MÚSICA SERTANEJA GOIANA: A CONSTRUÇÃO DO MODERNO NA



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1. Acolho-vos neste VII Colóquio de Direito do Trabalho, agradecendo vivamente a presença de todos.

Transcrição:

HISTÓRIA CULTURAL: ESCRITAS, CIRCULAÇÃO, LEITURAS E RECEPÇÕES Universidade de São Paulo USP São Paulo SP 10 e 14 de Novembro de 2014 MÚSICA SERTANEJA GOIANA: A CONSTRUÇÃO DO MODERNO NA OBRA DE MARREQUINHO Inglas Ferreira Neiva dos Santos * O texto objetiva apresentar um panorama parcial de uma pesquisa em andamento. Longe de sinalizar conclusões, propõe presumíveis caminhos e levanta questões emergidas do curso dos estudos. Partindo dessa premissa, a pesquisa tem como intento apontar possibilidades de trabalho com a música, em específico com a música sertaneja, compreendendo-a como elemento capaz de reverberar as sociabilidades, os dilemas de um dado período, em uma determinada cena histórica. Sob essa lógica, a música se configura em linguagem perfeitamente capaz de contribuir com a leitura do contexto goiano, no qual as músicas do compositor sertanejo goiano Francisco Ricardo de Souza (Marrequinho) são produzidas e executadas, permitindo um traçado com o ideal desenvolvimentista e a efetivação da recém fundada capital Goiânia. A abordagem aqui proposta passa pela concepção da música como componente complexo das relações humanas. Compreendendo-a como objeto motivador de debates, a música sertaneja em questão é constituinte do processo de urbanização, logo, ligada ao lazer, aos sentimentos, aos amores, aos conflitos estéticos, às migrações do interior do Página1 * Mestranda do curso de História pela Universidade Federal de Goiás. Artigo apresentado no VII Simpósio Nacional de História Cultural - HISTÓRIA CULTURAL: ESCRITAS, CIRCULAÇÃO, LEITURAS E RECEPÇÕES USP

Estado rumo aos grandes centros, daí as misturas de temáticas e arranjos inegavelmente ligadas à indústria cultural. Napolitano assinala a importância dos estudos históricos sobre música não se pautarem em propostas fragmentárias, na qual a letra não raras vezes, encontra-se apartada da melodia, do contexto, do autor. (NAPOLITANO, 2005, p. 8). Tais análises minam as inúmeras possibilidades de apreciação sobre a linguagem musical, impedindo os entrecruzamentos de distintas temporalidades e experiências musicais que fundamentalmente coexistem. Em que pesem as análises estéticas, sob essa lógica, Napolitano explicita a necessidade de compreendermos as várias manifestações e estilos musicais dentro de sua época, da cena musical na qual está inserida, sem consagrar e reproduzir hierarquias de valores herdados ou transformar o gosto pessoal medido para a crítica histórica (NAPOLITANO, 2005, p. 8). Deste modo, ao considerarmos os aspectos históricos e, salvo as limitações de análise estéticos da música sertaneja, inevitavelmente contaremos com a ideia de representação, concebendo-a como contributo fundamental de análise para a música. A ideia de representação perpassa pela maneira como os indivíduos percebem o real e o representam. No que se refere às canções sertanejas, tal propósito passa pelas letras e melodias, são, portanto as músicas, objetos que carregam indubitavelmente historicidade. Sob este princípio pesquisa predomina a ideia de cena musical, a perspectiva que inclui a movimentação estética aliada às suas correlações na cena, imbricações culturais vinculadas ao espaço em que se insere material e subjetivamente. A CENA MUSICAL DA OBRA DE MARREQUINHO A ideia de cena musical proposta por Will Straw, muito contribui com a análise da obra de Marrequinho, especialmente por percebermos que o corpus musical como os primórdios da música sertaneja erigida em São Paulo na década de 1930 se constitui no espaço urbano. Pode-se entender cena musical como o espaço cultural de coexistência e interação de práticas musicais sob diversas trajetórias e interinfluências. Para Will Straw a noção de cena desenvolveu-se em duas direções nos últimos anos. Em uma delas, cena é uma elemento em uma série lexical que inclui subcultura, tribo e outras unidades culturais nas quais se supõe que a música exista (STRAW, 2012, p. 3). Em tal perspectiva, as canções compostas por Marrequinho entre as décadas de 1950 e Página2

1970 se configuram em desdobramentos e intersecções do gênero sertanejo, visto que a acepção de identidade una, purismo cultural e obviamente musical tem perdido espaço para uma leitura processual e intercultural das identidades, dos variados estilos musicais. Tomando-se como base o conceito de hibridismo proposto por Canclini, no qual a hibridação não é sinônimo de fusão sem contradições, mas sim de possíveis formas particulares de conflito geradas na interculturalidade, as canções do compositor goiano apresentam elementos da nomeada música caipira bem como do sertanejo romântico. Percebe-se uma negociação entre tradição e a modernidade, modernização esta, simbolizada pelo crescimento contínuo das cidades e obviamente a coexistência de experiências e vivências rurais e urbanas. Ao considerar o caráter híbrido das representações culturais, pode-se talvez liberar as práticas musicais e literárias e midiáticas da missão folclórica de representar uma só identidade. (CANCLINI, 2013, p. XL). Sob tal lógica o tradicional e o moderno se coadunam nas canções de Marrequinho, há um diálogo entre um passado delineado por nostalgias e a concepção de um futuro que simboliza as inevitáveis mudanças, o progresso. O outro viés da concepção de cena musical proposta por Straw propõe teorizar a relação da música com a geografia, o espaço (STRAW, 2012, p. 3). Algumas canções de Francisco Ricardo de Souza apresentam relação com os espaços da cidade. Tais espaços físicos e culturais se constituem em espaços de sociabilidades, no qual se estabelecem redes de convívio e práticas musicais. Bares, programas de rádio, a pensão onde se encontravam os violeiros e circos; formam os espaços de circulação e execução das músicas, e se traduzem em espaços de movimentação de bens culturais. Considerando o quadro de circulação da música do compositor, a produção de suas canções esteve profundamente ligada ao transcurso da vida social da cidade, das possíveis áreas em que as pessoas viviam sua relação com a música. Esse contexto, de incipiente mercado de músicas sertanejas gravadas em Goiânia se configura em espaços nos quais se conforma a relação entre as pessoas e o lugar. São lugares nos quais tais canções são pensadas, ouvidas - vivenciadas. Parafraseando Will Straw, as cenas, formam uma espécie de sistema destinado a lembrar, transformar, movimentar a expressão cultural e a energia social, desse modo, concebe-se a ideia de circulação, de fluxo de variadas experiências. Página3

MARREQUINHO E A MODERNIZAÇÃO DAS CANÇÕES SERTANEJAS A relação modernidade - ou processo de modernização - e música sertaneja tem sido tema de discussão constante em trabalhos sobre o assunto. Compreender em que aspectos a modernização das cidades e a migração campo/cidade contribuíram na composição das canções sertanejas, principalmente dentre as décadas de 1950 e 1970 e, como estas compuseram as tentativas de construção de uma identidade musical homogênea da nação tem movimentado a análise de distintas áreas. No que se refere ao Estado de Goiás e especificamente a Goiânia, a ideia de modernizar a recém- fundada capital permeou não só o aspecto físico-estrutural, mas sobretudo cultural da cidade. Sob a perspectiva do moderno e relacionando-o à ideia de progresso, o Estado de Goiás foi inserido nos trilhos do desenvolvimento. A representação da modernidade se propaga em Goiás por volta da primeira metade do século XX. Tal desenvolvimento estendeu-se ao campo político-econômico; fabricou-se um discurso que exaltava o moderno - enquanto movimento para o novo, em detrimento de um passado atravessado pelo atraso, pela concepção de barbárie. O esforço em enquadrar Goiás à lógica econômica do país se materializou com o retorno da aspiração de transferência da capital, da qual Pedro Ludovico foi seu mentor. Para Wilson Rocha Assis: Pedro Ludovico, buscando um projeto que agregasse em torno de si as novas forças políticas do Estado, retomou a ideia da mudança da capital, fazendo dela, sua principal plataforma política. A nova capital passou a representar os anseios de mudança política e integração econômica das regiões sul e sudoeste do Estado (ASSIS, 2005, p. 115). Para o interventor Pedro Ludovico, a marcha desenvolvimentista do Estado necessitava de uma capital acessível, que irradiasse progresso e marchasse na vanguarda, coordenando a vida política e estimulando a economia, ligada à maioria dos municípios por uma rede rodoviária planificada. (CHAUL, 1997, p. 206). Considerando esse traço, a análise do cenário musical sertanejo em Goiânia deve ser abordada, ponderando as transformações econômicas, políticas e sociais, entendendoas como elementos fundamentais pra se pensar a esfera artística. Na segunda metade do século XX, uma porcentagem significativa da população ainda morava no campo, entretanto a movimentação entre cidade e campo foi se intensificando, o que possibilitou significativa troca de experiências e sociabilidades entre esses dois espaços. Para Souza Página4

Júnior, a música sertaneja nesse cenário tem um papel muito importante, [...]. Além da função lúdica, de fazer, deve-se destacar seu papel na produção econômica através do mutirão, no ritual religioso das tradicionais da igreja e nas representações de circo como agregador da própria comunidade (SOUZA JÚNIOR, 2010, p.33). A música cantada no ambiente da lida do campo nas festas religiosas (no espaço rural e urbano), nos circos (com pouca estrutura para apresentações de cantores), se configura nas sociabilidades de um período. Recuando no tempo, as canções campesinas em Goiás tinham uma temática bastante voltada para a lida na terra, (final do século XIX e início do XX). Tais canções como também as rezas e versos, se configuravam quase que como uma espécie de memória folclórica e eram cantadas em momentos de reunião dos grupos dispersos do campo. Os encontros se davam nos momentos de colheita (por meio da traição e nos momentos religiosos). Entretanto, tais canções não foram gravadas, supondo que as primeiras gravações de canções sertanejas no Estado tenham sido gravadas em Goiânia por volta da década de 1950, período em que se visualiza o trabalho de duplas sertanejas supostamente profissionais. Neste período ocorrem alguns fatos marcantes para o Centro- Oeste, tais como a consolidação de Goiânia como polo urbano, o surgimento de estações de rádios como a Rádio Brasil Central e a (Rádio) Clube, o que impulsionou a profissionalização dos artistas aqui radicados. (SOUZA JÚNIOR, 2010, p.36). Nota-se que o rádio teve função primordial na divulgação das canções em Goiânia e, assim como em São Paulo, havia programas específicos nos quais as duplas ou trios se apresentavam. As músicas divulgadas apresentavam um misto das experiências do campo bem como das novas vivências da cidade/capital, a imagem do moderno que enaltecia a imagem do progresso, da modernidade. Na temática das letras, havia certa dicotomia: por um lado o entusiasmo com a nova capital e os rumos modernizantes do Estado, por outro, a aura nostálgica do que passara e se assentava na tradição. Infere-se que na segunda metade do século XX, na medida em que a música sertaneja ocupava espaços nas gravadoras, tendo um aumento significativo de seu público, vivenciava também alterações no campo melódico, na temática e sobretudo na grafia das palavras, evitando erros comuns às músicas intituladas como caipiras ou de raiz. Por todas as razões evidenciadas, a música de Francisco Ricardo colocada em cena, torna-se personagem importante para compreensão do processo histórico da cidade de Goiânia na década de 1950, 60 e 70, e a sedimentação da música sertaneja no Estado, Página5

bem como com as complexas relações que regem a relação campo-cidade, tradição e modernidade. MARREQUINHO: ENTRE A MODERNIZAÇÃO DA MÚSICA SERTANEJA E A CONSOLIDAÇÃO DE GOIÂNIA ENQUANTO CAPITAL MODERNA Compreender em que aspectos a modernização das cidades e a migração campo/cidade contribuíram na composição das canções sertanejas, principalmente dentre décadas de 1950 e 1970 e, como estas compuseram as tentativas de construção de uma identidade musical homogênea da nação tem sido objeto de análise de distintas áreas. O Estado de Goiás foi inserido na lógica modernizante do país, tratava-se de um propósito acima de tudo integrador nacional. Nesta teia de interesses amalgamados por características diversas, a ideia de uma capital moderna permeou não apenas o aspecto físico-estrutural, mas, sobretudo, cultural. Na segunda metade do século XX, uma porcentagem significativa da população ainda morava no campo, entretanto a movimentação entre cidade e campo foi se intensificando o que possibilitou troca de experiências. A música sertaneja nesse cenário tem um papel muito importante, [...]. Além da função lúdica, de fazer, deve-se destacar seu papel na produção econômica através do mutirão, no ritual religioso das tradicionais da igreja e nas representações de circo como agregador da própria comunidade (SOUZA JÚNIOR, 2010, p.33). A música cantada no ambiente da lida do campo nas festas religiosas (no espaço rural e urbano), nos circos (com pouca estrutura para apresentações de cantores), configura as sociabilidades de um período. Marrequinho vivenciou a fase inicial das duplas e composições sertanejas em Goiás, entrecruzou sua produção musical com o processo de modernização de Goiânia e impulsos conferidos pela indústria cultural. É um personagem importante para compreensão do processo histórico da cidade de Goiânia na década de 50/60 e a já citada relação cidade-campo. O compositor figura na lista de diversos cantores de renome nacional. O teor nostálgico do passado e paradoxalmente valorizador da modernidade pode ser claramente identificado no trecho da canção Lembranças de minha infância Sinto saudades de suas matas murmurantes Das campinas verdejante e do calmo ribeirão Sinto saudades até das águas que caiam Página6

Do açude que fazia um constante barulhão 1 A canção O progresso aborda as mudanças advindas do processo modernizador do país e obviamente de Goiás. [...] Hoje está vencido aos pés da ciência As grandes distâncias foram superadas Nas lutas travadas com inteligência Após o domínio das longas estradas Que estão asfaltadas do norte ao sul [...] Além das fronteiras do mundo terreno Já estão fazendo seguras viagens A essas conquistas eu dou meu pareço Por que reconheço suas vantagens 2 Em outra canção Saudade e nada mais de Marrequinho e Odaés Rosa, estes fazem uma homenagem ao compositor Goiá (Gerson Coutinho da Silva), que partira para São Paulo em 1955. Ainda existe o velho Lago das Rosas [...] Nossa Campinas está muito diferente Novas casas, nova gente, novo modo de viver Nada mais resta daquele tempo risonho Mas, o passado é um sonho que não se pode esquecer 3 Percebe-se, que as letras indicam mudanças na sociedade, inclusive estruturais, sobretudo em Goiânia. Tais transformações são apresentadas com nuances, pois em Página7 1 SOUZA, Francisco Ricardo. Marrequinho o menino de Campo Formoso Memórias de um artista sertanejo. Goiânia: Kelps, 2010. Composição de Francisco Ricardo de Souza (Marrequinho) e Antônio Fernandes de Faria. 2 SOUZA, Francisco Ricardo. Marrequinho o menino de Campo Formoso Memórias de um artista sertanejo. Goiânia: Kelps, 2010. Composição de Francisco Ricardo de Souza (Marrequinho) e Walter Sperandio. 3 SOUZA, Francisco Ricardo. Marrequinho o menino de Campo Formoso Memórias de um artista sertanejo. Goiânia: Kelps, 2010. Composição de Francisco Ricardo de Souza (Marrequinho) e Odaés Rosa.

alguns momentos remetem certa nostalgia dos tempos idos, em outros, as transformações são claramente bem vindas. A menção a Campinas e às sociabilidades vivenciadas no bairro é frequente em seu discurso tanto nas letras das canções como em sua autobiografia. As canções de Marrequinho além das temáticas mencionadas, em sua grande maioria possuem uma temática romântica, isso possibilita depreender que no que se refere às canções gravadas em Goiás e especialmente em Goiânia não houve o chamado sertanejo caipira ou de raiz. Marrequinho integrou várias duplas nas décadas de 1960 e 1970 que foram construídas em geral sob relação de amizade, havia pouca preocupação com as questões contratuais, daí a inconstância de tais associações. Suas composições contaram com parcerias de compositores dentre eles Ubirajara Moreira e Odeás Rosa. Segundo Marrequinho, em suas composições havia uma preocupação com a grafia correta das palavras, para o compositor, a melhoria na escrita das letras permitiria que o gênero sertanejo alcançasse um público maior, visto que a sociedade encontrava-se em fase de transformação. Em uma entrevista, assim se pronuncia Marrequinho sobre as mudanças A música sertaneja começou a ser feito por pessoas com a visão mais ampla, procurando melhorar a qualidade dos trabalhos feitos através da música. Tirando as expressões mais grosseiras não por menosprezá-las, mas com a intenção exatamente de chegar num público maior que já absorvesse com maior facilidade a música sertaneja. [...] De certa forma havia muito preconceito com esse tipo de música, complexo de inferioridade do brasileiro na época. [...]Aquilo demonstrava uma certa incultura, e o jovem achava que aquilo meio difícil de engolir. Isso é natural, tudo acontece com naturalidade e com lógica também. (BRITO, 2010, p. 172). Destarte, no que se refere aos cantores sertanejos a estética musical goiana não se inicia pelos menos no âmbito profissional - atrelada à imagem burlesca do Jeca, ao sertanejo decadente, desprovido de capacidades e qualidades. Possivelmente o sertão e os sertanejos apresentados por Hugo de Carvalho Ramos em Tropas e Boiadas (RAMOS, 2017) nos deem indícios desse sertanejo ativo, capaz. Os trechos das composições apresentadas, além de outras de Marrequinho e seus contemporâneos são amalgamados por elementos rurais e urbanos, tal perspectiva nos permite deduzir que a concepção de uma origem sertaneja pura, é questionável; como elemento cultural a música se metamorfoseia, agrega novos elementos, conservando outros. Por tais razões, a produção Página8

musical de Francisco Ricardo, só pode ser entendida se inscrita na cena da cidade e suas implicações culturais e históricas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSIS, Wilson Rocha. Estudos de história de Goiás. Goiânia: Editora Vieira, 2005. BRITO, Diogo de Sousa, 1980. Negociações de um sedutor: trajetória e obra do compositor Goiá no meio artístico sertanejo Uberlândia: EDUFU, 2010. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. CHAUL, Nasr Fayad. A construção de Goiânia e a transferência da capital 2 ed. Goiânia: Ed da UFG, 1999.. Caminhos de Goiás: da construção da decadência aos limites da modernidade. Goiânia: Ed. Da UFG, 1997. SOUZA, Francisco Ricardo de. Marrequinho, o menino do Campo Formoso Memórias de um artista sertanejo. Goiânia: Kelps, 2010. SOUZA JÚNIOR, Francisco Ricardo. A música sertaneja em Goiás (1950-70): História de um ajuntador de versos. Monografia (Graduação em História) Universidade Federal de Goiás, 2010. RAMOS, Hugo de Carvalho. Tropas e boiadas. Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cb000001.pdf STRAW, Will. Entrevista: Will Straw e a importância da ideia de cenas musicais nos estudos de música e comunicação - Jeder Janotti Junior. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação E-compós, Brasília: v. 15, nº 2, maio/ago. 2012. NAPOLITANO, Marcos. História e Música. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. ULHÔA, Martha Tupinambá de. Da moda-de-viola à balada a estética da música sertaneja, Universidade Federal de Uberlândia, s/d. Página9