O Rio de Janeiro nos jornais ideologias, culturas políticas e conflitos sociais (1946-1964) organização Jorge Ferreira O Rio de Janeiro nos jornais - miolo sem imagens.indd 3 28/4/2011 16:28:21
Apresentação O livro O Rio de Janeiro nos jornais: ideologias, culturas políticas e conflitos sociais (1946-1964) resulta da junção de três grandes questões. A primeira delas é o tema do livro: a cidade do Rio de Janeiro. O interesse dos historiadores nessa área de estudos começou, ainda nos anos 1970, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Adotando os métodos oferecidos pela História Regional, as pesquisas não eram propriamente sobre a cidade do Rio de Janeiro, mas sobre o antigo estado do Rio de Janeiro. Desde meados dos anos 1970, dissertações de mestrado apresentaram temas voltados para o norte fluminense e a região do Vale do Paraíba. A produção de cana-de-açúcar na cidade de Campos e a do café, especialmente em Vassouras, atraiu os interesses dos historiadores. Outras cidades, sem a mesma pujança econômica, também receberam a atenção dos jovens mestrandos da época. A professora Maria Yedda Linhares orientou diversas pesquisas na área. No entanto, na primeira metade dos anos 1980, a História Regional, como vinha sendo produzida, entrou em descenso. Nesse movimento historiográfico, os historiadores deixaram o campo e foram para a cidade do Rio de Janeiro no início dos anos 1980 embora seja importante lembrar o pioneirismo da professora Eulália Lahmeyer Lobo nos estudos sobre a industrialização, ainda em fins da década de 1970. 1 Na primeira metade dos anos 1980 surgiu o interesse dos historiadores pelo Rio de Janeiro durante a Primeira República. Pesquisas realizadas em cursos de mestrados trataram de diversos aspectos da vida social da cidade, como as habitações populares, as reformas urbanas do início do século e a criação literária na cidade. 2 Vale 1 lobo, Eulália M. Lahmeyer. História do Rio de Janeiro (do capital comercial ao capital industrial e financeiro). Rio de Janeiro, ibmec, 1978, v. 1 e 2. 2 Cito algumas pesquisas: carvalho, Lia de Aquino. Contribuição ao estudo das habitações populares: Rio de Janeiro: 1886-1906. Dissertação de mestrado. Niterói, ichf/uff, 1980; benchimol, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussman tropical. As transformações urbanas da cidade do Rio de Janeiro no início do século. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, coppe/ufrj, 1982; elia, Francisco Carlos da Fonseca. A questão habitacional no Rio de Janeiro da Primeira República: 1889-1930. Dissertação de mestrado. Niterói, ichf/uff, 1984; rocha, Oswaldo Porto. A era das demolições: cidade do Rio de Janeiro, 1870-1920. Dissertação de mestrado. Niterói, ichf/uff, 1983. addor, Carlos A. Rio de Janeiro, 1918, a insurreição anarquista. Dissertação de mestrado. Niterói, ichf/uff, 1985. Em 1983, Nicolau Sevcenko 7 O Rio de Janeiro nos jornais - miolo sem imagens.indd 7 28/4/2011 16:28:22
lembrar que, em 1985, surgiu a Revista do Rio de Janeiro. De curta existência, a revista resultou do esforço de vários historiadores no sentido de criar um fórum de discussões, tendo o Rio de Janeiro como tema central. Mas a produção historiográfica sobre a Primeira República continuou na segunda metade dos anos 1980, com temas originais, a exemplo das moralidades, do antilusitanismo, do cotidiano dos trabalhadores e da repressão policial. 3 Ao longo dos anos 1980, os estudos sobre o Rio de Janeiro se concentraram na Primeira República e, além das pesquisas realizadas em Programas de Pós-Graduação, destacaram-se pesquisas desenvolvidas na Fundação Casa de Rui Barbosa. 4 Para a época posterior a 1930, muitos trabalhos poderiam ser citados sobre o primeiro período Vargas, a experiência democrática, a ditadura militar e o tempo presente. Grupo de pesquisadores no cpdoc-fgv tem-se destacado com diversos trabalhos. 5 Contudo, tendo como referência a quantidade e a pluralidade de temas e abordagens dos estudos sobre o Rio de Janeiro na Primeira República produzidos nos anos 1980, ainda há muito a fazer. 6 publicou trabalho que se tornou clássico: Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1983. Sevcenko também publicou A revolta da vacina: mentes insanas e corpos rebeldes. São Paulo, Brasiliense, 1984. 3 Entre alguns trabalhos, cito abreu, Martha. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Dissertação de mestrado. Niterói, ichf/uff, 1987; ribeiro, Gladys Sabina. Cabras e Pés-de-Chumbo: os rolos do tempo, o antilusitanismo na cidade do Rio de Janeiro (1890-1930). Dissertação de mestrado. Niterói, ichf/uff, 1987; chalhoub, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle époque. São Paulo, Brasiliense, 1986; fonseca, Marcos Luiz Bretas da. A guerra das ruas. Povo e política na cidade do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, iuperj, 1988. 4 Nos anos 1980, o Centro de Estudos Históricos da Fundação Casa de Rui Barbosa desenvolveu projeto intitulado Consolidação da República o Rio de Janeiro. Participaram do projeto Angela Porto, Eduardo Silva, Elisabeth von der Weid, José Murilo de Carvalho, Lílian Fritsch, Luiz Guilherme Sodré Teixeira, Marcos Guedes Veneu, Marcos Luiz Bretas da Fonseca, Rosa Maria Barboza de Araujo, Sérgio Pechman e Sylvia F. Damazio. Dentre os vários trabalhos publicados, cito apenas dois: carvalho, José Murilo Os bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo, Companhia das Letras, 1987 e silva, Eduardo. As queixas do povo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988. 5 Ver ferreira, Marieta de Moraes (org.). A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, fgv, 2008; freire, Américo; sarmento, Carlos Eduardo; motta, Marly Silva da. Um estado em questão: os 25 anos do estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, fgv, 2001 e A política carioca em quatro tempos. Rio de Janeiro, fgv, 2004; motta, Marly Silva da. Rio de Janeiro: de cidade-capital a estado da Guanabara. Rio de Janeiro, fgv, 2001 (Série Estudos do Rio de Janeiro); sarmento, Carlos Eduardo (org.). Chagas Freitas. Rio de Janeiro, fgv, 1999 (Série Perfil Político); pandolfi, Dulce e grynspan, Mário (orgs.). A favela fala. Rio de Janeiro, Editora da fgv, 2003. 6 Atualmente há um movimento historiográfico que critica os fundamentos das pesquisas dos anos 1980 sobre a Primeira República. Sobretudo quando diversos trabalhos reduziram a dimensão política da sociedade ao processo eleitoral fraudulento, ressaltaram a incapacidade das elites de construírem sím- 8 O Rio de Janeiro nos jornais - miolo sem imagens.indd 8 28/4/2011 16:28:22
A segunda grande questão presente no livro é a experiência democrática brasileira entre 1946 e 1964. É conhecer o Rio de Janeiro em tempos de democracia. Trata-se de uma temporalidade importante para a formação de culturas políticas enraizadas na sociedade brasileira. Pela primeira vez na história do país, surgiram e se fortaleceram partidos políticos nacionais com programas ideológicos definidos e identificados com o eleitorado. As eleições para os cargos do Executivo e do Legislativo nos planos federal, estadual e municipal tornaram-se sistemáticas e periódicas. As seguidas eleições contribuíram para consolidar um sistema partidário nacional que expressava as diversas correntes de opinião do eleitorado. Os estudos demonstram que, naquele período, fortaleceram-se os vínculos políticos entre os partidos e o eleitorado. Na avaliação de Antonio Lavareda, tratou-se de sistema partidário-eleitoral que, no início dos anos 1960, estava consolidado. Mesmo com as dificuldades existentes, foi, para o autor, uma experiência privilegiada, combinando a ampliação dos direitos políticos dos cidadãos, a nacionalização dos partidos políticos e um rápido processo de urbanização que emancipou politicamente amplos contingentes da população. 7 Com base no sufrágio universal e com alto grau de competitividade, as eleições eram fiscalizadas pela Justiça Eleitoral, permitindo que a sociedade brasileira, no dizer de Angela de Castro Gomes, conhecesse o que se chama aprendizado da política eleitoral em novos e mais amplos marcos. 8 A terceira questão presente no livro é o uso da imprensa como fonte privilegiada para a construção do conhecimento histórico sobre o Rio de Janeiro entre 1946 e 1964. Os historiadores brasileiros, nos últimos anos, investiram no trabalho com a imprensa. Inicialmente, foi preciso superar preconceitos. A historiadora Tânia de Luca chama a atenção para o fato de que, até a década de 1970, havia grandes desconfianças sobre o uso de jornais e revistas como fonte para o estudo do pasbolos legitimadores da República ou denunciaram as práticas excludentes, europeizantes e racistas das elites do país. Essas imagens desqualificadoras reduziram a sociedade brasileira na Primeira República a uma espécie de vazio de projetos. Seus formuladores podem ser nomeados e datados: os ideólogos do Estado Novo. Eles construíram representações negativas do período anterior com o objetivo de legitimar a ditadura. Ver a crítica em gomes, Angela de Castro e abreu, Martha. Apresentação. In: Tempo. Revista do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, vol. 13, n o 26, 2009. 7 lavareda, Antônio. A democracia nas urnas. O processo partidário-eleitoral brasileiro (1945-1964). Rio de Janeiro, Iuperj/Revan, 1999, p. 133 e 191. 8 gomes, Angela de Castro. Jango e a República de 1945-1964: da República Populista à Terceira República. In soihet, Rachel; almeida, Maria Regina Celestino; azevedo, Cecília; gontijo, Rebeca (orgs.). Mitos, projetos e práticas políticas. Memória e historiografia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2009, p. 36. 9 O Rio de Janeiro nos jornais - miolo sem imagens.indd 9 28/4/2011 16:28:22
sado das sociedades. Existiam aqueles que, exigindo a neutralidade das fontes, recusavam-se a trabalhar com registros fragmentários do presente, realizados sob o influxo de interesses, compromissos e paixões. 9 Sem contar a tradição marxista que qualificava a imprensa como burguesa e, portanto, suspeita nas informações que produzia. Com as mudanças no campo de estudo da História, sobretudo com as influências da assim chamada terceira geração dos Annales, a renovação do marxismo sob a liderança dos historiadores ingleses, as novas abordagens nos estudos da História Política e as metodologias afinadas com a chamada História do Tempo Presente, a imprensa tomou outro lugar nas preocupações dos historiadores. Embora ainda nos anos 1960 muitos pesquisadores tenham usado a imprensa como fonte documental, foi a partir da década seguinte que ocorreram mudanças na maneira como os historiadores passaram a lidar com ela: ao lado da História da imprensa e por meio da imprensa, o próprio jornal tornou-se objeto da pesquisa histórica. 10 A partir daí, foram muitos os historiadores que, com diversos enfoques e abordagens, recorreram aos jornais para estudos sobre movimento operário, a vida urbana, a produção literária, gênero, infância, entre diversos outros. 11 É importante ressaltar que, no período, na cidade do Rio de Janeiro, capital da República até 1960, havia grande quantidade de títulos, com pluralidade de tendências políticas. Podemos citar, na época, cinco grandes jornais: Jornal do Brasil, O Globo, Correio da Manhã, O Jornal e Última Hora. Diversos outros jornais, de tiragens menores, também eram encontrados nas bancas: Tribuna da Imprensa, Jornal dos Sports, Jornal do Commercio, O Dia, A Notícia, Diário Carioca, Diário de Notícias, Diário da Noite, Gazeta de Notícias, Luta Democrática, A Noite, O Fluminense, O Radical, A Manhã, entre outros. 12 Há de considerar, também, o jornal comunista Imprensa Popular que atuou como periódico que procurava concorrer com a grande imprensa. Com uma população de pouco mais de quatro milhões de habitantes, em 1950, e o grande número de analfabetos, é admirável a quantidade de jornais publicados na capital federal. 9 de luca, Tânia Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. Em pinsky, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo, Editora Contexto, 2006, p. 112. 10 Idem, p. 118. 11 Idem, p. 119 e seguintes. 12 Poderíamos também considerar os jornais nacionalistas e/ou de esquerda, como Jornal de Debates, O Semanário, Revista do Clube Militar, Novos Rumos, Emancipação, O Popular e Panfleto, o jornal do homem da rua. 10 O Rio de Janeiro nos jornais - miolo sem imagens.indd 10 28/4/2011 16:28:23
São essas três grandes questões a cidade do Rio de Janeiro como interesse de estudo, o tempo da experiência democrática brasileira e o uso da imprensa como fonte que fundamentam a proposta do livro: temas sobre a vida política, social e cultural da cidade do Rio de Janeiro, entre 1946 e 1964, tendo a imprensa como fonte privilegiada de investigação e ela mesma como objeto da própria pesquisa. Os textos contidos no livro são inéditos e obedecem ao critério de ler a cidade do Rio de Janeiro nos jornais em tempo de democracia. Recorrendo ao jornal comunista Tribuna Popular, Luís Eduardo de Oliveira reconstitui a luta dos trabalhadores cariocas pelo pagamento do abono de Natal. Também recorrendo a outro jornal do pcb, Imprensa Popular, Jayme Fernandes Ribeiro demonstra que os comunistas trabalharam no sentido inverso ao movimento realizado pela grande imprensa que apresentava o Rio de Janeiro como a cidade maravilhosa : mostravam, em suas páginas, as mazelas urbanas e as carências sociais da cidade. Renato Coutinho, tendo como pano de fundo a construção do estádio do Maracanã, resgata projetos políticos concorrentes contidos no Jornal dos Sports e na Tribuna da Imprensa, ambos em disputa sobre a melhor maneira de constituir a nacionalidade brasileira. Cláudia Maria de Farias trabalha um tema pouco conhecido: os Jogos da Primavera, olimpíada exclusivamente feminina patrocinada pelo Jornal dos Sports. Sob o enfoque da História de Gênero, Cláudia discute a ampliação de espaços participativos para a mulher, mas também as limitações e discriminações que sofreram. Tácito Rolim, por sua vez, recorre ao jornal Última Hora para demonstrar como diversos setores da sociedade carioca interpretaram e se apropriaram da imagem do Sputnik, satélite artificial lançado ao espaço pelos soviéticos em 1957, com repercussões impactantes no mundo e na cidade do Rio de Janeiro. Ricardo Mendes mostra como a imprensa conservadora no Rio de Janeiro elaborou a imagem Fidel Castro, entre 1958 e 1959, apresentando-a aos cariocas. Ana Maria da Costa Evangelista, pesquisando em vários jornais, nos traz do passado uma instituição muito importante para os trabalhadores, mas hoje completamente esquecida não casualmente: o Serviço de Alimentação da Previdência Social, o saps, em especial o primeiro restaurante localizado na Praça da Bandeira. Também recorrendo a vários jornais, Alessandra Ciambarella reconstitui os debates sobre a transferência da capital do país para Brasília, apresentando os argumentos dos defensores da mudança e os daqueles que insistiam que a capital deveria continuar sendo no Rio de Janeiro. No meu capítulo, trato da luta política que as esquer- 11 O Rio de Janeiro nos jornais - miolo sem imagens.indd 11 28/4/2011 16:28:23
das brasileiras, em 1963 e 1964, desenvolveram no sentido de desqualificar o governo de Carlos Lacerda, no estado da Guanabara. Para isso, utilizei dois jornais: Panfleto, o jornal do homem da rua, da Frente de Mobilização Popular, e Novos Rumos, jornal do Partido Comunista Brasileiro. Por fim, Michelle Reis de Macedo reconstitui a maneira como vários jornais cariocas descreveram os conflitos que ocorreram em Belo Horizonte, em 25 de fevereiro de 1964, quando Leonel Brizola e a Frente de Mobilização Popular foram impedidos de realizar comício diante do protesto de centenas de pessoas, gerando grande conflito. O Rio de Janeiro nos jornais: ideologias, culturas políticas e conflitos sociais (1946-1964) é o título do livro, mas também da pesquisa apresentada à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro faperj, concorrendo no programa Cientistas do Nosso Estado, no edital de 2008. Tendo sido o projeto aprovado pela instituição, a faperj financiou as pesquisas, o site www.brasilrepublicano.com.br e a publicação deste livro. Esperamos que o leitor aproveite os textos e os resultados de nossas pesquisas. Em particular, é nosso desejo que o leitor carioca conheça temas da história recente de sua cidade, do esquecido saps ao impactante Sputnik; da luta dos trabalhadores cariocas pelo abono de Natal ao esforço dos comunistas para revelarem o lado não maravilhoso da cidade; dos debates ocorridos sobre a construção do Maracanã e da mudança da capital para Brasília; das imagens que a imprensa produziu sobre Fidel Castro e das mulheres que participavam dos Jogos da Primavera; da luta das esquerdas contra Carlos Lacerda e das direitas contra Leonel Brizola. Jorge Ferreira Professor Titular de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense, Pesquisador i do cnpq e da faperj 12 O Rio de Janeiro nos jornais - miolo sem imagens.indd 12 28/4/2011 16:28:23