Todos os sonhos do mundo Desidério Murcho Universidade Federal de Ouro Preto
Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Fernando Pessoa / Álvaro de Campos, A Tabacaria (1928)
Os seres humanos têm uma capacidade especial para dar um passo atrás e inspeccionar-se a si mesmos e às vidas a que se entregam, com o espanto distanciado com que observam uma formiga que se esforça para subir um monte de areia. Sem desenvolver a ilusão de que conseguem escapar da sua posição profundamente específica e idiossincrática, podem vê-la sub specie aeternitatis e o que vêem é a um tempo deprimente e cómico. Nagel, O Absurdo (1971)
Três ideias que Nagel rejeita A nossa vida não tem sentido porque: 1. Somos mortais 2. Somos muito pequenos e insignificantes 3. As nossas cadeias de justificação não levam a coisa alguma
Muito bem, serás mais famoso do que Gogol, Pushkin, Shakespeare, Molière, mais famoso do que todos os escritores do mundo e depois? E nenhuma resposta absolutamente eu encontrava.
E isto estava a acontecer-me quando tudo indicava ser de considerar que eu era um homem completamente feliz; isto aconteceu-me quando não tinha ainda cinquenta anos. Tinha uma mulher bondosa e dedicada que eu amava, bons filhos e bens que cresciam sem qualquer esforço da minha parte. Era mais do que nunca respeitado por amigos e conhecidos, elogiado por estranhos, e podia dizer sem qualquer ilusão que gozava de certa celebridade. Tolstói, Confissão (1884)
O que torna o desafio de Nagel importante é precisamente a ideia de que mesmo uma vida humana activamente dedicada a projectos valiosos não pode iludir o profundo absurdo que lhe é inerente.
Eu não conseguia atribuir qualquer sentido racional a um único acto em toda a minha vida. O que me surpreendia era não ter compreendido isso desde sempre. Toda a gente soubera sempre disso. A doença e a morte, mais cedo ou mais tarde, acabariam por vir (na verdade, aproximavam-se já), afectando toda a gente e eu próprio, e nada restaria excepto podridão e vermes.
Os meus feitos, sejam eles quais forem, serão esquecidos mais cedo ou mais tarde, e eu próprio não existirei mais. Porquê, então, fazer seja o que for? Como pode alguém não ver isto e viver? É isso que é espantoso! Só é possível viver enquanto a vida nos intoxica; quando ficamos sóbrios não podemos deixar de ver que tudo isto é uma ilusão, uma estúpida ilusão! E isto não é divertido nem espirituoso; é apenas cruel e estúpido. Tolstói, Confissão (1884)
Ele morrerá e eu morrerei. Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos. A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também. Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, E a língua em que foram escritos os versos. Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. Fernando Pessoa / Álvaro de Campos, A Tabacaria (1928)
Ponha eu como puser a questão de saber como viver, a resposta é: de acordo com a lei de Deus. Haverá algo de real que resulte da minha vida? Tormento eterno ou felicidade eterna. Que sentido há que não seja destruído pela morte? A união com o Deus infinito, o paraíso. Tolstói, Confissão (1884)
Uma vida que é absurda se durar setenta anos não será infinitamente absurda se durar toda a eternidade? Nagel, O Absurdo (1971)
Quase todos os criadores da Utopia se parecem com o homem que lhe dói os dentes e pensa consequentemente que a felicidade consiste em não ter dor de dentes. Orwell, Podem os Socialistas ser Felizes? (1943)
Uma não resposta É apenas uma esperança pouco razoável de que, numa existência que somos incapazes de imaginar, poderemos desenvolver actividades igualmente inimagináveis que darão um sentido pleno também infelizmente desconhecido às nossas imortais existências.
O problema da identidade A resposta mais óbvia a esta hipótese é que não há grande diferença entre isto e a morte porque se perde a continuidade relevante para que essa tal pessoa que subsiste daqui a vinte milhões de anos tenha uma relação suficientemente significativa com o que hoje sou para que não seja irracional da minha parte não só desejar chegar lá como considerar que é o chegar lá que dará sentido ao que hoje sou e faço e penso.
O dilema 1. Na existência perene somos parecidos ao que agora somos 2. Na existência perene somos totalmente diferentes do que agora somos
Se as nossas vidas são absurdas dado o nosso tamanho actual, por que seriam menos absurdas se ocupássemos todo o universo (ou por sermos maiores ou por o universo ser menor)? Nagel, O Absurdo (1971)
Assim, se o que fazemos tem algum fim que queremos por si e se tudo o mais que queremos é devido a esse fim; e se não escolhemos tudo devido a outra coisa (porque isto levaria a uma sequência infinita, tornando os nossos desejos infrutíferos e vãos), então é claro que isto será o bem, na verdade, o bem principal. Aristóteles, Ética Nicomaqueia, 1094a
Se o argumento é que as nossas vidas são inevitavelmente absurdas porque nunca podemos chegar a fins últimos, baseia-se numa premissa falsa, pois a verdade é que chegamos muitas vezes a fins últimos.
O problema, ao invés, é a impressão viva de que os nossos fins últimos, tantas vezes realizados, e por mais excelentes que sejam do ponto de vista humano, são insignificantes de um ponto de vista mais alargado.
Na vida comum, uma situação é absurda quando inclui uma discrepância óbvia entre a pretensão ou aspiração e a realidade: uma pessoa faz um complicado discurso a favor de uma moção que já foi aprovada; um conhecido criminoso é eleito presidente de uma importante fundação filantrópica; alguém declara pelo telefone o seu amor a uma voz gravada; no momento em que alguém é proclamado cavaleiro as calças caemlhe. Nagel, O Absurdo (1971)
O valor é algo que resulta do que fazem criaturas como nós, que valorizam umas coisas em detrimento de outras
Se for conceptualmente impossível que exista valor objectivo nessa acepção, não pode ser particularmente relevante que a nossa vida não tenha valor objectivo, nessa acepção.
Se o valor é uma propriedade relacional que envolve um agente que valoriza, a inexistência de valor de um ponto de vista mais distanciado é apenas a consequência de não estar lá agente algum que valorize.
Uma ânsia inexistente Teremos uma ânsia de importância cósmica, última e superlativa, para lá da mera importância que evidentemente temos para nós mesmos?
O que o autor cristão é incapaz de fazer é descrever um lugar ou condição onde o ser humano comum queira activamente estar. Muitos ministros revivalistas, muitos pastores jesuítas (veja-se, por exemplo, o fantástico sermão no A Portrait of the Artist, de James Joyce) aterrorizaram a sua congregação quase irrevogavelmente com as suas imagens lexicais do Inferno.
Porém, mal se chega ao Céu, foge-se logo para palavras como êxtase e beatitude, quase nem se tentando dizer em que consistem. Talvez o pedaço mais vital de escrita sobre este tema seja a famosa passagem em que Tertuliano explica que uma das principais alegrias do Céu é assistir às torturas dos danados. Orwell, Podem os Socialistas ser Felizes? (1943)
Muito do que de superlativamente valioso os seres humanos têm feito neste planeta é bem mais sólido do que o de mais vívido temos tentado imaginar no que respeita ao valor superlativo para lá do superlativo humano.
Uma vida humana com sentido com o único tipo real e humano de sentido é, em grande parte, uma vida dedicada à procura cuidadosa do que tem genuinamente valor.