PATRIMÔNIOS CULTURAIS EM EXTINÇÃO: POVOS LITORÂNEOS DA COSTA BRASILEIRA Arlete Assumpção Monteiro Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Centro de Estudos Rurais e Urbanos-USP alugui@usp.br arlete.as@gmail.com Napoleão Bonaparte, imperador francês, é personagem de suma importância na História da América e, em especial, na do Brasil. A vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil, foi motivada pela invasão das tropas de Napoleão na Península Ibérica, trazendo inúmeros benefícios para o Brasil, no decorrer dos princípios do século XIX. Os ideais iluministas germinavam nas terras americanas dominadas pelas coroas da Espanha e Portugal, no final do século XVIII e princípio do XIX. Cuba, na época, era o bastião da Espanha na América, empório açucareiro de grande riqueza econômica e de influência política, exercia um papel preponderante na educação e nos aspectos científico e cultural. Cartagena, cidade portuária de Nova Granada, hoje Colômbia, próxima a ilha de Cuba, vervilhava com os ideais iluministas, objetivando a independência. Havia um febril intercâmbio de Cartagena com a ilha caribenha: Cuba. É nesse próspero cenário político-cultural que chega Dom João nas terras americanas, em 1808. Dom João nasceu no Palácio Real da Ajuda, em maio de 1767. Em 1785 casou-se com a infanta da Espanha Dona Carlota Joaquina. Pela morte de seu irmão D. José tornou-se herdeiro da coroa com o título 1
de Príncipe do Brasil, assumindo a regência da Coroa Portuguesa em fevereiro de 1792, devido a doença mental de sua mãe. O Palácio de Mafra, situado a 50 quilômetros de distância de Lisboa, era o refúgio predileto de Dom João. O ouro do Brasil que chegava à Portugal, transformou o Convento de Mafra em um palácio com mais de 5.000 janelas e portas e uma biblioteca magnífica com aproximadamente 40 mil obras. Foi na Biblioteca do Convento de Mafra que José Saramago pesquisou, por mais de um ano, para escrever O Memorial do Convento, que lhe deu o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, o primeiro escritor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel 1. Portanto, a política portuguesa se realizava nos muros do Convento de Mafra. Na realidade, o que o governo francês pretendia era o rompimento de Portugal com a Inglaterra, senhora dos mares. De Mafra, Dom João ouvia seus conselheiros, alguns propunham a união com a França, outros enfatizavam a união com a Inglaterra. Dom João não dava uma resposta definitiva. Foi o único que me enganou. Palavras de Napoleão, antes de morrer no exílio, referindo-se a D. João, regente de Portugal 2. Inesperadamente, D. João decide transferir a Corte Portuguesa para sua Colônia na América no final de 1807, transformando o Brasil em sede da monarquia, devido o perigo do avanço das tropas napoleônicas em terras portuguesas. Foi um transtorno geral no 1 A pesquisadora esteve no Convento de Mafra e em sua biblioteca quando realizava estudos sobre a Colonia de Nova Ericiera e Ericeira, cidade litorânea a 8 km de Mafra, Portugal, entrevistando a bibliotecária na ocasião, 1997. 2 GOMES, Laurentino. 1808 Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. Áudiolivro Editora. 2
embarque da corte, em Lisboa. O movimento das carruagens foi intenso: arcas, caixotes cheios de louças, documentos, a baixela real, centros de mesa, jóias e metade de todo o dinheiro que circulava no país. Os livros ficaram, chegando ao Rio de Janeiro muito tempo depois. E, para piorar a correria, no dia 27 de novembro de 1807, chovia. Ilustração 1. Achegada de D. João VI à Bahia, de Cândido Portinari, 1951. Fonte: www.brasil.gov.br/galeriadearte Ilustração 2. Chegada da Família Real de Portugal ao Rio de Janeiro, 7 de março de 1808. Óleo sobre tela. Geoff Hunt - RSMA/1999-69 X 92 3
cm.coleção Particular. Fonte: Museu Histórico Nacional. Exposição internacional "Um Novo Mundo, Um Novo Império: A Corte Portuguesa no Brasil", realizada de 8 de março a 8 de junho de 2008. www.museuhistoriconacional.com.br/mh-2008-001.htm. Chegando ao Brasil, Dom João - ainda na Bahia - tomou providências importantes como a abertura dos portos às nações amigas e se preocupou com a segurança. Houve insistência para que a Família Real permanecesse na Bahia, mas Dom João decidiu continuar viagem para o Rio de Janeiro, alegando a falta de segurança em Salvador, caso algum ataque viesse acontecer. Em 16 de março de 1816, aos 81 anos morreu a mãe de Dom João VI, Sua Majestade Real, Dona Maria I, Rainha de Portugal Brasil e Algarves, no Convento das Carmelitas, no Rio de Janeiro. Sua Alteza Real o Príncipe Regente Dom João começou a reinar como soberano no dia 20, sendo aclamado e coroado Rei do Reino Unido de Portugal Brasil e Algarves, em 6 de Fevereiro de 1818. Fora o único monarca europeu corado nas Américas. Em 1817, Dom João VI, preocupado com as fronteiras brasileiras, ordenou a formação de uma expedição para indicar um local 4
apropriado no sul do Brasil, para a fundação de uma colonia de povoadores, aos moldes das existentes em Portugal. O local indicado e, posteriormente, aceito por Dom João VI, foi a Enseada da Garoupas, no atual Estado de Santa Catarina. A demarcação dos terrenos foi oficializada. Os colonos começaram a chegar em 1818, para fundação do povoado que foi denominado de Colonia de Nova Ericeira. Eram famílias inteiras, acompanhadas por um pároco, um botica e uma ajudante de botica 3. A responsabilidade da Colonia ficou a cargo do Intendente de Santa Catarina, que deveria providenciar sementes e ferramentas para o desenvolvimento do povoado. Mas os colonos que chegaram eram pescadores. E, quando viram aquele mar lindíssimo, calmo e abrigado, decidiram levar avante a herança cultural que portavam: a pesca [Vide ilustrações 4 e 5]. Ericeira é uma cidade litorânea localizada aproximadamente 50 km de Lisboa e a 8 km de Mafra, portanto, próxima ao Convento de Mafra, local preferido de Dom João, na época de seu governo como Príncipe Regente de Portugal. A cidade de Ericeira tem uma história muito antiga, datada do tempo dos fenícios. Em 1229, o Grão-mestre a Ordem dos Avis, D. Frei Fernão Rodrigues Monteiro, atribuiu o 1º. Foral à Vila de Ericeira; em 1295 o Foral foi confirmado por D.Dinis 4. É na carta de foral 5 que surgem as primeiras referências aos pescadores da Ericeira; verifica-se o cuidado do legislador em seus os direitos e deveres dos que se encontravam sujeitos às tutelas dos donatários. Alguns itens constantes no Foral devem ser apontados neste artigo no que se refere aos pescadores, atividade que os moradores se dedicavam. "(...) Pescado. Vintena-20% do que se pescar. Os homens menores de 14 anos não pagam. Quando pescarem 3 MONTEIRO, Arlete Assumpção. O Trabalho como Agente de Educação. PUCSP, 1987, Tese de Mestrado. 4 A autora deste artigo teve a oportunidade de ver o Foral de Ericeira, quando de sua primeira visita à Freguezia da Vila de Ericeira, Portugal, nos idos de 1989; retornou várias vezes para desenvolver o estudo da Colonia de Nova Ericeira, hoje Porto Belo, em Santa Catarina. 5 Um Foral era como que a concessão da carta de alforria à povoação e suas populações, que assim passavam a gozar de determinados direitos e cumprir deveres. 5
em outro lugar, paguem dois soldos. Pagar-se-à 20% sobre a pesca da baleia. Poder-se-à apanhar toninhas e delfins sem impedimento. Conduto: de doze peixes tirem um antes de dar a vigésima. Se apanharem congro, figuem com ele. 6 A Vila de Ericeira foi Concelho desde 1229 até 1885, data em que, por reforma administrativa, foi extinto e a Vila integrada ao Concelho de Mafra. Com a extinção do Concelho de Ericeira, a vila que desfrutava de considerável importância como alfândega marítima, entrou numa fase de esquecimento 7. Até hoje os moradores de Ericeira batalham para a emancipação da Vila de Ericeira, desmembrando-se de Mafra, e voltando as suas origens autônomas. 6 O Foral de Ericeira no Arquivo Museu. Coordenação de Margarida Galvez Ventura. Lisboa: Edições Colibri, 1993, p. 89. 7 CRAVINA, Mario Gomes (discurso). Presidente da Junta da Freguezia de Ericeira.In VENTURA, Margaria Galvez (org.). O Foral de Ericeira no Arquivo-Museu, op.cit, p. 14. 6
Ilustração 3. Casario e uma das fontes de Ericeira, Portugal. Fonte: foto e acervo de Arlete Assumpção Monteiro, 2005. Ilustração 4. Porto dos Pescadores de Ericeira 7
Fonte: Foto e acervo de Arlete Assumpção Monteiro, 2005. Ilustração 5. Embarcação típica no Porto dos Pescadores de Ericeira. Fonte: Foto e acervo de Arlete Assumpção Monteiro, 2005. A Colonia de Nova Ericeira foi fundada em 1818 por Dom João VI. Devia ter um território vastíssimo porque o Dr. Herman Blumenau quando veio ao Brasil para oficializar seu projeto de colonização nas terras do interior no Vale do Rio Itajaí 8, em 1850, teve que pedir autorização à Câmara de Porto Belo, antiga Colonia de Nova Ericeira 9. A colonização alemã de Blumenau, Santa Catarina, prosperou, todavia já havia moradores no Vale do Itajaí, que inclusive ajudaram os novos colonos alemães na subida do Rio Itajaí para chegarem nas terras do projeto do Dr. Blumenau; possivelmente esses 8 A Nova Ericeira mudou de nome para Porto Belo, devido a beleza da região, possivelmente em 1824. 9 Pesquisa de campo junto ao Cartório de Porto Belo. 8
habitantes eram oriundos daqueles povoadores vindos de Ericeira, Portugal, para formar a Colonia de Nova Ericeira, implantada por D. João VI, em 1818 a 1822. Em 1824, a Nova Ericeira, passou para a denominação de Porto Belo, num movimento em que se pretendia apagar tudo que lembrasse os tempos coloniais e de submissão ao rei de Portugal, ou seja, após a Independência do Brasil, em 1822. O vasto território de Porto Belo foi sofrendo desmembramentos, através de movimentos autonomistas que criaram outros municípios em antigos vilarejos, como Camboriu, Tijucas, Itapema e Bombinhas, o último que foi criado. [Vide Ilustração 6]. Ilustração 6: Mapa: Porto Belo e Bombinhas, Santa Catarina 9
Fonte: www.google.com.br [imagens] Porto Belo, SC. Acesso junho de 2011. 10
Ilustração 7. Litoral de Porto Belo, Santa Catarina,BR. Fonte: www.google.com.br [imagens] Porto Belo, Santa Catarina. O desenvolvimento turístico que vem se processando no Brasil - em larga escala - está acarretando fortes transformações no patrimônio cultural de populações que vivem ao longo do litoral atlântico do país. São mega projetos de complexos turísticos, imobiliários e de lazer, em processo de implantação, que assustam, de imediato, o pesquisador, o intelectual e as populações locais. O deslumbramento ocasionado pelas ofertas econômicas até então impensáveis, motivam trabalhadores que se dedicam a atividade pesqueira, portadores de uma herança cultural de conhecer o mar, os ventos e o céu, o onde e como pescar, trazida pelos colonizadores portugueses, a se desfazerem de suas propriedades, acarretando deslocamentos humanos e culminando com a extinção de tradições, festas, saberes, crenças e práticas de trabalho. A pesquisa desenvolvida no litoral do Estado de Santa Catarina, na faixa compreendida desde o município de Navegantes até o município de Governador Celso Ramos, popularmente conhecido como Ganchos é um exemplo de que o não planejamento do patrimônio cultural e paisagístico está sofrendo com o avanço imobiliário. É um desmatar, destruir vilarejos, pauperizar 11
comunidades, um desconhecimento do saber que portam populações - como aquelas da antiga Colonia de Nova Ericeira que em 1229 já existia com leis e regulamentos, escritos através do Foral do Ericeira. A metodologia de pesquisa utilizada foi a História Oral, complementada com documentos manuscritos e impressos, observações e fotografias tiradas pela pesquisadora durante o trabalho de campo. Foram pesquisados os arquivos do Museu da Casa de Misericórdia de Ericeira, Portugal e da Torre do Tombo, Lisboa, Portugal; no Brasil foram pesquisados os livros antigos do Cartório de Porto Belo, Santa Catarina, os livros da Igreja de Bom Jesus dos Aflitos, igreja fundada quando da chegada dos primeiros colonos vindos de Ericeira, Portugal, em 1818, cujos dados podem ser encontrados no acervo da Arquidiocese de Santa Catarina, em Florianópolis e realizou-se intensa pesquisa nos documentos manuscritos do Arquivo do Estado de Santa Catarina. A pesquisa demonstrou que os moradores das comunidades pesqueiras da costa continental sul-brasileira, são descendentes dos colonizadores oriundos da região de Ericeira, Portugal, localizada a 50 km ao norte de Lisboa, que chegaram ao Brasil a partir de 1818, numa política de povoamento implantada por D. João VI, planejada e desenvolvida com a mudança da corte portuguesa para o Brasil, para garantir as fronteiras no sul do país. 12
Ilustração 8. Ancoradouro da Prainha do Araçá, Porto Belo, Santa Catarina. Fonte: foto e acervo de Arlete Assumpção Monteiro, 2005. Ilustração 9. Embarcações recém-chegadas de pescadores no trapiche da Prainha do Araçá, Porto Belo, Santa Catarina. 13
Fonte: foto e acervo de Arlete Assumpção Monteiro, 2005 Ilustração 10. Barracão dos equipamentos de pesca; ao fundo moradias dos pescadores Fonte: foto e acervo de Arlete Assumpção Monteiro, 2005. 14
Ilustração 11. Orla marítima de Camboriu, Santa Catarina, antiga Colonia de Nova Ericeira, Brasil. Fonte: www.blogdaconstrucao.com.br/.../ acessado em 10.06.2011. A situação atual da região é de uma mutação constante [Vide Ilustração 11] quebrando laços associativos entre os indivíduos e criando muitas vezes a miserabilidade das famílias dos antigos pescadores. Outras vezes, presencia-se a luta dos membros das famílias que, por não venderem suas terras nas proximidades do mar, transformam suas propriedades em restaurantes ou locais comerciais improvisados, passando a desempenhar atividades que desconhecem, numa batalha pela sustentabilidade econômica, cercados e pressionados pelo grande capital que os rodeia. Todo um patrimônio cultural - material e imaterial - e paisagístico está se perdendo a passos largos, caminhando rapidamente para a extinção precoce e sem registros. Mesmo assim, ainda se presencia a atividade pesqueira na Vila do Araçá, em Porto Belo, Santa Catarina [Vide Ilustrações 8, 9 e 15
10], um dos últimos redutos de pescadores, oriundos da Colonia de Nova Ericeira, fundada nos idos de Dom João VI. Bibliografia GOMES, Laurentino. 1808 Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. Áudiolivro Editora. MONTEIRO, Arlete Assumpção. O Trabalho como Agente de Educação. PUCSP, 1987, Dissertação de Mestrado. MONTEIRO, Arlete Assumpção. A Ericeira Brasileira. Trajectoria de uma colônia portuguesa no litoral sul-brasileiro. Ericeira, Portugal: Editora Mar de Letras, 2000. OLIVEIRA, Valeria e alli (org.) Migração: múltiplos olhares. São Carlo, SP: Pedro e João Editores, 2011. VENTURA, Margaria Galvez (org.). O Foral de Ericeira no Arquivo- Museu. Lisboa, Edições Colibri, 1993. 16