Águas subterrâneas, poços tubulares e o saneamento brasileiro



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RELATÓRIO FINAL DO PROJETO

Transcrição:

Águas subterrâneas, poços tubulares e o saneamento brasileiro Dr. Ricardo Hirata CEPAS Vice-Diretor Instituto de Geociências Universidade de São Paulo

Imagine se uma grande maldição se abatesse sobre o Brasil..... que todos os aquíferos Nós jogamos uma grande sequem Ou agora!! seja, que acabem praga as águas sobre Devido o Brasil... a falta de atenção às subterrâneas! águas subterrâneas no país...

Que consequências teríamos... Os rios perenes de pequeno e médio portes secariam, pelo menos na estiagem pois 30% (até 50%) do fluxo de base é originado da descarga dos aquíferos

Que consequências teríamos... Salinizariam completamente os mangues, secariam os pântanos e lagos... Seria uma tragédia sem precedentes, pois mataria grande parte das plantas e animais desses ecossistemas

Que consequências teríamos... Subterrâneo Misto Superficial 39% das cidades brasileiras ficariam completamente sem abastecimento público Em outras 13%, haveria sérios problemas no abastecimento (atingindo 52% das cidades) <10.000 hab. 50.000-100.000 hab. >100.000 hab. 42% 10% 30% 37% 48% 57% 13% 57% 6%

Que consequências teríamos... Subterrâneo Misto Superficial Mas mesmo nas grandes cidades abastecidas somente com águas superficiais, as águas subterrâneas são imprescindíveis... >100.000 hab. Uma olhada em algumas 37% cidades brasileiras... 57% 6%

Cidade de Recife (PE) População urbana: 1,5 M habitantes Demanda de água: 6,0 m 3 /s Sistema de abastecimento público: 94% superficial. Entretanto, Recife se utiliza de 6 a 8 mil poços tubulares particulares (em toda a RMR, 14 mil), extraíndo 1 m 3 /s. Ao invés de 6%, o abastecimento é de 20% com água subterrânea

Região Metropolitana de São Paulo População urbana: 20 M habitantes Demanda de água: 68 m 3 /s Sistema de abastecimento público: 99% superficial. Entretanto, RMSP se utiliza de 12 mil poços tubulares particulares extraindo 10 m 3 /s. Ao invés de 1%, a produção total é de 14% com água subterrânea A água subterrânea é o 4º manancial da RMSP

Lições aprendidas do campo As águas subterrâneas são mais importantes que a percepção da sociedade e dos governantes Em muitos casos, mesmo fora do período de estiagem, as cidades colapsariam sem as águas subterrâneas privadas, pois os sistemas de abastecimento público já operam no limite Durante as crises, a porcentagem do abastecimento com água subterrânea aumenta significativamente

Mas como as águas subterrâneas poderiam então auxiliar na superação das crises de água e aumentar a segurança hídrica em cidades?

Características antônimas de rios e aquíferos Rios possuem uma pequena armazenamento Aquíferos apresentam uma gigantesca capacidade de armazenamento Rios entregam instantaneamente uma grande quantidade de água Aquíferos permitem a extração através de poços de pequena vazão Rios são muito populares Aquífero é uma alternativa pouco conhecida e explorada

Características complementares antônimas de rios de e rios aquíferos e aquíferos Rios recebem muitos investimentos Aquíferos, poucos Rios são muito vulneráveis à contaminação Aquíferos são mais bem protegidos

O uso integrado do recurso hídrico superficial e subterrâneo O abastecimento de água de uma cidade ou empreendimento (agricultura, por exemplo) poderia tirar proveito dessas características complementares dos aquíferos e rios.

Manejo integrado águas superficiais e subterrâneas Período úmido: uso da água superficial e o excesso pode ser infiltrado (após tratamento), recarregando o aquífero. Período seco: uso de água subterrânea, retirada do armazenamento

Típico esquema de uso conjuntivo em áreas urbanas

Adicioalmente. Outro problema é que existirão mais crises hídricas devido às mudanças climáticas globais

Mudanças na disponibilidade hídrica superficial Brasil As é áreas vulnerável mais afetadas às mudanças negativamente climáticas pelas mudanças climáticas na década de 2050 no Brasil são as mesmas atuais e às futuras, em especial aos extremos áreas que hoje já apresentam grande vulnerabilidade, climáticos Período tanto do ponto de vista hidrológico e hidrogeológico, Período Áreas que apresentam 2041-2060 quanto do Aumento ponto maior vulnerabilidade A diminuição de dos vista social 1971-2000 das vazões em alguns são a Amazônia e períodos o Nordeste dos principais brasileiro estiágem, sem rios das regiões Norte e Modelos do IPCC redução AR4 Nordeste para da o coincide fim do com século áreas XXI onde há com relação ao presente precipitação importantes indicam total aquíferos reduções nas Mudança relativa (%) das vazões de rios no Brasil para o período 2041-2060 vazões dos rios São Francisco, Parnaíba, Tocantins, Xingu e outros no leste da Amazônia

Mas as cidades deverão buscar mais águas dentro delas mesmas... Perdas de água da rede de água e esgoto e das galerias pluviais acabam por recarregar os aquíferos Novas águas = subterrâneas + reuso + melhor uso Adequação de água segundo usos (rega com água potável?)

Mas as águas subterrâneas não são isentas de problemas (as mais aparentes) Problemas de superexplotação (ou perfuração e bombeamento descontrolado de poços) Problema de contaminação das águas de poços Problemas de gestão dos recursos subterrâneos, não existe no país um programa realmente eficiente de gerenciamento (70% dos poços são ilegais)

Problema de extração intensa das águas do Sistema Aquífero Guarani: Ribeirão Preto

Nitrato em Natal: um problema recorrente

Contaminação por nitrato no aquífero em áreas com rede de esgoto (desde 1970)

Um problema muito persistente Tempo de recuperação do Aquífero Bauru em Urânia: décadas 1 ano 10 anos 20 anos 40 anos 60 anos 80 anos 100 anos

Vários poços privados estão contaminados São Paulo (Brasil) Uma ocupação industrial muito complexa (a partir de 1950), com mudanças de perfil nos anos recentes (2000) Total de 10350 indústrias

Lições aprendidas no campo Urbanização fortemente modifica o ciclo das águas subterrâneas alguns benefícios, mas com riscos Água subterrânea oferece um ligação invisível entre várias facetas da infraestrutura urbana Água subterrânea urbana deve ser gerenciada mesmo que não seja uma fonte importante de água pública A falta de uma gerência mais integrada sempre tem um custo maior sobretudo em áreas com disponibilidades hídricas menores

Lições aprendidas no campo É importante para a cidade aumentar a sua segurança hídrica. Uso integrado (e inteligente) dos vários recursos-água (água subterrânea e superficial e água de reuso)

Água subterrânea e as cidades uma relação sem diálogo Ausência de diálogo intersetorial.. falta de uma visão holística

Lições de casa As águas subterrâneas urbanas afetam a todos, mas sempre é de responsabilidade de ninguém necessidade de melhora institucional A água subterrânea vive a típica tragédia dos comuns: a solução individual gera um problema para todos. Necessidade de avaliação das águas subterrâneas, regulação e proteção como um importante componente do planejamento urbano

Lição de casa A agência reguladora deve construir um consenso para superar a resistência a introdução de políticas locais. Em contraste com as águas superficiais, as subterrâneas são obtidas de poços individuais. É quase impossível controlá-las sem a participação do usuário participação pública Falta de exemplo de boas práticas no manejo das águas subterrâneas no Brasil.

Lição de casa Assim, é necessário (devido a limitações financeiras e técnicas) estabelecer uma estratégia de manejo baseada na identificação das áreas mais vulneráveis às crises hídricas e entender o real papel (inclusive econômico e social) das águas subterrâneas nas cidades brasileiras Para que a maldição não se abata sobre o país

Dr. Ricardo Hirata Vice-Diretor do CEPAS Universidade de São Paulo rhirata@usp.br www.cepas.net.br