A INTEROPERACIONALIDADE NAS OPERAÇÕES DE PAZ: AS DOUTRINAS DO BRASIL, FRANÇA E ALEMANHA.



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Transcrição:

Programa de Pós-graduação em Ciências Aeroespaciais - UNIFA 74 A INTEROPERACIONALIDADE NAS OPERAÇÕES DE PAZ: AS DOUTRINAS DO BRASIL, FRANÇA E ALEMANHA. Marco Tulio Delgobbo Freitas 1 RESUMO Durante o desenvolvimento das missões de paz, mudanças operacionais provocaram a transformação de sua forma e natureza. Como resultado dessas constantes modifições, as missões de paz, geraram a elaboração de doutrinas voltadas para tal objetivo formuladas pelos Estados. A preparação de doutrinas ou a mudança destas estabelecem um marco conceitual para auxiliar os militares a conduzir operações desta natureza. Ao elaborar uma doutrina para as operações de paz, alguns Estados podem inspirar pensamentos semelhantes aos seus aliados ou instituições, a fim de objetivar uma melhor interoperacionalidade entre aqueles que compõem uma determinada missão. Consequentemente, algumas diferenças operacionais apresentadas através de suas doutrinas, podendo aumentar a fricção entre aqueles que estão reunidos na mesma operação de paz. O objetivo do trabalho proposto é determinar como, em âmbito operacional, as doutrinas de operações de paz do Brasil, França e Alemanha convergem ou divergem. Palavras-chave: Interoperacionalidade. Operações de Paz. Nações Unidas. 1 INTRODUÇÃO Conflito interno, operação de manutenção da paz, rebelião, revolta, luta armada, insurreição, guerra civil, guerra subversiva, guerra revolucionária, guerrilha, limpeza étnica, terrorismo e sublevação. Existe uma grande gama de termos para caracterizar a violência, que atingiu os Estados nos quatro cantos do mundo nos últimos anos, e que mobilizou, de uma forma ou de outra, a comunidade internacional em torno da preocupação de manter a paz. As lutas pelas independências que marcaram a segunda metade do século XX, ocorridas na África e Ásia, moldaram um novo tipo de luta, em que grupos políticos dentro de um território estatal buscariam o rompimento com um governo considerado ilegítimo. Com a Guerra Fria, a natureza destes conflitos foi adormecida em nome da dicotomia bipolar que durou até meados de 1989. 1 Possui graduação em História, Bacharelado e Licenciatura, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2005), mestre em Relações Internacionais, pela Universidade Federal Fluminense (2008). Atualmente é professor do departamento de Relações Internacionais do Centro Universitário da Cidade. Leciona e pesquisa no campo da geopolítica, história das relações internacionais e estudos estratégicos. E-mail: Marcotuliodf@hotmail.com

Programa de Pós-graduação em Ciências Aeroespaciais - UNIFA 75 A partir do final da Guerra Fria, não havia mais uma estrutura capaz de manter a estabilidade nestas regiões. As minorias étnicas passaram a questionar os governos estabelecidos por não considerá-los legítimos e, aproveitando a fragilidade de alguns Estados, os conflitos intraestatais voltaram a se proliferar. Por meio de estratégia de guerrilha e contrainsurgência, esses grupos procuravam o controle político de uma região e buscavam, além de suas fronteiras e a partir dos avanços tecnológicos e da globalização, transmitir seus valores e mobilizar apoio à causa 2. Em resposta, as potências ocidentais desenvolveram estratégias de prevenção e de controle de crises fundamentadas no que se tende a chamar na falta de termo mais adequado em português de Operações de Não-Guerra (Military Operations Other Than War). Seu objetivo pode ser a manutenção, a restauração ou mesmo a imposição da paz. A condução dessas ações, segundo o seu conceito, é governada por princípios diferentes dos princípios da guerra tradicional: legitimidade, credibilidade, reversibilidade, adaptabilidade, multinacionalidade e imparcialidade 3. Como salientamos, as operações de paz são descritas como Military Operations Others Than War (MOOTW), e a partir desta caracterização nota-se a importância do estudo da relação das missões de paz com as forças armadas que compõem este esforço que tem o objetivo elementar de promover a paz e levar ajuda humanitária àqueles que necessitam. Um dos pontos centrais da análise sobre as doutrinas de operações de paz é que nela reside a responsabilidade de estabelecer um conhecimento conceitual comum entre os aliados e membros de alguma coalizão, pois este seria o primeiro passo para a interoperacionalidade tão necessária em casos de missões de paz. Assim, por seu turno, algumas diferenças operacionais das doutrinas poderão ser a fonte de atitudes diversas, além de causar uma confusão operacional em uma determinada missão. Assim sendo, a importância do estudo das doutrinas de operações de paz é que nela reside a expressão dos princípios fundamentais de conduta durante uma missão e é salutar ter o conhecimento das divergências e semelhanças, no nível operacional, entre as doutrinas de missões de paz do Brasil, Alemanha e França a 2 KALDOR, Mary. New and old war, organized violence in a global era. Stanford: Stanford University Press, 2001, p. 78. 3 DEPARTAMENTO DE DEFESA DOS ESTADOS UNIDOS. Join Publications 3-07.3, Join Tatics, Techniques, and Procedures for Peacekeeping Operations. Washington DC: US Government Printing Office, 2007, p.54.

Programa de Pós-graduação em Ciências Aeroespaciais - UNIFA 76 fim de determinar as possíveis diferenças que podem resultar na falta de interoperabilidade destes. A elaboração da hipótese se deu a partir da constatação de que, apesar das iniciativas onusianas e da OTAN em criar um ponto comum entre as doutrinas de missão de paz de seus Estados membros, as diferenças operacionais refletidas nestes documentos apontam que há divergência, na visão dos Estados, sobre a natureza das missões de paz e que esta desarmonia ocorre principalmente em relação ao uso da força nestas atividades. A partir desta consideração a hipótese elaborada sugere que as divergências operacionais das doutrinas de operações de paz provocam a baixa interoperacionalidade dos contingentes multinacionais durante uma missão de paz. 2 ESTUDO DAS DOUTRINAS: O BRASIL, A FRANÇA E A ALEMANHA. No final da década de 90, o aumento da demanda de missões de paz, principalmente no continente africano, e os novos desafios encontrados durante seu estabelecimento, sobretudo dificuldades operacionais no que tange à segurança do esforço humanitário, provocaram uma maior importância da participação dos meios militares nas operações desta natureza. Por doutrina, entende-se o conceito desenvolvido por Poirier e Laurent, que será adotado nesta pesquisa. Os autores descrevem que [...] a doutrina procede de uma escolha calculada dentro da pluralidade de teorias existentes [...] extrai dessas uma representação e uma concepção privilegiadas da ação [...] exige ser local e não global, adaptada a um dado quadro nacional ou técnico [...] tem uma finalidade prática: os princípios dirigentes, uma vez formulados, servem de guia na elaboração das decisões práticas a tomar [...] em de certa forma, verificável no terreno: o dizer das armas deve confirmá-la ou invalidá-la, ou seja, a doutrina não deve mais definir somente o emprego das armas, deve primeiro dizer que armas escolher[...] 4 Em relação às dimensões de sua abrangência, Posen admite que A doutrina contemporânea deixa de ser unilateral, centrada em uma só dimensão operacional, para abranger todas as dimensões da estratégia 5. Sobre o nível operacional, entendemos que o conceito elaborado pelo general Poirier é o que deverá ser seguido pelo estudo apresentado como: 4 POIRIER, Lucien. Le chantier stratégique. Paris: Économica, Bibliotèque stratégique, 1987, p.129. 5 POSEN, Barry R. The sources of military doctrine: France, Britain and Germany. Cornell: Cornell University, 1984, p.200.

Programa de Pós-graduação em Ciências Aeroespaciais - UNIFA 77 [...] o nível operacional é aquele no qual uma operação é planejada, conduzida e apoiada, para atingir um objetivo estratégico em um teatro de operações. É o nível de combinação das ações interforças neste teatro sob a responsabilidade do comandante de teatro [...] 6. Por fim, uma doutrina operacional estabelece um parâmetro, dentro qual há um militar que planeja a missão e outro que executa a operação, e que irá definir onde e como será utilizado o emprego da força. Para a literatura militar, a doutrina é responsável pela forma de conduzir uma operação. Uma característica muito presente em uma missão de paz é o seu contorno político. A partir da lógica em que é desenvolvida a doutrina para operações de paz, cabe ao comandante das forças de paz traduzir os objetivos políticos expressos pelos mandatos do Conselho de Segurança a uma determinada missão de paz que são as estratégias em ações táticas que visem cumprir as tarefas determinadas pelo mandato. É também responsabilidade da doutrina estabelecer uma base comum entre os aliados, pois este seria o primeiro passo para a interoperacionalidade tão necessária em casos de missões de paz, sob liderança da ONU, ou forças multinacionais ad hoc, como foi o caso da UNITAF. A importância do estudo das doutrinas de operações de paz é que nela reside a expressão dos princípios fundamentais de conduta durante uma missão. 2.1 Brasil O Brasil é um dos signatários da Carta de São Francisco, que estabelece a criação da ONU no ano de 1945. A primeira participação do Brasil em uma missão de paz sob a égide da ONU foi no ano de 1947, na UNSCOB. No ano de 1956, o Brasil enviou um efetivo militar para participar da FENU I. Após participar de inúmeras operações de paz durante esses anos, em 2004 o Brasil inicia uma nova etapa em sua história de contribuição nas missões de paz. Em abril daquele ano, o Brasil assume o posto de comandante do componente militar da MINUSTAH e, com isso, a sua postura de participar somente em operações de manutenção de paz sofre uma transformação, pois a MINUSTAH foi estabelecida a luz do Capítulo VII da Carta da ONU, sendo tipificada como uma missão de imposição da paz. Esta mudança de postura foi totalmente inédita na história do Brasil, pois a conduta da política externa brasileira sempre foi de procurar atender os princípios 6 POIRIER, Lucien. Op. Cit. p.47.

Programa de Pós-graduação em Ciências Aeroespaciais - UNIFA 78 estabelecidos na Constituição que rege suas relações internacionais e o emprego da Forças Armadas do Brasil em missões de paz multinacionais. Entretanto, para entender esta transformação devemos analisar os condicionantes propostos na política externa brasileira, elaborada pelo Itamaraty, e na política externa de governo, preparada pela Presidência da República, que perseguem atualmente uma mudança no Conselho de Segurança, almejando um assento permanente, considerando também que, para atingir este objetivo, como mecanismo de ampliação da inserção do país no cenário internacional, o governo brasileiro tem buscado participar em um maior número de operações de paz capitaneadas pela ONU, mesmo que estas estejam em desacordo com os princípios constitucionais: a autodeterminação dos povos; a não intervenção; a defesa da paz; e a solução pacífica dos conflitos 7. Para operacionalizar esta nova postura, foi reformulado em 2006 o Manual de Operações de Paz do Ministério da Defesa. Neste documento está descrita a visão que o Brasil tem acerca das missões de paz. Definida de acordo com os documentos Uma agenda para a paz e Suplemento de uma agenda para a paz elaborados durante a administração de Boutros Boutros-Ghali à frente da ONU, as atividades de operações de paz que o Brasil participa com o envio de um efetivo militar podem ser definidas como: a) operação de manutenção da paz (peacekeeping); b) operação de imposição da paz (peace-enforcement). Para o Brasil, as atividades de peace-building, ao contrário da visão da França e Alemanha, necessariamente não demandam a atuação do efetivo das Forças Armadas. Essas ações, voltadas basicamente para o desenvolvimento econômico e social do país anfitrião, são empreendidas, preferencialmente, por outros órgãos da ONU, mas dependendo das dificuldades no terreno, podem requerer a atuação militar 8. Por fim, em relação ao uso da força, o Brasil segue as diretrizes especificadas pelo DPKO. Entretanto, as regras de engajamento estipuladas pela ONU, predominantemente defensivas, sofrem outro tipo de limitação na visão do governo brasileiro que as descreve como a aplicação das Regras de Engajamento 7 BRASIL.Senado Federal. Subsecretaria de Edições Técnicas. Constituição da República Federativa do Brasil: Texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, Brasília, 2004. 8 BRASIL. Ministério da Defesa. MD33-M-01: Manual de Operações de Paz. 2. ed. Brasília, 2008, p.15.

Programa de Pós-graduação em Ciências Aeroespaciais - UNIFA 79 não podem limitar um comandante no desenvolvimento de ações necessárias para a proteção de suas Forças 9. 2.2 França Desde 1994 o livro branco que consta a política de defesa da França não sofria alterações. Naquele período, a operação de paz era vista pela França segundo a Doutrina Lanxade. Em 1995, o chefe do Estado-Maior francês, almirante Jacques Lanxade caracterizou os tipos de operações de paz que as tropas francesas deveriam participar 10 : a) Operação de peacekeeping: operação de paz tradicional, baseada no capítulo VI da Carta da ONU, que prevê o consentimento entre as partes e a existência de um cessar-fogo; b) Operação de peace-restoration: operação de paz conduzida pelo capítulo VII da Carta da ONU, em que se presume a não existência de um cessar-fogo e um consenso e que a responsabilidade da ONU é restaurar a paz sem precisar necessariamente identificar algum agressor; c) Operação de peace-imposition: operação dirigida pelo capítulo VII da Carta da ONU, autorizando o uso da força, por parte do contingente da ONU, contra algum agressor, com a finalidade de impor a paz. Entretanto, em 2008, durante o governo de Nicolas Sarkozy, o livro branco sofreu profundas alterações tendo em vista os novos desafios, elencados pelo próprio presidente, no campo da segurança interna e externa 11. Para responder a estas vulnerabilidades, a política de defesa da França é norteada por cinco princípios: connaissance-anticipation, prévention, dissuasion, protection e intervention 12. Neste documento é defendida a ideia que as operações de paz fazem parte de uma caracterização que vai além do atendimento de seus contornos jurídicos ou da existência ou não de um consenso. Ademais, o livro branco francês expõe que qualquer operação, seja de natureza militar ou de paz, está incluída no conceito de intervenção. Dentro deste 9 Ibid, p.27. 10 FAURE. Les opérations de maintien de la paix sous l égide des Nations Unies. Revue du commandement de la doctrine et l entraînement de l armée de Terre, 2, p.59,1996. 11 FRANÇA, Presidência da República. Défense et sécurité nationale:le livre blanc. Paris:2008, p.09. 12 Ibidem, p.65.

Programa de Pós-graduação em Ciências Aeroespaciais - UNIFA 80 conceito descrito pelo documento, há a distinção de três tipos de conflitos que as armas francesas poderão intervir: o conflito simétrico, assimétrico e dissimétrico 13. De acordo com o atual Livre Blanc, as operações de paz fazem parte da seguinte categorização 14 : a) Operation Spéciale: são operações baseadas em território francês ou em conjunto com forças multinacionais. Geralmente essas missões têm o objetivo de salvar reféns ou perseguir terroristas. b) Operation Moyenne: são operações em escala média que preveem a evacuação de nacionais em território estrangeiro, de ataque a alvos determinados e operações de retaliação a algum dano contra os interesses franceses; c) Operation Significative: são operações bilaterais ou multilaterais. É nesta tipologia que estão as operações de paz, ou seja, as de peacekeeping, restore-peace ou peace-enforcing; d) Operation Majoure: são operações militares que necessitam de alguma aliança ou coalizão. Geralmente são operações distantes da França. Por fim, para os franceses, a vitória só poderá ser obtida quando são atingidos os objetivos pós-conflitos, após uma intervenção militar com o recurso do uso da força 15. O esforço dos Estados-membros em tentar preencher esta lacuna deixada em aberto pela ONU está a ideia de que as Forças Armadas do século XXI estão próximas de uma ampliação de suas responsabilidades embrionárias. Além de promover a guerra, sua missão também será a de promover a paz em países que se encontram em dificuldades e que demandam uma ajuda do sistema internacional. 2.3 Alemanha O relacionamento entre a Alemanha e as Nações Unidas é determinado pela forma que foi construída a ordem internacional pós Segunda Guerra Mundial. Após a entrada das duas Alemanhas - Oriental e Ocidental na organização, somente a Alemanha Ocidental participou de Operações de Paz, em 1967 na UNFICYP, 1970 na UNEF II e 1989 na UNTAG. Entretanto é em seguida a unificação alemã que ocorrerá um incremento na participação alemã nas atividades de peacekeeping. O 13 FRANÇA, Centre de doctrine d emploi dês forces. Tactique générale. Paris, 2008, p.11. 14 FRANÇA, Presidência da República. Défense et sécurité nationale:le livre blanc. Paris:2008, p.200. 15 Intervenção, estabilização e normalização. Apud. FRANÇA, Centre de doctrine d emploi dês forces. Doctrine d emploi dês forces terrestres em stabilisation. Paris: 2006, p.05.

Programa de Pós-graduação em Ciências Aeroespaciais - UNIFA 81 inicio desta nova etapa deu-se em 1991 quando soldados alemães foram enviados à Turquia para atender refugiados curdos do oeste iraniano. Em 1991, o ministro do exterior, Hans- Dietrich Genscher havia declarado que a Alemanha assumiria todos os direitos e obrigações expressos na Carta das Nações Unidas, incluindo medidas as medidas relativas à segurança coletiva mesmo se tiver que mudar a sua Constituição para atender estes propósitos. Logicamente, o ministro estava se referindo ao artigo 87º da Magna Carta alemã que regulamentava a participação da Bundeswehr somente em casos de defesa de sua integridade territorial 16. Este imbróglio foi resolvido em julho de 1994 quando a Corte Constitucional Federal aprovou uma série de medidas que regulam a atuação das forças armadas alemãs junto as Nações Unidas, dentro as quais podemos destacar: 1. A participação alemã em missões de paz internacionais deve estar de acordo com o direito internacional; 2. A Alemanha nunca deverá engajar-se em operações de paz unilaterais, somente poderá participar em operações multilaterais, apoiadas por instituições internacionais como a União Européia, a OCDE e a OTAN; 3. Após atender estes dispositivos, as forças armadas deverão responder uma série de perguntas de maneira satisfatória. O mandato é claro? A proposta de ação militar está apoiada por uma compreensão política de resolução do conflito em questão? É razoável o equilíbrio de ganhos e perdas durante a missão? O critério de sucesso da missão em relação ao tempo é claro? Existe um plano de saída para uma situação de insucesso? 4. É necessária a aprovação parlamentar para a participação da Bundeswehr, levando em consideração com clareza - sobre os riscos e possíveis participação militares em áreas não demarcadas e deve se procurar o consensu entre todas as partes antes a entrada da Alemanha na missão; 5. A participação alemã não tem caráter escalatório durante o conflito. Em relação às definições operativas, a Bundeswehr em 1994 através da promulgação de seu Livro Branco, os princípios das forças armadas alemãs pós unificação. O objetivo imediato seria a procura de uma adequação maior de sua 16 ALEMANHA, Bundesministerium der verteidigung. Weißbuch 2006. Berlim: 2006.

Programa de Pós-graduação em Ciências Aeroespaciais - UNIFA 82 estrutura com a OTAN e mais tarde, esta estrutura iria suprir por meio da constituição de uma Força de Reação Rápida suas atribuições voltadas para as operações de paz. Assim sendo, segundo o atual Livro Branco de Defesa o acordo sobre as diretrizes alemãs acerca da natureza das operações de paz está limitado ao parâmetro do consenso do Direito Internacional sobre o tema e a operacionalidade a aplicação dos meios militares a este evento está ligado a existência da Força de Reação Rápida, instalada em Hammelsburg. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo em vista as dificuldades ocorridas durante as operações de paz do Camboja, Somália e antiga Iugoslávia, uma nova abordagem em relação ao uso dos meios militares nas operações de paz e principalmente ao recurso do uso da força nestas operações, em 2000, o secretário geral da ONU, Kofi Annan, convocou um grupo de especialistas liderados por Lakhdar Brahimi, para que fosse realizada uma revisão das atividades da ONU em relação à paz e à segurança internacionais. O resultado do trabalho ficou sendo conhecido como Relatório Brahimi 17. Neste relatório foi evidenciada a necessidade de mudanças na capacidade de planejamento e operacional no estabelecimento de futuras operações de paz. Ficou recomendado que, em virtude dos conflitos desta época serem deflagrados dentro dos Estados, a doutrina onusiana para as operações de paz deveria se nortear pelos conceitos da neutralidade, do consentimento das partes e do uso limitado da força, a partir da ampliação dos objetivos das operações de paz, legitimadas pela combinação dos dispositivos descritos nos capítulos VI e VII da Carta da ONU, mesclando o consentimento do primeiro e a autorização do uso da força, tanto na autodefesa quanto para o cumprimento do mandato, no caso do segundo. O relatório Brahimi deixou claro que, em relação aos objetivos dos contingentes militares, estes deverão ter uma capacidade militar dissuasória e ser habilitados a entrar em combate visando à proteção das populações civis. Uma das considerações a respeito do recurso ao uso da força é que o mesmo deve ser imparcial, porém distinguindo entre imparcialidade e neutralidade; 17 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comprehensive Review of the Whole Question of Peacekeeping Operations in all their Aspects, 20 de agosto de 2000.

Programa de Pós-graduação em Ciências Aeroespaciais - UNIFA 83 sobretudo por ocasião da defesa dos mandatos, os contingentes militares presentes nas missões de paz devem recorrer necessariamente ao uso da força a fim de atingir este objetivo. No entanto, não foi somente no âmbito jurídico que ocorreram mudanças. No momento que o campo de atuação das operações de paz passou a incluir o ambiente interno dos Estados-membros, os princípios se adaptaram a esta nova realidade. Porém, este novo cenário de atuação provocou uma nova abordagem em relação às atividades de peacekeeping que procuraram, também, ressoar sobre as causas do conflito, congregando tarefas militares, civis e humanitárias. Sendo assim, as operações de paz passaram a ser conhecidas como multidimensionais. É certo que as forças armadas têm se preocupado em estudar e treinar seus contingentes para participar nas operações de paz. A influência desta apreensão é verificada quando, ao se analisar as doutrinas atuais das forças armadas, há uma preocupação em relação ao pós-conflito, na promoção da estabilidade e na reconstrução. As mudanças ocorridas no âmbito operacional resultaram em uma fundamental transformação na forma e na natureza das operações de paz. O resultado é que as missões de paz têm se transformado em complexas operações de intervenção, cada vez mais focalizadas na utilização da força como instrumento para conseguir a paz, diferente das tradicionais missões de paz norteadas pelo capítulo VI da Carta da ONU. Esta modificação provoca sérias transformações nas doutrinas de operações de paz dos Estados que participam destas atividades. Um dos pontos centrais da análise sobre as doutrinas de operações de paz é que nela reside a responsabilidade de estabelecer um conhecimento conceitual comum entre os aliados e membros de alguma coalizão, pois este seria o primeiro passo para a interoperacionalidade tão necessária em casos de missões de paz. Assim, por seu turno, algumas diferenças operacionais das doutrinas poderão ser a fonte de atitudes diversas, além de causar uma confusão operacional em uma determinada missão.

Programa de Pós-graduação em Ciências Aeroespaciais - UNIFA 84 REFERÊNCIAS ALEMANHA, Bundesministerium der verteidigung. Weißbuch 2006. Berlim: 2006. BRASIL.Senado Federal. Subsecretaria de Edições Técnicas. Constituição da República Federativa do Brasil: Texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, Brasília, 2004. BRASIL. Ministério da Defesa. MD33-M-01: Manual de Operações de Paz. 2. ed. Brasília, 2008. BROWNE, Marjorie A. United Nations Peacekeeping: Issues for Congress. Washington: Library of Congress, 2003. CASSIDY, Robert M. Peacekeeping in the Abyss. Londres: Preager, 2004.. Armed humanitarian operations: The development of National Military doctrines in Britain, Canada, France and United States, 1991-1997. The Royal Military College of Canada. ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Join Publications 3-07.3, Join Tatics, Techniques, and Procedures for Peacekeeping Operations. Washington DC: US Government Printing Office, 2007. EVERSMANN, Matt. The Battle of Mogadishu: First Hand Accounts From the Men of Task Force Ranger. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. FAURE. Les opérations de maintien de la paix sous l égide des Nations Unies. Revue du commandement de la doctrine et l entraînement de l armée de Terre, 2,1996. FRANÇA. Presidência da República. Défense et sécurité nationale:le livre blanc. Paris: 2008.. Centre de doctrine d emploi dês forces. Tactique générale. Paris, 2008.. Centre de doctrine d emploi dês forces. Doctrine d emploi dês forces terrestres em stabilisation. Paris: 2006.. Assembléia Nacional. Comissão de Avaliação e Controle das Operações Militares Exterior sob Mandato Internacional, Rapport d information. Paris: 2008.. Centre de Doctrine d Emploi des Forces. Winning the Battle Building the Peace. Paris: 2007. FRASER, D., KIRAS, J. Peacekeeping with muscle: the use of force in international conflict resolution. Cornwallis: The Canadian Peacekeeping Press, 1997. GOTAB, Elanders. The challenges project. Challenges of Peace Operations: Into 21 st century: concluding report, 1997-2002. Estocolmo: Peace Challenges,2002. HILLEN, John. Blue Helmets: The strategy of UN military operations. Washington: Brassey s, 2000.

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