A ETNOGRAFIA COMO POTENCIAL ARTICULADOR PARA A TERAPIA OCUPACIONAL SOCIAL.



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A ETNOGRAFIA COMO POTENCIAL ARTICULADOR PARA A TERAPIA OCUPACIONAL SOCIAL. Autoras: Marina Di Napoli Pastore Universidade Federal de São Carlos / Casa das Áfricas; Denise Dias Barros Universidade de São Paulo/ Universidade Federal de São Carlos/ Casa das Áfricas. 1. Apresentação O presente trabalho faz parte da pesquisa que vem sendo desenvolvida no âmbito do mestrado acadêmico em Terapia Ocupacional. A ênfase aqui é, através de um recorte, desenvolver como foi pensada a metodologia do trabalho em questão, as formas de lidar com o ser outro e do estar-com numa cultura outra. A temática do estudo do mestrado é sobre a noção da infância e o ser criança numa cidade próxima à capital moçambicana. O interesse primeiro surgiu em 2012, após um trabalho realizado com algumas crianças que freqüentavam uma organização Não-Governamental no bairro da Matola A, em Moçambique. Algumas questões foram surgindo, como, por exemplo, como as crianças organizam seu dia-a-dia? Ou quais são as atividades valorizadas por elas e quais as exigidas nas práticas sociais da comunidade? Como são percebidas as tarefas cotidianas? Como as crianças se relacionam entre pares e entre elas e os adultos? Para poder responder a essas questões, era necessário começar um estudo sobre as crianças em Moçambique. E foi por ai que meu caminho começou a ser trilhado. A começar com a busca na literatura, houve o primeiro impasse: insuficiência de textos que trouxessem a questão do cotidiano da criança para o cenário do estudo. Em Moçambique, os documentos que tratam a criança dizem respeito a uma infância marcada pela falta, pelos abusos, pelas questões de saúde-doença, envoltos de números e questões quantitativas, voltadas para uma busca de temáticas que angariassem doações e estudos, como no caso da UNICEF, que é o órgão que estuda a criança no país. Numa tentativa de ampliar o campo e poder compreender os modos de vida e de se viver das crianças moçambicanas, busquei na literatura as crianças africanas. Da mesma maneira que encontrei as crianças moçambicanas marcadas pelas faltas, assim eram as crianças do continente africano: uma criança marcada por uma infância que sai das regras do normativo, da visão eurocêntrica e norte-americana do que é ser criança e do que foge dessa infância, na qual o dia-a-dia da criança fosse apenas permeado pelo ir 245

para escola e voltar para a casa, e então estar numa atividade esportiva, como natação, por exemplo. Estudar a criança moçambicana sem que ela fosse colocada como uma criança out of place, como é colocada em muitos dos estudos, e dar um lugar para ela, seu dia-adia, suas atividades cotidianas e poder compreender o que é esse ser criança tornou-se um desafio. Para poder perceber, entender e compreender as relações de socialização que permeiam essa infância era preciso mergulhar no campo de estudo; a aproximação com essa cultura era necessária. A etnografia passou a ser o ponto chave para a busca de tal compreensão. 2. A etnografia Moçambique é um país que sofreu por muitos anos com as guerras de libertação e civil. Esta última, com marcas e traumas que repercutem até os dias atuais. A Cidade da Matola, e especificamente o bairro da Matola A é o nosso universo de estudo, que teve grande influencia em sua conjuntura atual devido às guerras passadas. A formação do bairro e a constituição das famílias, ali, se deu por um movimento de deslocação e mobilidade no período dos conflitos (Araujo, 2006; Cabaço, 2007). Ir ao campo, neste contexto, era ter uma idéia da história do país. O intuito inicial foi um estudo e apreensão do que significaram as guerras e como é reconstruir um país a partir daí. Estar em contato com o outro era permitir que a história e os saberes do outros fizessem parte. Como seria o universo das crianças partilhado neste meio de uma sociedade pós-guerra, que, apesar de ter terminado oficialmente em 1992, tem marcas e resquícios até os dias de hoje? E como trazer a questão do ser criança pela própria criança? Compreendendo que os estudos sobre as crianças moçambicanas necessitavam de um estudo de dentro e de perto, optei por algumas metodologias participativas, em que as crianças foram postas como sujeitos da pesquisa. Olhar a infância através do olhar, da voz e dar visibilidade à criança foi o eixo central para a escolha do método e do modo de fazer o campo. Geertz traz para a discussão sobre estar presente, na prática etnográfica, a busca pelo entendimento das redes de significados sociais e os símbolos que lhe são presentes, como os valores, as práticas sociais e culturais, os comportamentos. E, mais que 246

entender essas questões como questões da alteridade, há um olhar que deve ser atento: ao falarmos de uma cultura outra, deve-se atentar para essa cultura como diversidade, como um campo do outro, e que tentar entendê-la ou se aproximar dela é estudá-la através dos seus próprios parâmetros. (GEERTZ, 1989). A premissa para essa relação com o outro, que a etnografia permite, só é possível através do encontro. O encontro com esse outro e, no caso, a criança, era permitir um estar em campo em que o uso de técnicas participativas fosse possível e fosse relevado. Quando assumimos as crianças como autores sociais, passamos a assumir suas competências na formulação de interpretações sobre seus modos e mundos de vida, e como reveladores das realidades sociais nas quais se inserem (Pastore, 2014). É entender a criança como sujeito de conhecimento e não só objeto de pesquisa. Considerar a alteridade da infância implica ter em linha de conta o conjunto de aspectos que a distinguem do Outro-adulto (SOARES, SARMENTO E TOMÁS, 2005, P.54). A investigação é assim considerada como um processo de participação social, no qual é fundamental considerar um equilíbrio mutuamente possível, de autonomia, cooperação e hierarquia com e entre as pessoas, sendo a tomada de decisão partilhada entre todos os parceiros do processo de investigação. É também, um processo de investigação densamente trespassado de significados e valores, em todas as etapas do seu percurso, o que se apresenta como um desafio complexo, na medida em que, os significados e valores que estão aí presentes, terão sempre uma dupla interpretação: a dos adultos e a das crianças (SOARES, SARMENTO E TOMÁS, 2005, p.56). O campo permitiu, deste modo, acessar os lugares das crianças, fossem de maneira simbólica ou fosse a partir das inscrições em seu cotidiano, como nas atividades realizadas no âmbito doméstico, fosse numa brincadeira em um momento qualquer. A inserção buscou cenários de interações sociais, que permitiram repensar o ser criança, os espaços partilhados, as atividades significativas, a atuação técnica do terapeuta ocupacional. A etnografia permitiu a compreensão das atividades das crianças, suas responsabilidades, seus modos de vida, especificando sua contextualidade, para que assim, numa pesquisa realizada em parceria, chegássemos à construção de um cenário significativo de interação (FERREIRA, 2011 apud Pastore, 2014). 247

3. Estar em campo 4. Após o período inicial de busca e reflexões acerca do material encontrado, a pesquisa de campo estava configurada. A pesquisa teve duração de fevereiro a julho do presente ano (2014). De início, o plano inicial era estar na ONG do bairro e retomar o contato com as crianças que trabalhei; porém, ao chegar lá, fui notificada que a ONG estava fechada e que as crianças não mais estavam lá. Tinha assim o primeiro desafio do estar em campo: a vida acontecia e continuava independente das minhas vontades e do meu estudo. Com o passar daquele primeiro dia, encontrei dois garotos que estavam na ONG em 2012, e eles me informaram que as crianças estavam numa escola lá perto, local ao qual tinham aulas naquele momento. Fui até a escola e muitas crianças me reconheceram, correndo até mim e gritando Marina! Voltaste!. Foi meu primeiro contato e reencontro com muitas delas ali. Ao longo do dia, uma das professoras me reconheceu e me apresentou ao diretor da escola. Pude falar da minha pesquisa e foi autorizada a minha permanência na escola, a qualquer momento, e que a pesquisa tinha seu apoio. A escola era um lugar em que as crianças estavam, e poder fazer parte daquela dinâmica era importante para mim. Decidi ir à escola algumas vezes e retomar o contato com as crianças antes de iniciar a construção direta dos dados para a pesquisa. Nas primeiras duas semanas, permaneci no espaço externo às salas de aula: sentava no degrau que separava as salas do pátio e ficava lá, observando as crianças ocuparem aquele espaço e tentando perceber um pouco daquela dinâmica. Muitas crianças sentavam ao meu lado, tocavam minha pele, perguntavam se podiam tocar meu cabelo e se o cabelo era meu (lá, as meninas e mulheres acabam comprando mechas de cabelo humano ou sintético e fazem penteadose assim as crianças queriam saber onde tinha comprado o meu mas é seu esse cabelo? Onde compraste? ). Além disso, brincávamos de correr e, quando sentava para descansar ou para me proteger do sol, elas queriam saber mais sobre o que eu estava fazendo ali. Entendi que seria importante contar sobre a pesquisa de uma maneira que as crianças pudessem entender e que fizesse algum sentido. Havia crianças que vinham me perguntar quando visitaria suas casas, e eu respondia que, quando elas quisessem e 248

depois de terem perguntado à mãe ou pai se eu poderia ir (algumas me levaram para conhecer suas casas ou rever seus pais no caso de já ter conhecido em 2012; outras não tocavam mais no assunto). Assim, fui me familiarizando com as crianças e fazendo com que se familiarizassem comigo, tal como os professores; alguns pais apareciam na escola para saber quem eu era e o que fazia ali, outros iam me cumprimentar e dizer o quanto era bom me ter de volta (Pastore, 2014). A situação da escola parecia resolvida, mas como chegar às crianças e conhecer seu dia-a-dia e suas atividades? Num dos dias em que ia para a escola, passei pela casa de uma das crianças. Sua mãe me chamou e disse que quando falaram que eu havia voltado, ela quase não acreditou. Como estamos felizes em ter a mana Marina de volta, disse ela. Passamos a conversar e então contei da minha pesquisa, o que pretendia fazer ali e como queria observar e acompanhar algumas crianças. Imediatamente, sua mãe disse as crianças aqui me ajudam muito. Beni é mais preguiçoso, não gosta muito, mas Laila ajuda bem. Agora está até cozinhando. Se quiseres, podes vir aqui e olhar como eles fazem. Podemos te contar como é e você usa na sua pesquisa. Porém, não tinha falado com seu filho ainda. Sai da casa e encontrei com ele na parte de fora, brincando. Perguntei se ele queria participar da pesquisa e então, com sua resposta afirmativa, tinha a primeira criança do estudo. Ao realizar pesquisas com crianças, uma coisa é importante: levar em consideração a opinião da criança, que é diferente da opinião e vontade do adulto, mas que carece de uma aprovação desse adulto. Atentar-se à vontade da criança e, ao mesmo tempo, a aceitação do adulto é um desafio duplo para quem realiza estudos e pesquisas com crianças. É andar nesse meio e procurar dar voz e visibilidade aos atores que trazemos como seres sociais e de direitos que queremos trabalhar em parceria. Por isso a aceitação da criança, ao meu entender, era a primeira. Essa relação e esse manejo com a vontade das crianças e a aceitação dos adultos foi parte importante para a escolha dos sujeitos da pesquisa. Conversei com algumas crianças e, ao perguntar se queriam participar da pesquisa, algumas disseram que não sabiam, outras que teriam que ver com os pais; muitas vieram no dia seguinte e nada falaram, e então resolvi que não insistiria, pois poderia ser um sinal que não queriam ou que os pais não autorizaram. Uma delas me levou até sua casa e, após conversar com o avô, ele disse que não sabia se eu podia ir, 249

pois tinha que conversar com sua filha; passaram-se dias, e ele ainda falava que não sabia entendi que aquilo era um não, e que não mais insistiria. Entendi que deveria ter a sensibilidade de saber até onde poderia chegar, e assim o fiz. Não mais questionei e passamos a nos relacionar de uma maneira amigável, mas sem chamá-lo, novamente, para a pesquisa (Pastore, 2014). Eu trabalhei com cinco crianças, de idades e sexos diferentes. As crianças não foram escolhidas por mim; elas me escolheram para participar de suas vidas e do seu dia-a-dia. Conforme as crianças me perguntavam o que eu fazia ali, ia contando um pouco da minha questão do mestrado. Poder explicar o que era o mestrado foi essencial para o entendimento e minha aproximação com as crianças, com os familiares e com os professores. Com as crianças, a explicação era sempre dada do ponto em que elas estavam, daquilo que conheciam. O consentimento também foi trabalhado assim: de forma oral, com as crianças e, caso quisessem, com os adultos. Acompanhei cada uma das cinco crianças durante o período aproximado de 20 dias. Chegava no bairro às 7 horas e saia às 17 horas, quando não dormia na casa de uma delas. Caso a criança estudasse à tarde, ia para sua casa, ajudava nas tarefas e depois íamos para a escola. Com cada uma das cinco crianças criei uma relação diferente. Por exemplo Gina, de 7 anos, que dizia que eu era sua irmã brasileira, e me dava bronca caso eu não me apresentasse assim para os que perguntavam; ou com Félix, que perante os amigos e os familiares, dizia que eu era uma tia, mas na relação comigo, me chamava de amiga. Com as crianças na escola não foi diferente: houve os que me consideravam tia, amiga; outros me consideravam uma irmã mais velha, e houve aqueles que me tinham como uma estudante daquela escola. Uma das metodologias adotadas para compreender as atividades que as crianças desenvolviam na escola foi assistir aula com elas, ao seu lado, sentada ao chão, do mesmo modo que elas assistiam. Isso fez com que eu me aproximasse delas e que fosse vista do ponto de vista que elas mesmas se identificavam. Certa vez, em uma das salas, um dos meninos perguntou meu número de chamada. Ao dizer que não tinha, ele me respondeu és o 77. O último é 76, então você agora é o 77. E assim passei a fazer parte daquele dia-a-dia e daquela vivência então partilhada comigo. Corsaro (2005) traz para a discussão o termo de adulto atípico. Na etnografia realizada com crianças, o desafio torna-se maior: como diminuir as distâncias entre os 250

mundos infantis e os dos adultos? Como diminuir a distância e a relação de poder entre crianças e adultos, mais velhos e mais novos? A aceitação no mundo das crianças é particularmente desafiadora por causa das diferenças óbvias entre adultos e crianças em termos de maturidade comunicativa e cognitiva, poder (tanto real como percebido) e tamanho físico (CORSARO, 2005, p. 444). Poder estar com as crianças e fazer parte de seus mundos foi um desafio, mas que foi preciso um exercício para poder estar realmente presente. Passei a estar com elas, não sendo uma delas, como muitos afirmavam, mas dividindo situações e sendo, como discute Corsaro, um adulto diferente do que elas estão habituadas a lidar, compartilhando as situações de maneira igualitária, sem participar dos códigos de poder instituídos e, por vezes, estereotipados dos adultos. Não as mandava realizar tarefas e não batia. Era um adulto atípico, como defende Corsaro (Pastore, 2014). Um autor que contempla essa visão e partilha desses saberes é Paulo Freire (1989) que, nesta mesma direção, traz que o trabalho estabelecido, para poder ser configurado em parceria com aquele que se estuda, é necessário haver e praticar a dialogicidade, na qual há um consenso entre pesquisador e pesquisado, respeitando-se a individualidade da criança, seus valores e suas expectativas. Cada relação, cada atividade e cada percurso não seria possível se não fosse a percepção da interação com o bairro e com seus moradores. O desafio que ainda resta é o de como tornar essa prática metodológica como parte integrante das ações de pesquisas dos terapeutas ocupacionais? 5. Considerações finais A escolha do método e realizar a etnografia me permitiu fazer parte do dia-a-dia do bairro, de suas famílias e das crianças. O estudo qualitativo permite ao mesmo tempo buscar a compreensão de modos de vida e a discussão sobre os sentidos das atividades na infância. Foi possível a imersão em espaços cotidianos significativos, a observação e a descrição de situações emblemáticas, acompanhadas de situações dialógicas e horizontais, permitindo campos de trocas e relações que se tem sobre as crianças e o seu dia-a-dia no bairro. 251

Participar e interagir nos espaços do outro, bem como vivenciar determinadas só foi possível pela experiência etnográfica, buscando compreender o contexto histórico, social e cultural (e responsabilidades atribuídas) das crianças em situação específica. O estudo configurou espaços de experiência essencial. Ressalto a questão da etnografia como um desafio para o campo das pesquisas em terapia ocupacional e seu potencial como articulador para a área. Referências bibliográficas ARAÚJO, M. G. M. ESPAÇO URBANO DEMOGRAFICAMENTE MULTIFACETADO: As cidades de Maputo e da Matola. Linha de pesquisa sobre as características geo-sócio-demográficas e os modelos de desenvolvimento urbano em Moçambique. Universidade Eduardo Mondlane. 2006. Visualizado em http://www.apdemografia.pt/ficheiros_comunicacoes/1853187958.pdf. Acesso em outubro de 2013. CABAÇO, J. L. Moçambique: identidades, colonialismo e libertação. Tese de doutoramento em antropologia social. Universidade de São Paulo. 2007. CONNOLLY, M., & ENNEW, J. (1996). Introduction: Children Out of Place. Childhood, 3, 131-145. CORSARO, W. A. Entrado no campo, aceitação e natureza da participação nos estudos etnográficos com crianças pequenas. Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 443-464, maio/ago. 2005. FREIRE, P. Paulo Freire e educacores de rua. Uma abordagem crítica. Projeto alternativas de atendimento aos meninos de rua. UNICEF. Bogotá, Colombia. 1989. PASTORE, M. N. Texto de qualificação de mestrado. São Carlos. 2014. GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989. p. 13-41. SOARES, N. F; SARMENTO, M. J; TOMÁS, C. Investigação da infância e crianças como investigadoras: metodologias participativas dos mundos sociais das crianças. Nuances: estudos sobre educação ano XI, v. 12, n. 13, jan/dez. 2005. 252