A RESPONSABILIDADE DO SUJEITO, A RESPONSABILIDADE DO ANALISTA E A ÉTICA DA PSICANÁLISE



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Transcrição:

A RESPONSABILIDADE DO SUJEITO, A RESPONSABILIDADE DO ANALISTA E A ÉTICA DA PSICANÁLISE Maria Fernanda Guita Murad Pensando a responsabilidade do analista em psicanálise, pretendemos, neste trabalho, analisar sua articulação com o que Lacan chamou de responsabilidade do sujeito. A responsabilidade do analista, podemos vê-la ligada à função de desejo do analista. Como sabemos, o sujeito aparece na relação transferencial entre analista e analisando. Em Lacan, vemos a transferência como entendida a partir do lugar do a, o objeto parcial, o ágalma, na relação de desejo, na medida em que ela própria é determinada no interior da relação de amor. Mesmo que o sujeito não o saiba, é no outro que o a funciona, sendo este um efeito irredutível da situação de transferência. Para Lacan, conforme descreve no seminário sobre a transferência, em 1960, o desejo do analista e também sua responsabilidade consiste na percepção da posição do sujeito na situação analítica:...é no próprio princípio da situação que o sujeito é introduzido como digno de interesse e de amor, éroménos. É para ele que se está ali. Este é o efeito se podemos dizer manifesto. Mas existe um efeito latente, que está ligado a sua não-ciência, a sua insciência. Insciência de quê? daquilo que é, justamente o objeto de seu desejo de um modo latente, quero dizer, objetivo, ou estrutural. Este objeto já está no Outro, e é na medida em que é assim que ele é, quer o saiba, quer não, virtualmente constituído como érastès. Simplesmente por esse fato ele preenche essa condição de metáfora, a substituição pelo érastes do éroménos, que constitui em si mesma o fenômeno do amor... É aí que se coloca a questão do desejo do analista, e, até certo ponto, de sua responsabilidade. (LACAN, Seminário, livro 8, a transferência, p.195). Para Lacan, este é o amor de transferência. E o analista deve estar ciente disso. É se percebendo nesse lugar que o analista deve exercer sua função de desejo do analista, procedendo como lugar de objeto causa de desejo, não permanecendo, assim, no lugar de objeto parcial para o paciente. Quando Lacan fala que quem resiste é o analista, é 1

justamente prevenindo quanto ao risco do analista permanecer enquanto sujeito no decorrer da análise. Nisso consiste sua responsabilidade nesse âmbito da análise. Algumas referências sobre a contratransferência citadas por Lacan no seminário sobre a angústia, em 1962, também tratam de delimitar a responsabilidade do analista. O autor chega a sugerir que alguns analistas assumem uma responsabilidade total, exagerada, que segundo ele pode criar alguns problemas. Sobre um artigo de Margaret Little, A Resposta Total do Analista, Lacan comenta: Ela quer apenas considerar a resposta total do analista, ou seja, tudo tanto o fato de ele estar ali como analista, e de poderem escapar-lhe coisas de seu próprio inconsciente, quanto ao fato de que, como todo ser vivo, ela experimenta sentimentos durante a análise, e de que, por último ela não o diz assim, mas é disso que se trata, sendo o Outro, ela está numa posição de inteira responsabilidade. Portanto, é com esse imenso Total de sua posição de analista que ela pretende expor-nos, honestamente, o que concebe ser a resposta do analista (LACAN, seminário, livro 10, a angústia, p.157). Contudo, com referência à angústia do analista, Lacan descreve que esta pode ser a mola propulsora da transferência. No texto dessa mesma autora, Lacan comenta uma passagem em que uma intervenção da analista evidenciou para a paciente que havia na analista algo chamado angústia (id.,p.159). O que afeta o sujeito e causa a transferência é a percepção da angústia do analista, segundo o autor. Lacan afirma que a angústia do analista designa na análise o lugar da falta. A angústia, este enxerto, diz Lacan, abre uma dimensão que permite ao sujeito apreender-se como falta. Assim, pode haver a transferência. Nesse caso: É que se introduziu, por uma via involuntária, o que está em questão na análise, seja em que ponto for, nem que seja em seu término, ou seja, a função do corte. (ib.,p.159). Para o autor, a angústia do analista é um efeito involuntário, mas que funciona como uma interpretação, como corte e, portanto, constitui um ato analítico. A função do corte é fundamental na análise já que esta consiste em levar em conta a experiência da falta. Sobre a experiência da análise, Lacan postula: Trata-se do limite em que se instala o lugar 2

da falta (ib.,p.161). Assim, as interpretações, podemos dizer que, mesmo involuntárias por parte do analista, também implicam em sua responsabilidade. A responsabilidade do analista começa, portanto, na transferência, na medida em que é ele, como lugar do objeto causa de desejo, que funda o sujeito que se dirige a ele. A função de desejo do analista está nessa vertente. Também, como vimos, a escolha voluntária ou involuntária da interpretação por parte do analista, a partir do discurso do paciente, constitui também sua responsabilidade, pois é na função do corte que reside na interpretação que está o objetivo final da análise. Quanto à responsabilidade do sujeito, Lacan é bastante contundente ao afirmar: Por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis. (LACAN, A Ciência e a Verdade, Escritos, p.873) grifo nosso. Nesse texto, em 1966, o autor destaca o sujeito da psicanálise. Afirma que não há ciência do homem porque o homem da ciência não existe, mas apenas seu sujeito. Ou seja, o discurso da ciência tem um objeto possível, um saber soberano, enquanto o discurso da psicanálise tem como objeto o a, onde o sujeito se constitui na relação com o outro a partir da falta, da falta de um significante que o defina, onde o saber é sempre um semi-dizer. Sobre o texto de Freud, O chiste e sua relação com o inconsciente, Lacan explicita a verdade do sujeito, o chiste (...) simboliza uma verdade que não diz sua última palavra (id, Função e Campo da Fala e da Linguagem, Escritos, p.271). Conforme Lacan, no texto supracitado, o sujeito está desde sempre implicado no pensamento inconsciente: O que ensinamos o sujeito a reconhecer como seu inconsciente é sua história ou seja, nós o ajudamos a fazer a historicização atual dos fatos que já determinaram em sua existência um certo número de reviravoltas históricas. Mas se eles tiveram esse papel, já foi como fatos históricos, isto é, como reconhecidos num certo sentido ou censurados numa certa ordem. ( LACAN, Função e Campo da Fala e da Linguagem, Escritos, p.263) grifo nosso. O autor demarca, assim, a implicação do sujeito na construção de sua subjetividade. Nessa passagem do texto de Lacan, podemos ver a responsabilidade do sujeito sobre seu pensamento inconsciente desde a sua constituição enquanto tal. O sujeito para a psicanálise é inapreensível, é evanescente. Aquilo que nos surpreende deve ser tornado nosso. O inconsciente é um pensamento e não é estranho 3

ao sujeito do pensar. Isso pensa. Nem o sujeito nem o pensamento exigem a consciência. Conforme Lacan, em 1969: Ali onde penso não me reconheço, não sou é o inconsciente. Ali onde sou, é mais evidente que me perco. (LACAN, Seminário, livro 17,O Avesso da Psicanálise, p.96). Voltando a Freud, vemos que já em 1917, no texto Luto e Melancolia, ainda apoiado na primeira tópica, o autor faz uma alusão sobre o que poderíamos chamar de uma responsabilização do sujeito que ocorreria na melancolia: Quando, em sua exacerbada autocrítica, ele se descreve como mesquinho, egoísta, desonesto, carente de independência, alguém cujo único objetivo tem sido ocultar as fraquezas de sua própria natureza, pode ser, até onde sabemos, que tenha chegado bem perto de se compreender a si mesmo; ficamos imaginando, tão somente, por que um homem precisa adoecer para ter acesso a uma verdade dessa espécie. (FREUD, Luto e Melancolia, p. 278-279) grifo nosso. Parece que o tema da escolha da neurose e a reação terapêutica negativa também participam da responsabilidade do sujeito. Desde 1894, em As Neuropsicoses de Defesa, como também em 1923, em O Ego e o ID, Freud trata como escolhas feitas pelo Eu, o caminho tomado pela doença: O Eu leva muito menos vantagem escolhendo a transposição do afeto como método de defesa do que escolhendo a conversão histérica da excitação psíquica em inervação somática. (FREUD, As Neuropsicoses de Defesa, p.67) grifo nosso. Há certas pessoas que se comportam de maneira muito peculiar durante o trabalho de análise. Quando se lhes fala esperançosamente ou se expressa satisfação pelo progresso da análise, elas mostram sinais de descontentamento e seu estado invariavelmente se torna pior.(...) Exibem o que é conhecido como reação terapêutica negativa. (FREUD, O Ego e o Id, p. 65) grifo nosso. Em verdade, pode ser precisamente este elemento da situação, a atitude do Ideal de Eu, que determina a gravidade de uma doença neurótica. (id., p. 66) grifo nosso. 4

Com referência às reações negativas, em 1918, Freud as compara com a atitude das crianças frente às proibições. Cita o caso clínico do Homem dos Lobos para ilustrar esse mecanismo psíquico. Ressalta que as crianças quando são repreendidas por algum motivo (...), repetem-no uma vez mais depois da proibição, antes de parar. Dessa maneira, conseguem, ao mesmo tempo, parar aparentemente por vontade própria e desobedecer à proibição. (FREUD, História de uma Neurose Infantil, p.89). Observamos nessa comparação feita pelo autor uma escolha do sujeito diante de um assujeitamento. Em 1914, em A História do Movimento Psicanalítico, Freud aborda o tema da vantagem da doença, afirmando que: A psicanálise cedo reconheceu que todo sintoma neurótico deve sua possibilidade de existência a uma transação. (id., p.67). Ou seja, todo sintoma deve de alguma forma obedecer às exigências do Eu, deve oferecer alguma vantagem, ter alguma aplicação proveitosa, ou não se sustentaria. Sendo assim, parece que o autor já implica o sujeito nessa transação. Corroborando essa premissa, da implicação do sujeito no sintoma, Freud em 1923, dá bastante ênfase à responsabilidade do sujeito como aparece em sua análise sobre o conteúdo dos sonhos. Conforme o autor: O problema da responsabilidade pelo conteúdo imoral dos sonhos não mais existe para nós, como antigamente existia para escritores que nada sabiam dos pensamentos oníricos latentes e da parte recalcada de nossa vida mental. Obviamente, temos que nos considerar responsáveis pelos impulsos maus dos próprios sonhos. Que mais se pode fazer com eles? A menos que o conteúdo do sonho seja inspirado por espíritos estranhos, ele faz parte de seu próprio ser. Se procuro classificar os impulsos presentes em mim, segundo padrões sociais em bons e maus, tenho que assumir responsabilidade por ambos os tipos; e, se em defesa digo que o desconhecido, inconsciente e recalcado em mim, não é meu Eu, não estarei baseando na psicanálise minha posição, não terei aceito suas conclusões (...) Aprenderei, talvez, que o que estou repudiando não apenas está em mim, mas age também desde mim para fora. (FREUD, Observações sobre a Teoria e a Prática da Interpretação de Sonhos, p. 165) grifo nosso. Segundo o autor, o Eu de que se trata aqui se refere ao recalcado, ao inconsciente e ao desconhecido, parecendo ser o Eu (je), o sujeito do inconsciente. Freud comenta que esse conteúdo mau não pertence ao Eu, pertence a um Id mas 5

sobre o qual o Eu se forma. O Eu desenvolvido a partir do Id forma com ele uma unidade, Freud continua dizendo: Esse Eu (...) é apenas uma parte periférica dele. (FREUD, id., p.166) grifo nosso. Contudo, a responsabilidade do sujeito de que se trata aqui é metapsicológica. As categorias da responsabilidade legal, relacionadas à legislação dos nossos códigos jurídicos, dizem respeito a uma outra ordem de responsabilidade. Freud conclui: O médico deixará ao jurista construir para fins sociais uma responsabilidade que é artificialmente limitada ao ego metapsicológico. (FREUD, ib, p.167). E refere, ainda, que as consequências práticas dessa construção jurídica, estariam em contradição com os sentimentos humanos. Ou seja, a tentativa de conciliar a responsabilidade do sujeito metapsicológico com a responsabilidade jurídica é quase sempre falha. Sendo assim, observamos que Freud, desde os primórdios de sua obra, implicava o sujeito em sua posição subjetiva como responsável até mesmo por sua neurose. Podemos depreender daí que o sujeito é responsável desde o início pela sua condição, pelo tipo de assujeitamento ao qual está engajado. Freud, em A Questão da Análise Leiga, em 1926, retoma literalmente o tema da responsabilidade do sujeito. O autor irá dizer que o paciente que sofre e queixa-se de seus males a ele, no entanto, não quer ser curado. Conforme o autor: O paciente deseja ser curado mas ele também deseja não ser. (id.,p.251) grifo nosso. A questão da divisão do sujeito o coloca em outro regime de responsabilidade que não é o social. Neste aspecto, podemos ver o ganho primário e o ganho secundário da doença, a reação terapêutica negativa ou, no dito de Lacan, o gozo do sintoma, como responsabilidade do sujeito. Com referência a isso, Freud faz uma observação: Eles se queixam da doença, mas a exploram com todas as suas forças; e se alguém tenta afastá-la deles, defendem-na como a proverbial leoa com seus filhotes. (FREUD, A Questão da Análise Leiga, p.252) Na Conferência XXXII, em 1933, fazendo considerações sobre a pulsão de morte, Freud chama a atenção para os motivos da resistência, onde descreve a existência de uma profunda necessidade de punição, que classifica como masoquista. Para o autor, isso seria o pior inimigo do trabalho terapêutico: Ela obtém satisfação no sofrimento que 6

está vinculado à neurose, e por essa razão aferra-se à condição de estar doente. (FREUD, Conferência XXXII, p.135) grifo nosso. Conclui dizendo que : Parece que esse fato, uma necessidade inconsciente de punição está presente em toda doença neurótica. (id., p135). Nesse contexto podemos observar o que Lacan chamou de gozo do sintoma, que estaria referido à responsabilidade do sujeito tal como o próprio Freud a preconizou. Lacan, no seminário A Ética da Psicanálise, em 1959, formula: A única coisa da qual se pode ser culpado é de ter cedido de seu desejo. (id, p.385) grifo nosso. Isso seria o que pode se chamar de traição para o autor. A ética da psicanálise é a ética do desejo. Ceder de seu desejo significa trair sua via, trair a si mesmo, podemos dizer, engessá-lo no sintoma. Ao ceder de seu desejo, o sujeito abre mão de um saber, permanece no gozo do sintoma, ao invés de se enveredar pelo desejo de saber, este sim, desejo que desliza e que possibilita novos posicionamentos para o sujeito. Portanto, vemos que a responsabilidade do analista deve andar de mãos dadas com a responsabilidade do sujeito. Se a responsabilidade do sujeito consiste em última instância, em sua posição de sujeito, e o que a análise busca é uma certa inquietação do sujeito, a possibilidade de implicá-lo de forma a reconhecer essa responsabilidade, vemos que a ética da psicanálise é justamente o que dará sustentação a essa relação. A responsabilidade do analista, seu desejo de saber, enquanto preservando a função do desejo do analista, deixando assim o inconsciente falar, possibilita que o sujeito em análise não mais ceda ao seu desejo, mas implicado em seu discurso, é chamado para saber se quer aquilo que deseja. Vemos, no entanto, que no momento atual a responsabilidade do sujeito vem sendo medicalizada e juridicalizada. A sociedade contemporânea destituiu do sujeito sua potência, atribuindo seu destino faustoso ou nefasto a fatores que independem de sua ação. Assim, vemos uma cultura de seres impotentes, cuja angústia é o mal do momento. Portanto, é de suma importância estarmos cônscios do nosso papel enquanto analistas, fazendo prevalecer uma ética que devolve ao sujeito o que lhe é de direito e dever. 7

Referências Bibliográficas: FREUD, S (1894). As Neuropsicoses de Defesa, ESB, v.iii. Rio de Janeiro: Imago..(1914). A História do Movimento Psicanalítico, ESB, v.xiv. Rio Janeiro: Imago..(1917). Luto e Melancolia, ESB, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago..(1918). História de uma Neurose Infantil, ESB, v.xvii. Rio de Janeiro: Imago..(1923). O Ego e o Id, ESB, v.xix. Rio de Janeiro: Imago..(1923). Observações sobre a Teoria e a Prática da Interpretação de Sonhos, v.xix. Rio de Janeiro: Imago..(1926). A questão da Análise Leiga, ESB, v.xx. Rio de Janeiro: Imago..(1933). Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, ESB, v.xxii. Rio de Janeiro: Imago. LACAN, J. (1959-1960). Seminário, livro 7: A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar..(1960-1961). Seminário, livro 8: A Transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar..(1962-1963). Seminário, livro 10: A Angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar..(1969-1970). Seminário, livro 17: O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar..(1966). Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise, Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar..(1966). A Ciência e a Verdade, Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Rio, 8 de dezembro de 2010. A responsabilidade dos artigos assinados é dos seus autores. 8