PLATÃO E ROUSSEAU: PRINCÍPIOS E JUSTIFICATIVA DA JUSTIÇA



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PLATÃO E ROUSSEAU: PRINCÍPIOS E JUSTIFICATIVA DA JUSTIÇA José Fernandes Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Maranhão, São Luis, Maranhão, Brasil RESUMO Este trabalho é uma exposição sobre os princípios e justificativas da justiça utilizada pelos filósofos Platão e Rousseau. É a partir da compreensão do conceito de justiça que vamos entender nesses autores as formas de governo consideradas as melhores para os homens. A forma de governo justa para Platão e para Rousseau é a democracia. Palavras-chave: justiça; estado de natureza; educação; corrupção. ABSTRACT This study is an exposition of the justice principles and justifications used by philosophers Plato and Rousseau. It is based on the understanding of the justice concept that it is construed in those authors the government forms considered best for mankind. Fair government system for Plato is aristocracy and for Rosseau democracy. Key words: justice; state of nature; education; corruption. INTRODUÇÃO A justiça foi e será um dos grandes temas da filosofia. No percurso da história da filosofia, essa é uma discussão que vem sendo sempre colocada em pauta pelos pensadores desde a Grécia clássica de Platão até a atualidade contemporânea. A abordagem sobre a justiça como problema se dá devido aos desacordos entre princípios e justificativas apresentadas pelos filósofos. Para nos determos com maior segurança e consistência, tal como o problema exige, tomaremos como referência Platão e Rousseau. Neles, apontaremos o princípio e a justificativa empregados por cada um e suas oposições. Cabe-nos também ressaltar que o nosso suporte teórico de Platão será a sua obra A República e, de Rousseau, Contrato Social, o Emilio e o Discurso sobre a Origem e Fundamento da Desigualdade. O Princípio da Justiça: Platão e Rousseau. Iniciaremos, então, a nossa reflexão com Platão. Esse filósofo apresenta, logo no livro I da República, Sócrates como condutor do diálogo que vai perguntar a três outros personagens: Céfalo, Polemarco e Trasímaco, sobre o que é a justiça 1? O primeiro personagem que define a justiça é o ancião Céfalo, logo após ter conversado com Sócrates sobre a serenidade da sua vida e de não temer a morte. Comenta então o ancião com Sócrates: -Portanto, não é esta a definição de justiça: dizer a verdade e restituir aquilo que se tomou (331 d). 1 O termo grego empregado por Platão é dikaiosines que significa justiça, sentimento de justiça ou a prática da justiça. Ver. BAILLY. A. Abrége du dictionnaire Grec Français. e-mail para contato: jfarenaton@uol.com.br Essa definição foi ensinada pelo poeta Simónides ao ancião, sendo a mesma, de origem mítico poético, como é apontado no diálogo e Sócrates não a refuta, apenas afirma não ter sido entendida pelos dialogadores. Céfalo não continua o diálogo, mas deixa para o seu filho Polemarco a continuação da conversa com Sócrates, uma vez que precisa se retirar para terminar o ritual oferecido a Zeus, divindade protetora da sua casa. O segundo personagem a dar a sua definição de justiça é Polemarco. Ao substituir o seu pai na conversa com Sócrates, vai no primeiro momento confirmar que a justiça é o que foi ensinado pelo poeta Simónides: restituir a cada um o que se deve (331 e) Essa afirmação de Polemarco leva Sócrates a questioná-lo quanto ao significado da justiça ser restituir o que se deve, segundo o aprendido do poeta, pois, nem sempre se deve restituir alguém com algo que se tenha tomado emprestado, no caso de se devolver uma arma ao seu devido dono em estado psíquico alterado. Mas, como os poetas falam de forma enigmática, pode ser apenas aparente esse significado restituir o que se deve. Se, no entendimento do poeta, a justiça é restituir e dar o que é devido, então Polemarco conclui que ela seja dar ajuda aos amigos e prejuízo aos inimigos, ou melhor, no dizer de Sócrates: fazer bem aos amigos e mal aos inimigos (332 d). Ora, para Sócrates essa afirmação não pode ser de um poeta como Simónides, pois muitas vezes, os homens cometem erros nos seus julgamentos quando tomam algo por aparência e não por aquilo que é. Nesse caso, podemos fazer mal a um aparente inimigo e fazer o bem a um Revista Científica - Cadernos de Pesquisa 53

aparente amigo 2. Para Sócrates, esse argumento de Polemarco não pode ser o que o poeta tenha ensinado, pois, fazer algo a outro, que exija o executar de uma técnica 3, expressa, por exemplo, na medicina, navegação ou alimentação é sempre exercida em benefício de quem delas precisa, independente de ser ou não amigo. E, praticar uma boa técnica exige um saber e domínio de regras e requer, ainda, certa medida na sua execução, caso contrário, é desmedida e é dessa forma que encontraremos o sinal da justiça no emprego da técnica enquanto idéia de medida e desmedida. Platão toma como exemplo a técnica, como forma de expressão da justiça enquanto uma medida para ser o melhor possível, caso contrário, ela é desmedida e não atingiria seu objetivo; o bem. Por exemplo, a cura nas artes médicas, a boa condução da navegação ou uma alimentação, para a saúde do corpo, são bens a serem atingidos, mas para tanto, dependerá da boa execução da técnica. No parecer de Sócrates, essa afirmação de Polemarco só poderia ter sido de alguns tiranos: Periandro, Perdicas, Xerxes e Isménias de Tebas (336 a) e chegam a conclusão de que a justiça não era o que Polemarco pensava. Logo em seguida, um novo dialogador, o sofista Trasímaco, apresenta-se para debater com Sócrates sobre a questão. No primeiro momento, Trasímaco pede para Sócrates dar a sua definição de justiça, mas Sócrates se recusa a fazer o que o sofista pede, uma vez que estão se esforçando para compreendê-la. Então, Trasímaco define a justiça: Afirmo que a justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte (338 a). Se a justiça é a conveniência do mais forte, resta saber o que significa esse mais forte para o sofista. Pelo discurso, é o governante que promulga a lei considerada a melhor para ele e é essa que deve ser cumprida pelos súditos. Temos um, porém nessa questão enquanto governante que elabora as leis em seu benefício. Para Platão, o governo ou a arte de governar é uma técnica e, sendo uma técnica, não visa o bem de quem governa, mas do grupo. Logo ao elaborar leis, essas devem visar o bem de todos, tal qual uma boa técnica portadora de uma boa medida, caso contrário, não é um governo justo nem o uso de uma boa técnica 4. 2 Aqui Platão aponta um problema acontecido com a família de Céfalo: a execução do seu filho Polemarco por um dos Trinta Tiranos que foram empossados no poder de Atenas depois da guerra do Peloponeso. No discurso XII de Lísias, intitulado Contra Erastóstenes, expõe todo o processo. Esse dado é apontado para que se possa entender o porquê de Platão se opor a esse tipo de justiça característica dos tiranos. 3 Técnica é entendida como todo o conjunto de regras aptas para dirigir eficazmente uma atividade produtiva (ligada ao verbo grego poiein = o fazer como fabricação). 4 Sobre esse problema Macintayri (1991, p.85) faz uma importante dife- É utilizando-se do conceito de técnica que Platão vai refutar a definição de justiça do sofista (346 e) já que Trasímaco aceita no argumento que a técnica visa sempre o bem de quem recebe e não de quem a executa Essas três definições são, na verdade, recolhimentos feitos por Platão da noção de justiça que circulavam na Atenas do século IV a.c. O princípio da justiça de Céfalo, como já expormos, é mítico, como ensinavam os poetas. A justiça enquanto fazer bem aos amigos e mal aos inimigos, exposto por Polemarco, fundamenta a forma de governo dos tiranos. Quanto à justiça de o sofista ser a conveniência do mais forte, fundamenta a concepção da democracia Ateniense, onde prevalecia aos mais habilidosos, usar da técnica do discurso ou melhor, da retórica, para convencer a maioria nas assembléias. Essas são as referências de justiça que estão servindo de fundamento para a ação política dos homens, em Atenas do século IV a. C. No meio dessa diversidade de referência, Platão resgata o significado mítico de Thémis e Díke 5 para dar um novo referencial para a justiça que ultrapassasse aos limites circunstanciais da história, enquanto coisas consideradas as melhores para a sociedade, em dado momento de seu desenvolvimento. Deu então a justiça, fundamento metafísico que se expressa no cosmos e na constituição da alma humana. É para mostrar como se dá a justiça enquanto manifestação no macro cosmos que Platão cria a cidade em lógos. Nessa cidade considerada justa, os homens deverão obedecer a princípios da constituição da alma, seguindo suas potencialidades que os possibilitará desempenhar apenas uma tarefa (433 b) e executar uma tarefa, leva os homens a buscarem a perfeição das suas funções na cidade. Essa ordem social beneficiará cada um e conseqüentemente a cidade. Quanto à alma, no exposto por Platão, na República (435 c e 436 b), é que se trata de uma unidade constituída de três partes: uma pela qual compreendemos (mantánomem), outra pela qual irriamo-nos. (tymoímeta) e a terceira pela qual desejamos (epitymoumem). rença entre o sentido da técnica para Trasímaco e para Platão. Para Trasímaco, uma técnica é uma habilidade ou um conjunto de habilidades igualmente disponível para servir aos interesses de qualquer pessoa inteligente e experiente suficiente para empregá-la. Para Platão, a técnica é uma habilidade ou um conjunto de habilidades dirigidas, em seu exercício, ao serviço do bem, um bem do qual o agente tem de ter conhecimento e compreensão genuínos. 5 Thémis é, segundo Bailly (1990), o sentido mais arcaico de justiça, indica a maneira de ser de cada coisa. Essa acepção está ligada à natureza (phisis), ou seja, ao mundo de constituição de cada ser segundo a phisis. Assim, fala-se em uma justiça do homem como de seu próprio ser, que diz respeito à sua natureza, à sua phisis, ou como diríamos hoje, de sua essência. Enquanto Díke, o significado de justiça representa a regra, a norma. Nessa acepção, é utilizada pelos juristas no intuito de estabelecer e fazer valer as coisas consideradas as melhores para a sociedade em dado momento de seu desenvolvimento. 54 Revista Científica - Cadernos de Pesquisa

Essas potências são parte do todo da alma humana, mas sempre terá uma que se sobressairá das demais. É nesse ponto que encontramos as diferenças entre os homens. São essas potências que moverão a alma em direção aos seus objetos desejados. Caberá à cidade educar a todos em suas potencialidades específicas a exercerem uma função de acordo com a potência que mais se destaque na alma. É respaldado nas diferentes tendências de cada homem, que a cidade deverá ser ordenada em estamentos: o dos artesãos, dos guerreiros e dos governantes. Todos deverão ser educados visando o aperfeiçoamento da potência que mais se sobressaia em benefício de todos, só assim, se terá uma cidade justa. Para que esse objetivo seja atingido, a cidade deverá ser governada por homens que sejam capazes de olhar o microcosmo enquanto a alma do homem e o macro enquanto a cidade formada pela diversidade. Só assim, conseguiremos no meio das diferenças manter a unidade. É nessa unidade, constituída pela diversidade das potencialidades da alma se dando nos homens, que encontraremos o sinal da justiça e da injustiça, segundo Platão. Como já anunciamos o segundo pensador que tomaremos como referência para pensar a justiça no seu princípio e justificativa é Jean-Jacques Rousseau. No primeiro livro, Contrato social, Rousseau (1983, p.21), o referido filósofo apresenta o seguinte objetivo: "Quero indagar se pode existir, na ordem civil, alguma regra de administração legítima e segura, tomando os homens como são e as leis como podem ser". Esse objetivo vai nortear o pensamento de Rousseau para encontrar uma forma de governo que leve em conta os homens como são e as leis como podem ser. Só um governo que tenha esse objetivo como princípio é capaz de governar a todos de forma justa. Para verificar as suas indagações, primeiro, vai analisar os fundamentos de algumas formas de governo e observar que os mesmos encontram-se fundamentados em princípios que visam o benefício de poucos; é onde predomina o poder do mais forte. Essas formas de governos são injustas, uma vez que impera o poder da força e a força, por sua vez, não legitima o direito. No pensar de Rousseau, isso é colocar o efeito no lugar da causa. Esse fundamento da força construiu, no percurso da história, uma sociedade com homens em condições desiguais e essas condições, na qual se encontram os homens, não levaram em conta os objetivos considerados por ele; dos homens como são e leis como podem ser. Isso faz com que ele exponha teoricamente uma organização social que leve esse objetivo em conta, só a partir daí é que poderemos encontrar a idéia de justiça por ele pensada. Ora, se o seu objetivo é ver os homens como são para poder encontrar uma forma de governo justa, vai expor no Discurso sobre a origem e fundamento da desigualdade primeira parte o primeiro modo de viver dos homens. Para isso, vai supor que num primeiro momento, os homens vivessem num estado de natureza 6, onde todos vivessem livres, orientados pelo movimento natural da piedade. Essa liberdade vivida nesse estágio, não implicaria na tentativa de um se sobrepor a outro, pois ser e viver de forma livre já impossibilitaria essa condição. Nesse estágio, o homem está submetido apenas aos parâmetros da natureza, na luta pela conservação da vida e não na luta de um contra o outro. Quanto à sua constituição natural, é portador de percepção e sentido 7 que é também comum aos outros animais. São essas as primeiras e quase únicas operações de suas almas. O que vai diferenciálos dos outros animais é a intensidade como que as idéias atuam nas suas ações. Sendo as operações da percepção e do sentido que possibilitam a formação de idéias nos homens e, nessa condição natural sem muitas delas que possam agitar e intensificar as paixões e, conseqüentemente, suas ações, eles viverão apenas a atualidade das suas vidas sem projeções futuras. Nesse contexto, o homem natural não é nem bom nem mau, é destituído desses valores, portanto é um ser amoral Como informa Rousseau (1983, p.251), "que os homens nesse estado de natureza, não havendo entre si qualquer espécie de relação moral ou de deveres comuns, não poderia ser nem bons nem maus ou possuir vício e virtudes, a menos que, tomando estas palavras num sentido físico, se considerem como vício do indivíduo as qualidades capazes de prejudicar sua própria conservação, e virtudes aquelas capazes de em seu favor contribuir". Ora, se nesse estágio, o homem é desprovido de relações morais ou de deveres, então a noção de justiça e injustiça, enquanto regra para conduzir as relações entre eles não existe. Elas passarão a fazer parte da vida deles no momento em que necessitarem estabelecer regras de convivência. Para que este fato viesse a ocorrer, foi necessário 6 Como informa Pinssara (2002) que para Rouseau, o estado de natureza não é um fato concreto, nem ele nem o homem aí inserido podem ser analisados como tais; trata-se de uma suposição metodológica, didática, mas não de uma existência concreta no tempo e no espaço. Essa hipótese abstrata é que irá ajudar o filósofo no conhecimento sobre a sua origem hipotética. 7 Ver no Emílio, mais precisamente na Profissão de fé do Vigário de Saboiano a diferença que Rousseau faz dessas categorias. Revista Científica - Cadernos de Pesquisa 55

que as circunstância naturais criassem obstáculos que colocassem em risco a conservação dos mesmos. Nesse momento, foi necessário que juntassem suas forças em benefício e conservação de todos. Não sendo mais possível viver no estado de natureza, os homens formam "uma associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um unido-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes (ROUSSEAU, 1983, p.32)". Nesse momento, cria-se um corpo político que deverá legislar em benefício de todos. Dessa forma, serão necessárias as leis para legislar as relações entre todos para um bem comum. Então a partir daí, nasce a idéia de justiça e injustiça para os homens. Como argumenta Pinssara (2002) "que a justiça só pode, portanto, decorrer da lei e não procedê-la, uma vez que as leis têm como finalidade o maior bem de todos ao forçar os homens por que iguais a serem livres e justos. Daí decorrer que a justiça é apenas a conformidade às regras estabelecidas pelas leis". Do exposto, então, podemos afirmar que a justiça e a injustiça são noções inexistentes no estado de natureza, pois caracterizam uma relação humana que não se encontra naquele estado. Podemos afirmar que essas noções são categorias fundamentais da percepção das relações humanas. Sendo justiça e injustiça resultados da percepção das relações humanas, Rousseau vai encontrar um problema a mais a ser resolvido: como manter os homens desprovidos de maldade e portanto virtuosos e justos em sociedade, uma vez que a existente os corrompe e os torna injusto pelo uso da força. A saída desse filósofo como de tanto outros está na transformação política e moral dos homens através da educação. Pois as forma como a educação está estabelecida na sua atualidade, só propicia a diferença entre os espíritos cultos e os que não são. Como informa na primeira parte do Discurso Sobre a Desigualdade, para que se tenha uma melhor educação deve-se manter uma uniformidade no que se ensina. Como comenta Pinssara (2002), esse processo de transformação, ao mesmo tempo político e moral, será tema de outro livro, o Emílio ou da Educação, que trata não da educação pública, mas da educação doméstica. Vai procurar nesse texto estabelecer os problemas teóricos da educação à luz de uma reflexão filosófica. Esse é um problema que não aprofundaremos agora por extrapolar o objetivo da nossa reflexão. Quanto à justiça para Rousseau, no primeiro momento é apresentada em seu princípio como resultado dos acordos estabelecidos pelos homens enquanto normas, leis para viver bem uns com os outros em sociedade. Resta, então, saber de onde a idéia de ordem é adquirida pelos homens para colocarem como fundamento da justiça. Em Emílio, na Profissão de Fé do Vigário Saboiano, Rousseau quando trata da religião natural, explica que os homens criam suas idéias via percepção e sensação, na relação com a natureza. Essa natureza encontra-se inserida no universo, onde tudo está bem por ser portador de uma boa ordem e essa ordem, só pode ser fruto da construção de um Ser bom. Para o genebriano, o construtor dessa ordem é Deus, que é bom e jamais seria a causa do mau ou da desordem. Não sendo Deus a causa do mau ou da desordem, esses males só podem ser conseqüência da vida dos homens. Ora, o que se percebe é que a ordem do universo é boa, e tudo que é bom não é injusto. Como argumenta Rousseau (1999, p.385), "a injustiça dos homens é obra deles, e não de Deus. [...] Mas a justiça dos homens é dar a cada um o que lhe pertence e a justiça de Deus é pedir que cada um preste conta do que lhe foi dado". Dessa forma, a justiça enquanto ordem, já se encontra implícita no universo; restou ao homem percebê-la e trazer essa idéia para o contexto de suas relações. Já que Rousseau se propôs buscar uma boa ordem para o homem, então encontra o seu fundamento na natureza do universo, enquanto criação de Deus. Da mesma forma que a ordem da criação é boa para todos, dessa mesma forma, deve ser a ordem social. Onde cada um receba o que é devido numa justa proporção protegido por um acordo estabelecido por todos. A justiça pensada por Platão e Rousseau tem algo comum: a noção de ordem e medida. Mas vão se opor quanto às suas justificativas. Platão expõe que a justiça é algo que já faz parte da constituição do homem, da sua alma que vai se expressar na sua forma de ser. Mas para que isso possa se legitimar em uma sociedade justa é necessário que se eduquem os homens de tal forma que se vise o bem de cada um e, consequentemente, de todos. Esse é um problema semelhante entre esses dois pensadores; a questão da corrupção. Para Platão, uma má educação é causa da decadência das formas políticas por deteriorar a ordem interna do homem, ou melhor, a sua alma. Isso não fica muito longe do pensar de Rousseau, uma vez que uma sociedade que estimule a diferenças na 56 Revista Científica - Cadernos de Pesquisa

formação dos homens só pode ter como resultado uma sociedade desigual e, portanto, injusta. Para Platão, o parâmetro da boa ordem e medida é o cosmos, que deverá ser imitado pelos homens no estabelecimento do equilíbrio interno de suas almas. Mas para que isso possa acontecer, deverão ser todos educados, pondo limite nos desejos e paixões, para que possam viver em harmonia numa cidade justa. Já para Rousseau, a ordem está implícita na natureza criada por Deus, enquanto um bem para todos. Os homens apenas se apossam da idéia dessa ordem, para fundamentar as suas relações em sociedade, uma vez que, o que está contido na natureza de bom para todos, deverá ser conservado. Se essa ordem do universo é boa para todos, sem fazer diferença entre os homens, possibilitando a todos a usufruir dos bens da natureza, dessa mesma forma, deve ser a convenção que os homens estabelecem para eles: deve visar o bem de todos e não de partes. A diferença marcante entre esses dois pensadores é que Platão ao pensar a justiça dessa forma, vai fundamentar uma cidade governada por uma aristocracia de filósofos e Rousseau, por sua vez, vai fundamentar um Estado democrático. REFERÊNCIAS 1. BAILLY, A. Abrégé du dictionnaire grec-français. Paris: Hachette, 1990. 2. LYSIAS. Discours. Tradução de Louis Gernet, Belleslettres. Paris, 1990. 3. MACINTAYRE. Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? Tradução de Marcelo Pimenta Marques. Belo Horizonte: Edições Loyola, 1991. 4. PLATÃO. La republique. Tome. I a X. Traduit. Émile Chambry. Belles-Lettres. Paris. 1996. 5..A República. Tradução de M. H. Pereira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993. 6. PINSSARA. Maria Constança Peres. Rousseau: a política como exercício pedagógico. São Paulo: Moderna, 2002. 7. ROUSSEAU. J-J. Do contrato social. Trad. Lourdes Santos Machado. 3.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 8..Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução de Lourdes Santos Machado. 3.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 9.. Emílio. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Revista Científica - Cadernos de Pesquisa 57