AFASIA E APRAXIA DE FALA: DA NATUREZA DESSA RELAÇÃO



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Transcrição:

2561 AFASIA E APRAXIA DE FALA: DA NATUREZA DESSA RELAÇÃO Melissa Catrini PUCSP/CNPQ Quando falamos em afasia, estamos nos referindo a uma alteração da linguagem admitida como sintomática ou se quisermos, patológica; que ocorre após uma lesão cerebral e pode apresentar-se tanto como um distúrbio de expressão, quanto de compreensão (ou ambos). Deve-se assinalar que essas tais alterações podem afetar a linguagem oral e/ou escrita. É comum, por outro lado, a incidência de problemas associados como aqueles disartria/disartrofonia, apraxia/dispraxia e agnosia. Ao incluirmos a afasia, nesta seqüência, aglutinamos quatro categorias clínicas que fazem alusão a distúrbios neurológicos cuja conseqüência clínica remete a sintomas motores (disartria e apraxia), sensoriais (agnosia) e lingüísticos (afasia). Interessa-nos assinalar, quanto a esse ponto, o fato de que tais transtornos podem ser concomitantes - e freqüentemente o são -, como atesta a clínica de linguagem com afásicos e a própria clínica médica. Nesse trabalho, especificamente, o foco da discussão é a relação entre a apraxia de fala e a afasia. O termo apraxia foi cunhado por STEINTHAL em 1871, para denominar déficits na relação entre movimentos e objetos com os quais os movimentos estavam referidos/relacionados (HÉCAEN & RONDOT, 1985, apud HEILMAN & ROTHI, 1997, p. 08). Diferentemente da afasia, a apraxia parece ser uma patologia controversa e de difícil definição. Muitos autores a definem como um transtorno da atividade gestual que ocorre em um sujeito cujos sistemas responsáveis pela execução do ato motor estão relativamente íntegros e sem déficit intelectual significativo RODRIGUES (1989, p. 99). Em alguns momentos, o termo apraxia é utilizado para indicar uma desordem do movimento voluntário, no qual o movimento involuntário está preservado. Outros referem que a desordem do movimento advém de um problema de memória do gesto (ROTHI & HEILMAN, 1997). Encontramos, ainda, a apraxia como uma desordem neurológica da habilidade do movimento intencional aprendido que não é explicado por déficit do sistema motor elementar ou sensitivo (ROTHI & HEILMAN, 1997, p. 03), ou como prejuízo do movimento voluntário e intencional, o qual não pode ser atribuído a defeito ou fraqueza muscular (LESSER, 1978/81, p. xi). Note-se, nas acepções acima mencionadas, observamos a influência do trabalho de JACKSON (1884 e 1932). HUGHLINGS JACKSON (1932) foi o primeiro a apresentar a descrição da apraxia ao relatar o caso de um paciente que era incapaz de protrair a língua sob comando, embora fosse capaz de compreender o mesmo e não apresentasse evidência de fraqueza que pudesse explicar tal inabilidade. O mesmo foi observado com outros movimentos orofaciais sob comando (HEILMAN & ROTHI, 1997, p. 08). Há, por assim dizer, diferentes possibilidades de leitura acerca do que seria a apraxia. De acordo com HEILMAN & ROTHI (1997), durante o último século [o termo apraxia] tem sido usado para descrever uma extensa variedade de desordens neurologicamente induzidas, adquiridas e desenvolvimentais (ibid.; p.01). Mais do que isso, afirma-se que o mecanismo subjacente é único para cada tipo (p.07). Diante dessa questão, AJURIAGUERRA & TISSOT (1969, apud ROTHI & HEILMAN, 1997, p. 01) sugerem o abandono do conceito geral em favor da descrição de quadros específicos: apraxia ideomotora, ideatória, melocinética, construtiva e tipos particulares, como a apraxia para vestir-se. Podemos citar, ainda, trabalhos como o de LURIA (1981) e LIEPMAN (1900/1977 apud ROTHI & HEILMAN, 1997) que sugerem classificações na mesma linha. Na definição apresentada por RODRIGUES (1989), dois apontamentos dizem da problemática envolvida na definição de apraxia. Em primeiro lugar, diz ele, trata-se, via de regra, de uma definição por negação. Isto é, a apraxia é definida pelo que ela não é: (...) O paciente tem plena consciência do ato a ser realizado [não há alteração cognitiva], sem problemas gnósicos (perceptuais), de atenção ou rebaixamento de inteligência (ibid.; p. 99).

2562 Além disso, não se observam problemas musculares, movimentos involuntários ou incoordenação cerebelar. Em segundo lugar, a presença das palavras relativamente e significativo, presentes na definição por ele apresentada como genérica e mencionada acima, chamam a atenção. O problema do uso destes termos está na própria inexatidão que eles comportam. Discretos prejuízos nestes aspectos a presença de pequenas paresias, discretos movimentos involuntários, por exemplo não atrapalhariam o diagnóstico de apraxia? Tamanha controvérsia é notória na literatura específica da área, mas o que a explicaria? Parece-nos que no âmago da discussão está uma polêmica ainda mais profunda acerca da natureza da apraxia. LIEPMAN (1900/1977) representou no século XX um importante avanço para os estudos dos distúrbios da ação. Ele foi o primeiro a aplicar a forma da análise cognitiva neuropsicológica à desordem comportamental da apraxia, seguindo os sistemas de processamento de informação e conexões modulares já presentes nas explicações propostas por seu professor Wernicke para as síndromes afásicas. Nesse caminho, descreveu três tipos de apraxia: ideomotora, ideacional e melocinética. Em seu primeiro grande manuscrito sobre a apraxia, o autor empenha-se em demonstrar que a apraxia não é uma desordem do comportamento simbólico, uma desordem motora elementar ou uma desordem do reconhecimento (agnosia) (HEILMAN & ROTHI, 1997, p. 08). Desse modo, contrapõe-se a idéia de FINKELNBURG, o qual, em 1873, ao observar afásicos, advogou a favor da apraxia enquanto uma inabilidade para produzir símbolos por meio de gestos. Colocando em paralelo a afasia e a apraxia, entendia a primeira como uma inabilidade para compreender ou expressar símbolos e a segunda como um efeito da assimbolia. LESSER (1978/81) acompanha FINKELNBURG, ao referir que muito comum no paciente afásico é a apraxia gestual, a qual se refere a uma dificuldade na coordenação voluntária dos movimentos do braço e da mão (e/ou da perna), para demonstrar ações simbólicas. Por exemplo, o paciente consegue escovar os dentes. Solicitado a demonstrar como se faz, sem a presença da escova de dente, não consegue. Tenta várias vezes sem sucesso. Assim, ele substitui a escova pelo dedo, o que o ajuda, tornando a situação quase um reflexo natural. Note-se que, a discussão a respeito da natureza da apraxia vem de longa data e é permeada pela polêmica relação entre afasia e apraxia. Argumentos no sentido de independência entre os dois quadros variam entre a possibilidade de haver apraxia sem afasia associada e vice-versa (LIEPMAN, entre outros) e evidências apresentadas no sentido de afirmar que o grau de severidade de uma não implica no grau de severidade da outra quando associadas (GOODGLASS & KAPLAN, 1963 apud HEILMAN & ROTHI, 1997). No que se refere a apraxia ideomotora, uma parte desse debate gira em torno do quadro sintomático da apraxia e a sua relação com a fala, ou melhor, com o comando verbal. Argumenta-se, por exemplo, que muitas tarefas ou gestos não necessitam da linguagem para serem realizados e, mesmo assim, pacientes apresentam-se apráxicos (LIEPMAN & MAAS, 1905). Um contra argumento diz que não é sempre possível distinguir dificuldades práxicas de dificuldades na compreensão verbal. Somente o comportamento pode ser mensurável e ele é o resultado da complexa interação entre o estímulo que o eliciou, o processo mental interno e a execução da resposta. Portanto, o lingüístico compartilha do produto final (LESSER, 1976). Discute-se, também, a dominância hemisférica cerebral para a práxis e para a fala/linguagem (haveria uma dependência com relação à área anatômica, as quais seriam adjacentes? (LESSER, 1978/81, p.59)), a hipótese de desconexão entre os hemisférios direito e esquerdo com a lesão do corpo caloso, a hipótese de lesão no giro supramarginal esquerdo e na área motora suplementar (córtex pré-motor na porção medial do lobo frontal), como possíveis causas para apraxia gestual. É claro que todos estes pontos são facilmente levantados quando o que está em questão é a apraxia ideomotora, um déficit na produção de movimentos aprendidos e intencionais, ou a seqüência de gestos para o manuseio de objetos e ferramentas como na apraxia ideacional/ ideatória. O que dizer, contudo, quando em questão está a apraxia de fala? O nome apraxia de fala tornou-se de uso popular pela influência de Frederic Darley (1968) e seus colegas da Clínica Mayo (SQUARE; ROY & MARTIN, 1997). Outros nomes são encontrados na literatura, tais como apraxia verbal, desintegração fonética e afemia. Uma

2563 acepção, muito conhecida e aceita na Neurologia quando se trata desse quadro particular, é que a apraxia de fala é uma dificuldade na realização de movimentos complexos por conseqüência de prejuízo na capacidade de programar a posição da musculatura dos órgãos fonoarticulatórios e, por isso, de controlar a produção volitiva de fonemas e organizar e ordenar os movimentos musculares para a produção das palavras. Certo é que apraxia de fala não permanece inócua a toda controvérsia envolvendo a definição de apraxia. Mesmo de modo geral, toda discussão a respeito da natureza da apraxia envolve sua relação (ou não) com a afasia, ou melhor, com o domínio do lingüístico, como já foi brevemente mencionado. No caso da apraxia de fala, o debate parece impreterível em duas frentes principais: (a) relação com a afasia e (b) relação com a disartria. Segundo VIEIRA (1992), Broca propôs uma classificação para os distúrbios da fala e produziu quatro explicações: Ausência de uma idéia a exprimir; Ausência do conhecimento das relações que a convenção estabelece entre as idéias e as palavras; Falta de domínio da habilidade de combinar com regularidade os movimentos delicados dos órgãos da articulação, de maneira a produzir imediatamente e sem esforço as palavras convenientes; Falta de integridade dos órgãos da articulação a fim de que possam obedecer imediatamente as ordens da vontade (apud VIEIRA, 1992, p.27-28). A meu ver, estes quatro pontos poderiam ser reduzidos a dois. O primeiro nos remete diretamente a problemas no processo cognitivo de elaboração daquilo que precederia a articulação da fala, ou seja, remete às idéias e ao modo de torná-las comunicáveis aos falantes da mesma comunidade. Tem-se que em (1) e (2), linguagem é expressão do pensamento (interno) e um conjunto de signos que nomeiam as coisas do mundo, conforme regras lingüísticas previamente estabelecidas por convenção (externo). O segundo grupo nos remete aos itens (3) e (4). Neles, Broca se reporta à faceta física de um ato de fala e faz menção à produção articulatória dos fonemas da língua. Do ponto de vista das afecções, que acometem os centros responsáveis pela fala/linguagem no cérebro, um problema de ordem física, não mental, pode ser tomado como a causa da dificuldade de fala: falta de integridade dos órgãos fonoarticulatórios e impossibilidade de coordenar os movimentos. Parece que aí já estava estabelecida uma distinção que até hoje guia o diagnóstico e a direção de tratamento de pacientes afásicos: falo da atual incontestável dicotomia entre problemas lingüísticos e problemas motores na articulação da fala que concorrem para a composição da síndrome afásica. Como problemas motores da fala resultantes de danos neurológicos temos a disartria e a apraxia de fala. De fato, tradicionalmente, a relação afasia/apraxia de fala é traduzida da seguinte maneira: a relação entre uma alteração lingüística (afasia) e um problema motor/articulatório na configuração de um quadro sintomático de fala, ambos entendidos como efeito de lesão do sistema nervoso central. Na literatura consultada, a direção de pesquisa reflete um enorme esforço em negar a interferência do lingüístico e reafirmar a apraxia de fala como um problema essencialmente motor, embora distinto da disartria. De acordo com ORTIZ (2005), embora a disartria e a apraxia verbal sejam problemas motores ligados à articulação da fala, há uma distinção bem nítida entre elas. Enquanto disartria deva ser referida a controle motor dos órgãos fonoarticulatórios para a produção da fala, apraxia de fala nos remete a uma dificuldade na programação e organização dos movimentos necessários para a fonação e para a articulação. RODRIGUES (1989), apesar de comungar deste ponto de vista, assinala que certa confusão paira sobre essas definições e valoriza trabalhos, na Neurologia, que procuram agregar disartria e apraxia. Não é sem propósito, portanto, que BENSON & ARDILA (1996) afirmam: (...) a apraxia permanece como uma anormalidade motora misteriosa, controvertida e difícil de definir (p. 299). O que explicaria este mistério? Nas palavras de RODRIGUES (1989): [as apraxias nos levam] ao problema do significado do ato motor e a questão do pensamento simbólico (p.112).

2564 Entende-se por gesto articulatório toda manifestação de OFA [órgãos fonoarticulatórios] cujo objetivo seja produzir um som modulado com ou sem significado lingüístico (ibid.; p.15) esclareço que a expressão significado, no enunciado anterior, deve ser entendido como dirigida à produção da fala. Contudo, a imensa variação alofônica nos vários contextos fonéticos e os diferentes ritmos e entonações da fala colocam obstáculos à teorização acerca de sua natureza e da extensão de sua regulação cerebral. A seriedade dessa discussão, no âmbito da Neurologia, obriga RODRIGUES a concluir que no limite cada emissão fonêmica é fenômeno ímpar (ibid.; p.18). Desse modo, faz-se necessário refletir sobre a natureza do aparelho fonador. Reconhecidamente um aparelho virtual, é composto por estruturas emprestadas dos aparelhos digestivo e respiratório. Será tal composição aleatória ou simplesmente determinação genética da espécie? A linguagem/língua tem algo haver com isso? Note-se que, até o momento, a questão, por ser tratada fundamentalmente no âmbito dos estudos médicos, aderida a este discurso, tem sido debatida em referência à noção de corpoorgânico. E nesse sentido a fala não passa de resposta motora a um estímulo cerebral, a fim de traduzir as idéias. Contudo, a fala ultrapassa teórica, empírica e clinicamente essa redução: ela não recobre os embates, com a linguagem, de uma subjetividade em sofrimento: os sintomas na linguagem excedem o orgânico (LIER-DEVITTO, 2003:238). Para entendermos a apraxia e sua relação com a afasia é central a problematização da noção de corpo, envolvendo os efeitos da linguagem sobre ele. De acordo com Clavrel (1983), dentro de uma perpectiva psicanalítica, falar em sujeito implica em dizer que não há unidade. O sujeito desconhece aquilo que o move. Desse modo, pensar em sofrimento deve implicar o inconsciente. Não se trata de somar o orgânico ao psíquico, mas sim de declarar que mais que matéria orgânica, o corpo é habitado. Podemos dizer que, um corpo habitado significa um corpo enformado. Há duas maneiras de entender esta afirmação: (a) o corpo humano ganha forma a partir do saber. A animalidade do corpo é modificada pela racionalidade própria do humano. Conforme Descartes é a razão que guia nossos sentidos, nossa percepção; (b) a matéria orgânica é enformada pela linguagem. É a ordem simbólica que, ao incidir sobre o corpo biológico, transforma-o em corpo significado o qual passa a poder significar, porque nele está em jogo o funcionamento lingüístico que responde por sua singularidade. Se o funcionamento mental está no centro das considerações (como em (a)), o indivíduo, aquele que pode controlar o meio e a si mesmo porque tem a percepção guiada pela razão, é quem habita o corpo. Já em (b), se o funcionamento que responde pela subjetividade é o funcionamento lingüístico, para que o sujeito habite o corpo é preciso que este corpo-matéria orgânica seja atravessado pela língua. Assim, o sujeito para se constituir deve ser submetido a uma ordem de funcionamento que lhe antecede e que independe de sua vontade. Estamos com Saussure (1916/1991), ao entender que é a língua com sua ordem autônoma de funcionamento que possibilita ao ser humano ter seu corpo falado e tornar-se corpo falante. Repare que, de acordo com a teoria saussuriana, a língua é um princípio ordenador de toda manifestação da linguagem (fala, escrita, gestualidade, etc.). É ela que guia nossa percepção, segmenta o pensamento, determina qual som um corpo pode produzir e realiza cortes no fluxo sonoro. Não se supõe a ela premeditação ou reflexão. Não é uma função do falante, é um produto que ele registra passivamente. O falante é visto como suporte da língua. Sendo assim, entendo, que se abre uma outra possibilidade para pensar a apraxia de fala. Aquela em que os movimentos articulatórios provém do modo como o funcionamento da língua põe um organismo a falar, funcionamento esse que deve estar em jogo quando essa articulação se mostra problemática. Referencias BENSON, D. F.; ARDILA, A. Aphasia. A Clinical Perspective. Oxford: University Press, 1996. CLAVREUL, J. O ser em sofrimento. O doente. In: A ordem médica: poder e impotência do discurso médico. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 151-161.

2565 DARLEY, F. L.; ARONSON, A. E.; BROWN, J. R. Apraxia para el habla. In: Alteraciones Motrices Del Habla. Buenos Aires: Editorial Medica Panamericana, 1978. HEILMAN, K. M.; ROTHI, L. J. G. Introduction to Limb Apraxia. In: (eds.) Apraxia: The Neuropsychology of Action. Reino Unido: Psychology Press, 1997. LIER-DEVITTO, M. L. Patologias da Linguagem: subversão posta em ato. In: LEITE, N. (org.) Corpolinguagem; gestos e afetos. 1 ed. Campinas, 2003, v. 1, p. 233-246. LURIA, A. Fundamentos de neurolingüística. Barcelona : Toray-Masson, 1981. ORTIZ. K. Avaliação e terapia dos distúrbios neurológicos adquiridos da linguagem. In: Otacílio Lopes Filho (ed.) Tratado de Fonoaudiologia. 2ºed. Ribeirão Preto: Tecmed, 2005. RODRIGUES, N. Neurolingüística dos distúrbios da fala. São Paulo: Cortez, 1989. ROTHI, L. J. G.; HEILMAN, K. M. Limb Apraxia: A Look Back. In: (eds.) Apraxia: The Neuropsychology of Action. Reino Unido: Psychology Press, 1997. SQUARE, P. A.; ROY, E. A.; MARTIN, R. E. Apraxia of Speech: Another Form of Praxis Disruption. In: ROTHI, L. J. G.; HEILMAN, K. M. (eds.) Apraxia: The Neuropsychology of Action. Reino Unido: Psychology Press, 1997. VIEIRA, C. H. Um percurso pela história da afasiologia: estudos neurológicos, lingüísticos e fonoaudiológicos. 1992. 256f. (Mestrado em Lingüística de Língua Portuguesa), Universidade Federal do Paraná. TAMARIT, E. B. Apraxia del habla: Presentación de un caso clínico. In: GALLARDO, B.; HERNÁNDEZ, C.; MORENO, V. (eds.) Lingüística clínica y neuropsicología cognitiva. Actas del Primer Congreso Nacional de Lingüística Clínica.Vol 1: Investigación e intervención en patologías del lenguaje. Valencia: Universitat, 2006. http://www.uv.es/perla/1%5b01%5d.blascotamarit.pdf, acessado em 23 /05/2008, às 16 :00hs. WEST, C, HESKETH A, VAIL A, BOWEN A. Intervenciones para la apraxia del habla posterior a un accidente cerebrovascular (Revisión Cochrane traducida). In: La Biblioteca Cochrane Plus, 2007 Número 4. Oxford: Update Software Ltd. Disponible en: http://www.update-software.com. (Traducida de The Cochrane Library, 2007 Issue 4. Chichester, UK: John Wiley & Sons, Ltd.).