PRINCÍPIO DA TIPICIDADE CONGLOBANTE E A VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL: INAPLICABILIDADE Luís Alberto Safraider Procurador de Justiça Os i. Desembargadores da Segunda Turma do E. Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, por maioria de votos, vem entendendo que a violação de direito autoral especificamente a venda de CDs e DVDs não constitui o fato típico do art. 184, do Código Penal porque as condutas ali descritas são fomentadas pelo Estado, na medida em que autoriza o estabelecimento de shoppings populares onde a venda desses produtos é disseminada. Assim, como o ordenamento legal não pode ter contradições, havendo uma norma que fomenta determinada conduta, não pode haver outra que a puna. Daí que, aplicando-se a teoria da tipicidade conglobante, por eles defendida, está autorizada a venda de CDs, DVDs ou qualquer produto falsificado no território brasileiro. Não analisaremos a preferência teórica pela tipicidade conglobante, pela imputação objetiva ou qualquer outra teoria que pretenda reduzir o alcance dos tipos penais. O que nos interessa é demonstrar que a interpretação escolhida pelo E. Tribunal de Justiça não levou em consideração alguns aspectos da teoria por seus desembargadores defendida e por isso optou pela alternativa da exclusão típica, quando outra poderia ser a escolhida. Tão só a abrangência que se quis dar ao chamado princípio da tipicidade conglobante já revela a temeridade da decisão: no Brasil não se respeita a Lei de Direitos Autorais porque é o próprio Estado que fomenta as violações. Por isso, o Poder Judiciário autoriza a violação independentemente do Código Penal dizer que é crime, da Constituição garantir o direito à produção intelectual e do Brasil ter se comprometido internacionalmente a respeitar tais direitos. A alternativa escolhida pelos i. Desembargadores para interpretação do princípio da tipicidade conglobante poderia ser substituída pela alternativa a seguir exposta, que acredito traria outros resultados, sobretudo para a compreensão do ordenamento jurídico conglobado que o Brasil tem por obrigação respeitar.
O princípio da tipicidade conglobante foi criado por Eugenio Raul Zaffaroni 1 para resolver problemas na estrutura do tipo objetivo. O que outros autores chamam de critérios de imputação objetiva 2 e outros chamam de limitações ao tipo objetivo com outras bases, ele chamada de tipicidade conglobada. Para ele a consideração conglobada da norma que se deduz do tipo limita seu alcance em função das outras normas do universo ou da ordem normativa de que é parte, excluindo a lesividade quando: 1- Não haja afetação do bem jurídico ou esta não seja significativa (princípio da insignificância em outros autores); 2- A exteriorização da conduta do agente não demonstre objetivamente qual era seu dever jurídico naquela circunstância; 3- A exteriorização da conduta do agente não demonstre objetivamente qual era seu dever jurídico no modelo que o direito fomenta; 4- Não se trate de assunção de risco por parte do sujeito passivo; e 5- O resultado não excede o marco da realização de um risco não proibido 3. Zaffaroni explica isto da seguinte maneira: Em primeiro lugar 4 deve-se entender a função da estrutura do tipo objetivo doloso que é o que nos interessa. O tipo objetivo tem duas funções: 1- Uma função sistemática; e 2- Uma função conglobante. A função sistemática do tipo é a fixação primária do objeto da proibição, ou seja, numa análise preliminar se fixa o espaço problemático de discussão da tipicidade objetiva. Nesta análise busca-se descobrir as elementares objetivas do tipo e também as elementares objetivas da vontade do agente. A função conglobante, por sua vez, é de enriquecer a interpretação sistemática do tipo. Esse enriquecimento consiste em verificar a conflitividade do pragma 5, que 1 Utilizar-se-ão duas obras de Zaffaroni para a dissertação sobre aspectos relativos ao tipo objetivo doloso da tipicidade conglobante. São elas: Derecho Penal. Parte General. 2ª Ed. Buenos Aires: Ediar Sociedad Anônima Editora, Comercial, Industrial y Financiera, 2002, Cap. XIII e Cap. XIV; a outra obra será a versão brasileira publicada junto com José Henrique Pierangeli e chamada de Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 2ª Ed. São Paulo: RT, 1999, Título III. 2 Principalmente Claus Roxin e Gunther Jakobs, criticados por Zaffaroni. 3 Derecho Penal, p. 485. 4 Derecho Penal, Cap. XIII, pp. 455/462. 5 Zaffaroni utiliza a palavra pragma tanto na versão argentina, quanto na versão brasileira dos livros aqui citados. Ele explica esse neologismo da seguinte maneira: uma ação exteriorizada tem efeitos infinitos que
implica tanto a verificação da lesividade, quanto a possibilidade de que o mesmo (pragma) seja imputado ao agente como próprio. Isto quer dizer que: 1- Não há conflito quando não há lesão; e 2- Não há conflito quando uma lesão não pode ser imputada a um agente como ação sua, já que se trataria de um acidente, não de um conflito. A lesividade é estabelecida considerando-se a norma que se deduz do tipo, cuja norma não pode ser isolada nele, mas conglobada com a ordem normativa em geral. A tipicidade conglobada, então, traz ao tipo mais critérios de imputação, ou seja, não basta a norma típica isolada: ela deve ser conglobada com todo ordenamento, principalmente o constitucional, que delimita critérios para a ação. O tipo sistemático indica tão somente a lesividade e critérios de imputação. Abre somente o espaço de discussão sobre se a conduta é típica ou não. Já o tipo conglobante reconsidera o alcance da norma deduzida do tipo sistemático, conglobando-a no universo de normas deduzidas de outros tipos e leis penais e nãopenais. Na conglobação da norma com o ordenamento jurídico não se pode ferir o princípio da coerência ou da não contradição entre normas, ou seja, uma norma não pode proibir o que outra permite. Se isto acontecer, deve-se decidir qual norma terá prevalência: a típica ou a permissiva. A função, portanto, da tipicidade conglobante é fornecer mais um critério de imputação. Esse critério, não há dúvida, é redutor do alcance do tipo sistemático. Este põe em exercício os elementos necessários para complementar a demanda de comprovação (a) da mutação física que opera no mundo pelo efeito de uma ação, (b) dos elementos particulares que exigem alguns tipos e (c) do nexo de causação. Com isto se verifica ou não a presença de um pragma típico. A anti-normatividade deste pragma é verificada de forma definitiva através de uma segunda investigação não são abrangíveis pelo conhecimento humano e muito menos pelo tipo penal sem um mínimo de racionalidade. Só alguns efeitos da ação, que modificam o mundo de forma lesiva, podem ser abarcados pela lei. Pragma, portanto, abarca a ação e sua obra, que gera um conflito que pode ser abarcado pelo tipo. É uma ação que reconfigura o mundo de certa maneira. É uma obra de um agente que se manifesta no mundo de modo conflitivo e que, só assim, pode ser captada pelos tipos. Ex. um pedestre não pode pedir reparação de danos ao autor de um livro porque foi atropelado quando atravessava uma rua lendo sua obra e, por isso, sem prestar atenção ao tráfego de veículos; não se exige a ejaculação no crime de estupro, etc. Para terminar: pragma típico são aqueles efeitos que interessam como obra de alguém. Mas prestemos atenção: os tipos não podem ignorar os contextos de ações, pois do contrário não podem definir seus pragmas. A determinação do efeito como obra é uma questão de imputação e, como tal, uma questão típica. A determinação do efeito que interessa e do contexto em que pode ser imputado como obra é um trabalho valorativo que unicamente pode cumprir-se com base em um pragma típico, ou seja, o tipo deve ter critérios valorativos de imputação.
(tipicidade conglobante), quando se verificará se esse pragma é conflitivo 6 e se a ação pode ser objetivamente imputada ao agente como própria deste. Portanto, tipicidade objetiva é a soma do tipo objetivo sistemático mais o tipo objetivo conglobante. A importância da tipicidade conglobante estaria em que certas condutas até então permitidas, como por exemplo, o exercício regular de direito e o cumprimento do dever legal, passam a ser atípicas, além do que a lesão insignificante de um bem jurídico, o acordo, o consentimento e a realização de ações fomentadas, passam a ser critérios de imputação do tipo. Em segundo lugar, e por fim, Zaffaroni 7 diz que a função conglobante do tipo deve ser estudada sob dois aspectos: 1) como lesividade ou afetação de um bem jurídico; e 2) como um fato pertencente a um agente. No que diz respeito ao primeiro aspecto, Zaffaroni analisa a lesividade descrevendo-a em quatro formas. Não há lesão nos seguintes casos: 1) afetação insignificante de um bem jurídico; 2) cumprimento de um dever legal; 3) acordo e o consentimento da vítima; e 4) realização de ações fomentadas pelo direito (exercício regular de um direito). Com relação ao segundo aspecto, ou seja, a imputação de um fato como pertencente ao autor, ele o analisa sob a ótica da autoria e da participação para afirmar ou não a tipicidade conglobante. Para nós interessa somente a análise da lesão de um bem jurídico como fator de atipicidade sob dois aspectos: a insignificância da lesão e a fomentação da conduta formalmente típica do réu pelo ordenamento brasileiro, porque em nenhum momento o Tribunal discutiu a teoria sob os outros aspectos acima mencionados. Quanto à lesividade, Zaffaroni explica que o tipo não tem só a função de estabelecer o pragma típico, mas também e principalmente a de excluir a tipicidade quando não se observa o conflito como qualidade do pragma. A necessidade de 6 Um conflito se caracteriza quando um bem jurídico é lesionado com certa gravidade e também quando o alcance da norma não está limitado por outras normas de igual ou superior hierarquia. 7 Derecho Penal, Cap. XIV, PP. 483/511.
verificar a conflitividade imposta pelo objetivo político ao construir o tipo importa em conglobar o tipo no ordenamento jurídico, ou seja, o conflito que surge com a ação típica implica na lesão que pode ser imputada a alguém. O magistrado deve estabelecer onde está o conflito: precisa comprovar a lesão de um bem jurídico, além da imputação. Resumindo, para estabelecer o conflito o juiz deve perguntar duas coisas: 1) Onde está a lesão? 2) A quem se pode imputar essa lesão? Se faltar o primeiro, o fato é um indiferente penal. Se faltar o segundo, o fato não passa de um acidente, porque não é produto da interação. A lesividade se comprova constatando o dano ou o perigo a um bem jurídico de forma significativa e também se a afetação do bem jurídico está proibida pela norma, o que não acontece quando outras normas diminuem ou limitam o alcance proibitivo da daquela deduzida do tipo. A imputação do pertencimento do fato se verifica a título de domínio do fato ou de participação. Para afirmar a tipicidade conglobante o juiz deve dizer qual norma a ação típica violou; se não há outra norma autorizadora da conduta; e como a ação lesionou o bem jurídico deduzido do tipo sistemático. Note-se que com relação à norma autorizadora, ela deve ser deduzida de todo o ordenamento jurídico, incluindo aqui as normas constitucionais e internacionais. Só assim se estabelece o alcance proibitivo da norma típica: o pragma conflitivo. 3.2.1- Do caso concreto O E. Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul decidiu que a ação de vender CDs e DVDs não foi típica porque a norma do art. 184, do Código Penal, se conglobada com o ordenamento jurídico, é nula porque é possível extrair que a ação do acusado é fomentada pelo Estado. Entenderam os i. Desembargadores que o Estado brasileiro, ao autorizar a construção de shoppings populares, mais conhecidos como Paraguaizinhos, estimula a violação de direitos autorais, pois o que se vende nesses locais são produtos oriundos de falsificação e de contrabando.
O E. Tribunal também tratou separadamente a tipicidade conglobante: não tratou o princípio da insignificância como critério de imputação, mas de forma apartada. Por isso não tratamos dele dentro da tipicidade conglobante, como seria o correto. Quanto a esta, dizem os i. julgadores que a ação não foi conflitiva, conglobante, antinormativa, como se queira, porque estimulada, fomentada pelo próprio Estado. Assim, estar-se-ia violando um princípio do ordenamento jurídico: o princípio da não-contradição entre normas. Em primeiro lugar, se o Estado brasileiro fomenta a violação de direito autoral é esta norma autorizadora que deve ser anulada, porque contrária ao ordenamento jurídico internacional do qual o Brasil participa, contrária à Constituição Federal, contrária à lei civil e penal do país. Em segundo lugar, há outra alternativa para a aplicação do princípio da tipicidade conglobada que não foi levada em consideração pelos i. julgadores: a atividade de violação de direito autoral jamais foi fomentada pelo Estado. Ao contrário, ela não é sequer tolerada, como é a venda de quinquilharias nos shoppings populares, pelos seguintes motivos: 1- Ao construir shoppings populares o Estado tentou organizar minimamente o comércio informal. O Estado fez isto colocando todos os ambulantes ou a maioria deles em um lugar só; passou a tolerar a venda sem recolhimento de imposto e sem autorização para certos importados, notadamente quinquilharias, e passou a fiscalizar a não comercialização de certos produtos que tem interesse em proteger, por exemplo, a venda de CDs e DVDs falsificados, a venda de bebidas alcoólicas, a venda de eletroeletrônicos, a venda de cigarros, etc.; 2- No Mato Grosso do Sul não existe qualquer lei autorizando a comercialização de CDs e/ou DVDs, mas sim o Decreto Municipal nº 8448, de 09 de maio de 2002, regulamentando a atividade no camelódromo local; 3- A Constituição da República protege o direito autoral no art. 5º, XXVII; 4- O direito internacional protege o direito autoral através da Organização Mundial do Comércio, cuja Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT foi ratificada pelo Brasil através do Decreto nº 1355/94; 5- A Lei 9.610/98 regula os direitos autorais no Brasil; e 6- O art. 184, do Código Penal criminaliza a conduta de violação de direito autoral. Note-se que este artigo foi recentemente modificado pela Lei
10.695/2003, para aumentar a pena de quem ofende o bem jurídico protegido pela norma, além de criar outras figuras de derivação típica. Todo ordenamento jurídico é voltado para a proteção do bem jurídico propriedade intelectual, ao contrário do que pensam os i. Desembargadores. Só por isso o legislador penal construiu um tipo para punir quem não respeitasse a norma bem jurídico constitucional -. O bem jurídico não foi invenção do legislador penal, mas retirado da Constituição Federal, depois que ela prestigiou tratados internacionais dos quais o Brasil é parte. Portanto, há bem jurídico e conflitividade (o autor entrou em conflito com o que se espera da ordem normativa geral). A conflitividade da ação existe a despeito de muitas pessoas insistirem em vender CDs e DVDs pirateados, de muitas pessoas insistirem em vender cigarro falsificado e contrabandeado do Paraguai, de muitas pessoas insistirem em contrabandear e vender bebidas alcoólicas produzidas e falsificadas no Paraguai etc. O fato de uma norma ser incessantemente desobedecida não faz com que ela perca a vigência. Aliás, é justamente quando acontece isto que o direito penal é chamado a colaborar fomentando a obediência às leis sob pena de castigo princípio da intervenção mínima e da fragmentariedade -. Tanto isto é verdade que o tipo de comércio exercido pelo autor da ação deste procedimento e todos os outros que lidam com o comércio ilícito é clandestina. O Estado jamais poderia fomentar tais condutas porque dentre outras coisas: 1- Estaria fomentando o comércio ilícito, que poderia se alastrar para outros produtos cuja venda fosse lucrativa; 2- Não há clamor social, nem discussão estabelecida na sociedade (ONGs, mídia, centros de pesquisa, órgãos legislativos etc.) que possibilite pensar que se discute no Brasil acerca da legalidade ou das vantagens da falsificação e da violação de direito autoral; 3- O Brasil se obrigou perante a sociedade internacional a proteger direitos de propriedade intelectual; 4- Não há nenhum estado de necessidade que justifique a violação de um direito que se obrigou internacionalmente e pela Constituição Federal a proteger.
Concluindo, o princípio teórico da tipicidade conglobante foi mal aplicado pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. Não se justifica retirar a vigência do art. 184, do Código Penal, sob a argumentação de que a ação de violação de direito autoral está permitida e fomentada pelo próprio Estado no território brasileiro.