idades superiores a 30 anos); concentra-se nos grandes centros urbanos e seus subúrbios. Não será, pois, demasiado forçada a conclusão de que não se trata de uma solução generalizável à grande maioria da população portuguesa. 3. VANTAGENS E INCONVENIENTES O anseio pessoal e familiar para aquisição de casa própria é também sentido em termos de segurança. Representa a constituição de um património que pode ser deixado aos filhos, ou simplesmente traduzir-se na redução de encargos para uma velhice mais desafogada. Uma tradição nacional de falta de protecção na terceira idade e a ausência ou insuficiência histórica dos esquemas de segurança social pesam certamente neste estado de espírito; como deverá pesar também um certo ruralismo de parte da população, o desejo ancestral de possuir bens de raiz* Mas estes sentimentos nem sequer são exclusivos do nosso meio. Em sociedades muito mais industrializadas, na Europa e na América, encontra-se, 2 «O crédito bonificado à aquisição de casa própria em 1978 análise económica e sociológica», in 738 Estudos Diversos, n. 2/79, Gabinete citado, MHOP, Dezembro de 1979.

embora com algumas diferenças de significado, ò mesmo desejo de habitação própria. Esta sensação de segurança e de riqueza patrimonial (e as respectivas consequências materiais, como é evidente) constitui, por certo, a maior vantagem de que os compradores usufruem. Mas haverá também inconvenientes? A população urbana não tem, em princípio, a rigidez de localização da população rural. A exploração da terra referimo-nos à terra própria liga o trabalhador rural a uma habitação integrada na própria exploração agrícola ou próximo dela. Por isso, a habitação própria integrada na exploração agrícola familiar é tudo quanto existe de mais natural. Mas nas cidades a situação é diferente. O trabalhador das fábricas ou dos escritórios muda com alguma frequência de local de trabalho. O desejo de promoção social e a evolução das próprias empresas conduzem a esta mudança. A habitação própria pode tornar-se assim um obstáculo à evolução da vida familiar. Com efeito, a transmissão de habitações é complexa do ponto de vista processual, revestindo-se de uma quase solenidade, pouco compatível com as facilidades requeridas pela sua troca frequente. Além disso, as pessoas ligam-se com alguma afectividade assim acontece pelo menos em Portugal aos bens próprios, nos quais, aliás, investem em melhorias que pressupõem uma permanência continuada. Por estes e outros motivos, as famílias só trocam a sua própria casa quando se vêem estritamente compelidas a fazê-lo. E, assim, as mudanças de local de trabalho, mesmo em distâncias que podem atingir algumas dezenas de quilómetros, são resolvidas com o alongamento dos transportes. Alongamento que significa despesa e sacrifício: a viatura própria para os mais afortunados, as longas permanências nos transportes colectivos para os restantes. E, assim, centenas, por certo milhares de quilómetros de percursos cruzados se fazem diariamente apenas porque as pessoas não conseguem facilmente adequar o local da habitação ao local de trabalho. A mesma rigidez se depara perante novas necessidades de espaço, derivadas do aumento do agregado familiar, geralmente por nascimento de filhos ou necessidade de agregar ascendentes idosos. Finalmente, a casa deixada aos descendentes: seria mais um factor de imobilidade social e geográfica, se as novas gerações não trouxessem consigo a força da inovação. Permanece, no entanto, como valor patrimonial valor de troca, com vista a novos projectos de vida. 4. O CONDOMÍNIO NOVA RELAÇÃO SOCIAL A habitação própria em andares supõe a gestão conjunta do imóvel pelos proprietários das respectivas fracções, ou seja, a gestão do condomínio. Trata-se de uma nova relação social, criada por força do estatuto da propriedade horizontal. Legislação própria regula os principais actos de gestão e a forma como a mesma deve funcionar, a partir da assembleia de condóminos e da eleição da administração do prédio. Embora reduzida geralmente ao indispensável, esta forma de relação entre os vizinhos de um mesmo prédio apresenta aspectos positivos, desconta- 739

das naturalmente as vicissitudes próprias de todas as formas de convivência humana. Nos imóveis modernos, as pessoas desconhecem-se praticamente, quer pela maior dimensão dos edifícios, quer pelo estilo de vida dos habitantes. A convivência entre vizinhos, ainda hoje observável nos bairros pobres, não existe normalmente nestes edifícios. Por isso, tudo quanto se faça para intensificar as relações entre as pessoas, fazendo-as sentir o que têm em comum, será altamente positivo. E fazer parte de um conjunto de pessoas com interesses numa propriedade comum a limpeza, a segurança, a conservação, etc. é uma forma de inserção social, a contrapor ao individualismo frequente de vizinhos que pura e simplesmente se desconhecem. Mas também se deve reconhecer que se trata de uma convivência forçada. Não existe alternativa para as divergências, se elas constituírem obstáculo a decisões fundamentais para a defesa dos interesses comuns. E os problemas mais sérios estarão ainda porventura para aparecer, quando a deterioração dos imóveis obrigar a ratear pelos condóminos despesas de reparação avultadas. Há, porém, uma situação em que a gestão do condomínio pode assumir aspectos particularmente graves. Tal situação verifica-se quando alguns condóminos arrendam as suas fracções, passando portanto a ser senhorios. Em relação a estes, altera-se profundamente a solidariedade de interesses, podendo mesmo permanecer alheios à gestão do prédio, sobretudo se a desactualização das rendas se processar com rapidez. Em relação ao inquilino, é bem preferível que o senhorio seja dono do prédio a que seja dono do andar. Para os problemas comuns do imóvel, na parte em que afectam uma fracção alugada, o inquilino do condómino fica dependente da posição que este assumir nas suas relações com os outros condóminos. E se os próprios condóminos não conseguem muitas vezes fazer ouvir a sua voz na gestão do património comum, que dizer dos inquilinos aos quais eles tenham eventualmente arrendado as suas fracções? Na verdade, a própria regulamentação dos condomínios não considera estas situações. Por isso, a sua revisão deveria ser feita, tendo em conta os aspectos económicos e sociológicos, à luz da experiência dos últimos anos. 5. O HABITAT DO FUTURO A apreciação da habitação própria como modelo das soluções aconselháveis está profundamente dependente das considerações de espaço e de tempo a que nos reportamos. É certo que podemos analisar a questão limitando-a aos países europeus industrializados ou em vias de industrialização (para maior aderência ao meio em que vivemos em Portugal), mas, ainda assim, há que distinguir entre as zonas rurais e as concentrações urbanas. Pensar a casa própria integrada numa exploração agrícola familiar não é o mesmo que pensá-la numa pequena cidade de província com vida própria, ou num «dormitório» suburbano de uma grande cidade. Isto no que se refere ao espaço. Quanto ao tempo, a análise é ainda mais difícil, porque, se é certo que podemos conhecer em certa medida o passado, já quanto ao futuro os cenários imaginados serão sempre aleatórios. Mas é precisamente em relação ao futuro que o problema nos interessa 740 sobremaneira. E por uma razão muito simples: as habitações são bens dura-

douros, construídos para cinquenta, cem ou mesmo mais anos. A sua implantação é, por assim dizer, definitiva quanto à utilização do solo. E talvez porque o cultivo da terra continue a figurar como «actividade menor» da vida económica, nem sequer as casas velhas e abandonadas são demolidas para restituir o seu solo à agricultura. Certo é que as realizações urbanas marcam a paisagem, a ponto de ainda hoje existirem em Jericó as ruínas da cidade mais antiga, construída vai para 10 000 anos. A transformação do solo para fins urbanos é uma transformação irreversível. As decisões de construir que neste momento estão a ser tomadas, as obras que prosseguem, tudo isso está portanto a criar compromissos para o futuro, a condicionar o estilo de vida das novas gerações. E, no entanto, a vida futura poderá obrigar a novo tipo de relações entre o homem e o seu habitat. Obrigará, por certo. O aumento da população, o congestionamento das grandes cidades, a crise energética e, de um modo geral, o esgotamento das matérias-primas não renováveis, a poluição crescente do planeta eis apenas alguns indicadores de mudanças que hão-de reflectir-se no habitat humano. 6. UM ESTUDO NECESSÁRIO As soluções rígidas, como a da habitação própria, não contribuem para a adaptação do homem a novas situações. Pelo contrário, dificultam o funcionamento das cidades e promovem esbanjamento dos recursos. A habitação própria nas áreas urbanas terá por isso de ser repensada, tendo em conta uma visão prospectiva da vida económica e social, condicionada por algumas limitações já hoje conhecidas. Diversas iniciativas poderiam entretanto ser tomadas, tais como: Criar formas de património imobiliário com representação através de títulos facilmente transaccionáveis; Simplificar as transacções de casas, com vista a facilitar as trocas de fracções ou moradias; Fomentar a construção (com ou sem finalidade lucrativa) de habitações para arrendar; Criar regras especiais para o arrendamento de fracções em prédios sob o regime de propriedade horizontal; Assegurar transitoriamente, através de instituições apropriadas, a gestão dos imóveis em propriedade horizontal com problemas especiais. Estes e outros aspectos justificariam um estudo aprofundado e um debate amplo sobre a realidade da habitação própria em Portugal, suas virtudes e limitações, sua contribuição possívelpara a solução do problema habitacional português contribuição possível que fica longe do que é necessário para a resolução do problema ao nível do conjunto da população. 741