A violência e os seus limites



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Opção Lacaniana online nova série Ano 5 Número 13 março 2014 ISSN 2177-2673 * Romildo do Rêgo Barros A abordagem psicanalítica da violência encontra, como se sabe, certas dificuldades. Uma delas vem do fato de que a violência não se deixa abranger por uma definição única. Podemos pensar a violência como fenômeno ou irrupção, como a brusca ruptura de uma sequência, ou, a exemplo de Freud, como algo que está na base da fundação do pacto, como fundamento último do laço social e não como sua negação. A esse respeito, Freud escrevia a Einstein: Atualmente, direito e violência se nos afiguram como antíteses. No entanto, é fácil mostrar que uma se desenvolveu da outra e, se nos reportarmos às origens primeiras e examinarmos como essas coisas se passaram, resolve-se o problema facilmente 1. Além disso, nem toda violência é simplesmente destrutiva, no sentido de conduzir à morte ou à dissolução do laço social. Nem toda ela pode ser entendida como uma explosão irracional, e nem sempre é uma pura manifestação da pulsão de morte. Como escreveu François Ansermet, a violência implica para quem a produz ao mesmo tempo forças de vida e de destruição 2. Não sabemos onde começa a violência e nem até onde vai. Além disso, ela é múltipla e tem também gradações, o que faz com que se use o mesmo termo para atos de * Eduardo Coutinho é morto a facadas pelo filho em casa (primeira página de O Globo, aos 3 de fevereiro de 2014). Este texto sobre a violência estava chegando à sua forma final quando eu soube do assassinato de Eduardo Coutinho e das suas horríveis circunstâncias. Coutinho, um mestre do cinema e um dos mais importantes documentaristas da atualidade, participou em 2009 como convidado das Jornadas Clínicas da EBP-Rio, quando tivemos o privilégio de ouvi-lo e conhecer seu pensamento sobre o cinema e a cultura, expresso com grande simplicidade. Este meu artigo passa a ser, portanto, uma homenagem que presto a esse grande artista brasileiro. 1

intensidades e sentidos muito diferentes. Apesar, no entanto, de escapar ao nosso vocabulário específico, a violência interpela o psicanalista (assim como o governante e o educador, as três profissões qualificadas por Freud de impossíveis) em pelo menos dois aspectos: primeiramente, há em qualquer violência uma suspensão da vigência do pacto simbólico, durante a qual não são os significantes-mestres ou os semblantes da lei que comandam mesmo que a violência seja praticada em seus nomes. E em seguida, a violência, como tal, exclui a fala, a menos que a própria fala já seja uma manifestação de violência, como no caso do insulto, significante no real. Na pergunta que faz Lacan na sua Introdução ao comentário de Jean Hyppolite, de 1954, a violência está situada em referência ao seu limite extremo, nos confins da fala: Acaso não sabemos que nos confins onde a fala se demite começa o âmbito da violência, e que ela já reina ali, mesmo sem que a provoquemos? 3. No contexto da sua pergunta, Lacan estava tratando da fala no interior da experiência analítica, sobretudo das situações nas quais alguns analistas usam como técnica a revelação da agressividade que estaria por detrás, como se diz, do que é dito. Em um outro escrito 4, Lacan dá um conselho a esses analistas: se querem falar da guerra, conheçam pelo menos as suas regras, aprendam com Clausewitz. Como o fizera, aliás, o próprio Lacan, adaptando à direção do tratamento analítico a trilogia proposta pelo autor de Da Guerra: tática (interpretação), estratégia (transferência) e política (falta-a-ser do analista). Onde estava a violência, portanto, a fala deveria advir. Em outros termos, a violência poderia, em princípio, ser vencida com a criação ou revelação de um significantemestre, de algo que funcionasse como significante da Lei. Isso constitui, aliás, um princípio geral da prática 2

analítica, desde que Freud opôs a fala ao ato: enquanto a fala conduz à rememoração, afirmava ele, o ato faz um curto circuito, e, literalmente, realiza o que deveria ser rememorado. No seminário sobre As formações do inconsciente, Lacan nos diz algo que vai mais ou menos no mesmo sentido: Para relembrar coisas de evidência primária, a violência é de fato o que há de essencial na agressão, pelo menos no plano humano. Não é a fala, é até exatamente o contrário. O que pode produzirse numa relação inter-humana são a violência ou a fala 5. Lacan situa, portanto, a violência no limite da fala. Ou como o seu contrário. Ou como a sua alternativa. Sabemos que a fala, além de estar situada aquém ou além da violência, é muitas vezes considerada como o seu antídoto, o que pode chegar a uma degradação da ideia que se pode ter sobre a função da fala. A nossa época, por exemplo, que conhece tantos casos graves de violência, individual ou coletiva, recomenda mais do que qualquer outra a panaceia do diálogo, que se supõe indicado para qualquer mal entendido, ameaça, disfunção ou desavença. A violência seria então, do ponto de vista dessa ideologia do diálogo universal, efeito do recurso insuficiente à fala, e não o seu real ou o seu resíduo permanente. Como se fossem, violência e fala, inversamente proporcionais. Tanto a violência quanto a fala exigem condições próprias, que não são as mesmas e nem funcionam no mesmo tempo, o que impede que uma explicação elucide completamente um ato violento. É o que parece salientar Lacan, na continuação da passagem do seminário As formações do inconsciente citada acima, na qual põe em questão a possibilidade de recalcar a violência: Se a violência se distingue na sua essência da fala, pode colocar-se a questão de saber em que 3

medida a violência como tal para distingui-la do uso que fazemos do termo da agressividade pode ser recalcada, uma vez que postulamos como princípio que só pode ser recalcado, em princípio, aquilo que revela ter ingressado na estrutura da fala, isto, a uma articulação do significante 6. Há, pois, uma relação importante que, aliás, não interessa somente aos psicanalistas - entre violência e passagem ao ato, quando a irrupção violenta transgride os limites e os recursos da fala, anulando o laço e o endereçamento ao Outro. Isto impõe ao psicanalista uma tarefa e um lugar - que escapa à interpretação. Resta definir quê recursos temos, clínicos e políticos, para responder à violência, além da fala e do diálogo, que são insuficientes. A substituição da violência pela fala, que constitui um dos aspectos fundamentais da interpretação psicanalítica, sempre foi, igualmente, a grande esperança humanista: um dia, pensa-se desde o Iluminismo, o avanço do saber transmissível afastará as trevas da superstição. Os costumes avançarão junto, e a humanidade sairá transformada. Vem daí a importância que passou a ter para a política a referência ao futuro, onde se situam as consequências do que está acontecendo no presente. Todos conhecemos as frases do tipo: não podemos comprometer as gerações futuras, precisamos construir o futuro, ou, um pouco mais angustiadamente, nossos filhos e netos nos julgarão, ou, se continuamos assim, o mundo dos nossos bisnetos será um deserto. Mas a pergunta feita por Lacan não termina aí, assim como a opinião de Freud sobre as virtudes da fala não exclui a pulsão de morte. A segunda parte da pergunta nos interessa particularmente: [ ] ela (a violência) já reina ali (ainda na vigência da fala), mesmo sem que a provoquemos. Isso significa que a violência já está contida na fala, mesmo se nós a deixarmos quieta? Ou que a fala tem 4

origem em uma espécie de violência? Seja como for, a substituição metafórica nunca será completa: ficará sempre um resíduo de violência no uso da fala. Ou seja, a metáfora, com o acréscimo significante ao qual está ligada, não esgota tudo. Há algo que resta, e uma das suas manifestações pode ser a violência. No seu primeiro seminário, sobre os escritos técnicos de Freud, Lacan entendia a intersubjetividade não como algo que se situaria entre dois sujeitos, ou algo que estaria ora em um e ora em outro, mas como o próprio lugar onde se constitui o sujeito. Este não estaria em nenhum dos dois indivíduos, mas nos efeitos do encontro dos dois. Lacan explicava, por exemplo, a relação que há entre o sádico e a sua vítima como o fundamento do sadismo, que não seria desta forma algo que está contido no apetite sádico e que será aplicado à vítima, simplesmente, mas no encontro, que, no entanto, não é complementar. Aqui estaria, ao mesmo tempo, o seu motor e a sua precariedade. [...] no olhar do ser que atormento, devo sustentar o meu desejo por um desafio, um challenge de cada instante. Se não está acima da situação, se não é glorioso, o desejo cai na vergonha 7. Consideremos ainda o exemplo do sadismo, mesmo sabendo que a violência não é necessariamente o aspecto principal da estratégia perversa, uma vez que, como ensinava Lacan, não é a dor o que busca o sádico na sua vítima, mas sua angústia, que sobrevém como uma hiância entre sua existência de sujeito e o que ele sofre, aquilo de que pode padecer em seu corpo 8. A vergonha surge, na montagem sádica, por força do retorno do olhar da vítima sobre o agente da violência. Este último, que olhava a sua vítima - e é este olhar o que o constitui fundamentalmente como sádico, - passa a ser olhado, e nessa inversão dá-se a vergonha ou o horror do seu lado, como efeito da quebra da correspondência, que 5

era precária. Assim, na imagem usada por Lacan, o estoico produz essa inversão: Imaginemos uma réplica de Epícteto na experiência sadiana: Vê, tu a quebraste, diz ele, apontando para sua perna. Acaso reduzir o gozo à miséria desse efeito em tropeça sua busca não é transformála em horror 9. A violência, que de alguma forma é sempre um atentado contra o íntimo no sentido de um lugar não submetido ao olhar do Outro que tem esta palavra para Gérard Wajcman 10, suscita uma defesa dessa dimensão do sujeito 11, sob a forma do pudor ("termo antônimo da vergonha 12 ) ou da inviolabilidade do corpo (expressão ouvida certa vez de um antigo preso político como argumento contra a tortura). E, em relação ao papel e função da psicanálise, trata-se de criar uma alteridade que, conquanto externa, não seja uma pura efração. Talvez possamos dizer, seguindo para isso um conselho dado por Lacan - embora não seja muito fácil situar como isso se daria na prática -, que a vergonha 13 é um recurso de que pode dispor a psicanálise contra a violência, além do trabalho representado pela associação livre e pelo relato, por parte do sujeito, das suas ficções. Envergonhar um sujeito, ou seja, alçar a vergonha à condição de ato, é de certa forma devolver ao sujeito a responsabilidade que é sua, e que a passagem ao ato neutraliza. Como escreveu Éric Laurent, a posição de envergonhar não consiste em fixar, mas em dissociar o sujeito do significante-mestre, e, com isso, fazê-lo ver o gozo que ele extrai desse significante 14. O comentário de Laurent, me parece, vai na mesma direção de uma definição dada por Lacan à vergonha: o único signo cuja genealogia se pode assegurar, ou seja, ele descende de um significante 15. 6

Mas, de que vergonha se trata, se acreditamos que a que foi preconizada por Lacan, inclusive como efeito desejável em uma análise, não significa reforçar o olhar superegoico do Outro? A partir da distinção proposta por Laurent, pode-se entender que a vergonha tem uma dupla direção: pode fixar o sujeito no seu gozo e aqui temos a sua vertente superegoica -, ou separá-lo, ou seja, dissociá-lo do S 1, o que lhe permite ver como goza do significante. 1 FREUD, S. (1996/1933[1932]). Por que a guerra? (Einstein e Freud). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago Editora, p. 197-198. 2 ANSERMET, F. (2003). Les sources subjectives de la violence. In: Revue Médicale Suisse, n. 543. Suiça: SMSR. Disponível em < http://revue.medhyg.ch/article.php3?sid=23355#top>. IDEM. La violence implique pour celui qui la produit à la fois des forces de vie et de destruction. Disponível em < http://titan.medhyg.ch/mh/formation/print.php3?sid=23355>. 3 LACAN, J. (1998[1954]). Introdução ao comentário de Jean Hyppolite sobre a Verneinung de Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 376. 4 IDEM. (1998[1958]). A direção do tratamento e os princípios do seu poder. In: Escritos. Op. cit., p. 596. 5 IDEM. (1999[1957-1958]). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 471. 6 IDEM. Ibidem. 7 IDEM. (2009[1953-1954]). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 287. 8 IDEM. (2005[1962-1963]). O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 117. 9 IDEM. (1998[1962]). Kant com Sade. In: Escritos. Op. cit., p. 783. 10 [...] a possibilidade do íntimo é a possibilidade da própria psicanálise. Cf. WAJCMAN, G. Intime exposé, intime extorqué. In: The Symptom Online Journal For Lacan.com, n. 8. Disponível em: < http://www.lacan.com/symptom8_articles/wajcman8.html>. 11 Jacques-Alain Miller esclarece essa questão propondo que o íntimo que a vergonha busca atingir está em relação com o gozo, assim como a culpa se refere ao desejo. MILLER, J.-A. (dez. 2003). Nota sobre a honra e a vergonha. In: Opção Lacaniana Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 38. São Paulo: Edições Eolia, p. 9. 12 IDEM. Ibidem. 13 O declínio atual da vergonha foi apontado por Lacan em mais de uma ocasião. Jacques-Alain Miller, por sua vez, sintetizou assim a questão: estamos na época de uma eclipse do olhar do Outro 7

como portador de vergonha. MILLER, J.-A. (dez. 2003). Op. cit., p. 10. 14 LAURENT, E. (2012). Variaciones sobre el mal. In: Dispar Revista de psicoanálisis y filosofía, n. 9. Buenos Aires: Grama ediciones, p. 19. 15 LACAN, J. (1992[1969-1970]). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 172. 8