Uma análise semântica: Sentidos de Zumbi dos Palmares em cordéis nordestinos

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Transcrição:

Artigo Uma análise semântica: Sentidos de Zumbi dos Palmares em cordéis nordestinos Sheila Ferreira dos Santos 1 Jorge Viana Santos 2 Resumo: Este artigo vincula-se a uma pesquisa de mestrado em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGLin) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), onde estudamos sentido(s) da palavra Zumbi dos Palmares em cordéis. Esta pesquisa pertence a um projeto maior, Sentidos de liberdade e escravidão no Brasil, coordenado pelo Prof. Dr. Jorge Viana (UESB/PPGLin). Tomando por base a Semântica do Acontecimento (GUIMARÃES, 2002, 2011), objetivamos, analisar um excerto do cordel Zumbi dos Palmares, (PAIXÃO, 2007), observando sentidos do nome Zumbi nessa materialidade. Considerando enunciados do cordel selecionados com o critério de apresentar a expressão Zumbi dos Palmares, examinamos o corpus, para, através da elaboração de um Domínio Semântico de Determinação (cf. GUIMARÃES, 2011), descrever sentidos de Zumbi dos Palmares, construídos pela natureza artístico-histórica do cordel, os quais, como demonstram os dados, tendem a veicular o personagem histórico Zumbi, como um rei de quilombolas que lutou contra a escravidão. Palavras chaves: Semântica do Acontecimento, Zumbi dos Palmares, Cordel A semantic Analysis: The Meanings of Zumbi dos Palmares in the Northeastern Cordel Literature Abstract: This article is linked to a master's degree research in the Postgraduate Program in Linguistics (PPGLin) of the State University of the Southwest of Bahia (UESB), where we study the meaning of the word Zumbi dos Palmares in cordéis. This research belongs to a larger project, Senses of Freedom and Slavery in Brazil, coordinated by Prof. Dr. Jorge Viana (UESB / PPGLin). Based on the Semantics of the Event (GUIMARÃES, 2002, 2011), we aim to analyze an excerpt from the Zumbi dos Palmares strings (Cordel), (PAIXÃO, 2007), observing Zumbi name meanings in this materiality. Considering string statements selected with the criterion of presenting the expression Zumbi dos Palmares, we have examined the corpus, to elaborate a Semantic Domain of Determination (Guimarães, 2011), to describe Zumbi dos Palmares' senses, constructed by the artistic nature as the data show, tend to convey the historical character Zumbi, as a quilombola king who fought against slavery. Keywords: Semantics of the Event, Zumbi dos Palmares, Cordel 1 Mestranda em Linguística no Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGLIN) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Graduada em Letras Vernáculas pela UESB. Especialista em Teoria e método do Ensino de Língua Portuguesa pela UESB. Email: sheilafsantos@gmail.com 2 Doutor em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas, Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-doutorado: Unicamp. Professor Titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. É Professor do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGLIN-UESB) e docente colaborador do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade (PPGMLS/UESB). Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB Projeto PPP0014/2016) Email: viana.jorge.viana@gmail.com. 579 Id on Line Rev. Mult. Psic. V.13, N. 44, p. 579-588, 2019 - ISSN 1981-1179

Zumbi dos Palmares: O herói negro símbolo de resistência e bravura Segundo Moura (2004, p. 348), o quilombo de Palmares teve dois líderes: Ganga Zumba e Zumbi. Graças a seus feitos demonstrados em guerra e pelo prestígio que tinha entre os moradores do quilombo, o primeiro foi escolhido para ocupar a posição de líder. Todavia, de acordo com Scisínio (1997, p. 160), ao negociar a paz com os colonizadores, Ganga Zumba perde seu prestígio e é julgado e condenado à morte via envenenamento. Zumbi, que era sobrinho de Ganga Zumba, foi o segundo chefe do quilombo Palmares. Ainda quando criança foi capturado numa expedição contra o Quilombo de Palmares e entregue aos cuidados do Padre Antônio Neli, foi batizado com o nome de Francisco e teve acesso a conhecimentos que eram alheios à comunidade negra. Após um tempo, Francisco, em fuga, retorna para o seu lugar de origem e, ali, troca seu nome de batismo pelo nome Zumbi. Com a queda do seu tio Ganga Zumba, Zumbi assume a liderança do quilombo e se consagra como um grande guerreiro e. posteriormente, como símbolo da resistência negra (Scisínio, 1997, p. 329-331). Conforme Scisínio (1997), um ex-comandado de Zumbi foi contratado para entrega-lo àqueles que o queriam morto. O negro atraiu Zumbi para um local e o feriu com uma punhalada no estômago. Em 20 de novembro de 1695 Zumbi foi morto e teve sua cabeça decepada, salgada e enviada ao governador como troféu pelo capitão André Furtado de Mendonça ajudante-de-ordens de Domingos Jorge Velho (Scisínio, 1997, p.330). Segundo o historiador até pouco tempo acreditava-se que Zumbi tivesse suicidado ao se jogar de um rochedo, contudo, em carta do então governador da Bahia, então D. João de Alencastre fala-se sobre a notícia de que Zumbi dos Palmares foi morto em combate. Quilombo dos Palmares: o maior Quilombo da era colonial brasileira Conforme Scisínio (1997), o Quilombo de Palmares era localizado em uma região geobotânica do Brasil onde predominava as palmeiras. A data de sua fundação é incerta, mas há indicações de que o quilombo é anterior a 1624. Estava situado na serra da Barriga no atual município de União dos Palmares. A serra da Barriga era um lugar estratégico por ter uma acessibilidade mais difícil. 580 Id on Line Rev. Mult. Psic. V.13, N. 44, p. 579-588, 2019 - ISSN 1981-1179

Pelo fato de Palmares ter terras férteis, abundância de madeira, animais para caçar, facilidade de água e, também, localiza-se em uma região de difícil acesso, o que dificultava a invasão por parte dos senhores de engenho, atraia os negros fugidos para lá. Com isso [...] foram-se aglomerando e reunindo gente, juntando braços para a guerra e trabalho e formaram naquele lugar a maior tentativa de autogoverno dos negros fora do continente africano (MOURA, 2004, p. 283). Scisínio (1997, p. 283) esclarece que os mocambos que ficavam em Palmares eram assim organizados: A 16 léguas de Porto Calvo ficava o mocambo do Zumbi; ao Norte deste, afastado 5 léguas, o do Acotirene; a Leste, localizavam-se dois mocambos conhecidos pelo nome de Tabocas. A nordeste deles, distante 14 léguas, ficava o de Dambranganga e a 6 léguas, acerca do Macaco, capital da repíblica, com 1.500 casas; 5 léguas parao oeste da capital ficava localizado o mocambo de Osenga e, a 9 léguas de Serinhaém, a cerca de Amaro. A 25 léguas de Alagoas, para o Nordeste, o mocambo de Andalaquituche, além de inúmeros outros menores que se espalhavam pelas vizinhanças dos mais importantes. Com o aumento da população quilombola e do aparecimento da agricultura, houve a necessidade de alguém que governasse o quilombo. Pelos méritos demonstrados em guerra, Ganga Zumba foi escolhido para ocupar tal cargo, tendo governado até o ano de 1678, quando perde o prestígio entre os moradores de Palmares por ter negociado a paz com os brancos. Após a sua morte, foi substituído por Zumbi, seu sobrinho. Palmares, com a força e a extensão que teve, consequentemente resultou em prejuízos para os senhores de engenho, que tentavam a todo custo acabar com a comunidade e capturar Zumbi, que se tornava uma espécie de símbolo para os ex-escravos moradores do quilombo. Apesar de não se saber ao certo quantas expedições para combater Palmares, sabe-se que existiram muitas. Scisínio (1997, p. 151) aponta as seguintes expedições: Bartolomeu Bezerra entre 1602 e 1608; holandesas comandadas por Rodolph Baro, em 1644, e João Blaer, em 1645. Vieram depois as entradas luso-brasileiras: a de Zenóbio Accioly de Vasconcelos, em 1667, Antônio Jácomo Bezerra, em 1672, Cristóvão Lins, 1673, Manuel Lopes, 1675, Fernão Carrilho, 1676; outra do mesmo Fernão Carrilho, em 1683, João de Freitas da Cunha, 1684, outra vez Fernão Carrilho, 1686, Domingos Jorge Velho, 1692, e outra vez Domingos Jorge Velho, em 1694. O pesquisador nos chama a atenção para outra expedição, em 1671, comandada por André Rocha e posteriormente por Antônio Jácomo Bezerra. 581 Id on Line Rev. Mult. Psic. V.13, N. 44, p. 579-588, 2019 - ISSN 1981-1179

Articulação, reestruturação e Domínio Semântico de Determinação A Semântica do Acontecimento é apresentada por Guimarães (2002, p. 7) como sendo uma semântica que considera que a análise do sentido da linguagem deve localizar-se no estudo da enunciação 3 do acontecimento do dizer ; define-a como "[...] lugar em que se trata a questão da significação ao mesmo tempo como linguística, histórica e relativa ao sujeito que enuncia" (GUIMARÃES, 1995, p. 85). Nela temos as noções de reescritura, articulação, político 4, cena enunciativa 5. Segundo o semanticista uma forma funciona num enunciado, porque este também funciona integrado no texto. Para as análises que integram este trabalho foram mobilizados precipuamente os conceitos de articulação, reescritura e Domínio Semântico de Determinação. A articulação é o procedimento pelo qual se estabelecem relações semânticas" (GUIMARÃES, 2009, p. 03). Ela é subdividida em três modos: dependência, coordenação e incidência. A primeira se dá quando os elementos contíguos se organizam por uma relação que constitui no conjunto um só elemento; a articulação por coordenação toma elementos de uma mesma natureza e os organiza como se fossem um só da mesma natureza de cada um dos constituintes; já a articulação por incidência, segundo (GUIMARÃES, 2009, p. 03), é a relação que se dá entre um elemento de uma natureza e outro de outra natureza, de modo a formar um novo elemento. Por sua vez, o procedimento de reescrituração equivale a redizer o que já foi dito. Aqui uma expressão linguística reporta-se a uma outra já mencionada. De acordo com Guimarães: Uma de suas características fundamentais é que ela não é necessariamente uma operação entre elementos contíguos. O que a caracteriza é que ela é uma relação entre 3 Para Guimarães (2002, p.11) enunciação é a língua no funcionamento do acontecimento. 4 Político, em Guimaraes (2002, p.15), é um conflito entre uma divisão normativa e desigual do real e uma redivisão pela qual os desiguais afirmam seu pertencimento. 5 Cena enunciativa conforme Guimarães (2002, p. 23), são especificações locais nos espaços de enunciação que colocam em jogo,de um lado, o Locutor que aparece predicado por um lugar social, assumindo o papel enunciativo de um locutor específico, a exemplo de locutor presidente, locutor jornalista, etc; e, de outro, os enunciadores que se apresentam como representação da inexistência dos lugares sociais de locutor (cf. GUIMARÃES, 2002, p. 26). Tais lugares têm sua distribuição determinada pela temporalidade própria do acontecimento, formada pelo presente do acontecimento e pelo memorável. De acordo com Guimarães (2002, p. 25) o enunciador pode enunciar, pelo menos, de três modos: a) enunciador individual, que se representa com um lugar que está acima de todos, que retira o dizer de sua circunstancialidade e da história; b) O enunciador genérico que representa o que diz como algo que é dito por todos, coloca seu dizer como o dizer de todos e que também está fora da história; c) o enunciador universal que se apresenta como quem diz algo verdadeiro em relação aos fatos, enquanto representação verdadeira para todos, em qualquer circunstância, ele se mostra também fora da história. 582 Id on Line Rev. Mult. Psic. V.13, N. 44, p. 579-588, 2019 - ISSN 1981-1179

elementos à distância, que podem eventualmente estar contíguos (ou seja, a contiguidade não é o elemento que as caracteriza). (GUIMARÃES, 2009, p. 53) Segundo o semanticista uma das características da reescrituração seria a relação entre o elemento reescriturado e aquele que o reescreve: uma relação transitiva, simétrica e não reflexiva: Essa relação (a reescrituração) é uma das que operam os modos de integração dos enunciados com o texto. Ou seja, é uma relação que tem a ver diretamente com o fato de que os enunciados e seus elementos significam em virtude do texto que integram. (GUIMARÃES, 2009, p. 53) A reescrituração, pois, não opera com a identidade, ou seja, se eu reescrevo a palavra Zumbi utilizando o ele, essa reescrituração não estabelece uma igualdade porque ele não tem o mesmo significado que Zumbi no enunciado e vice-versa. Temos aí uma relação não-reflexiva. Conforme o autor, [...] um conjunto de reecriturações de um elemento linguístico qualquer em um texto, ou conjunto de textos, não é uma classe, não é um paradigma, pois a relação de reescrituração não é uma relação de equivalência, já que não é reflexiva. A característica da rescrituração está ligada a um aspecto fundamental: fazer sentido envolve sempre um diferente que se dá no acontecimento enunciativo (GUIMARÃES, 2009, p. 54). Podendo acontecer de diferentes modos, tais como: expansão, condensação e repetição 6. Expansão seria um modo de ampliar o que está dito. Por exemplo o texto que compõem o cordel analisado neste trabalho é uma expansão do que está no seu título; condensação seria quando uma expressão condensa toda a narrativa feita antes. Tais modos de reescrituração podem produzir sentido de maneiras diferentes. De acordo com Guimarães (2009), a reescritura pode produzir uma sinonímia, uma especificação, um desenvolvimento, uma generalização, uma totalização e uma enumeração. Sinonímia é quando uma palavra ou expressão é substituída (reescrita) por outra que tenha o mesmo sentido. A especificação acontece quando a reescrituração determina o reescriturado pela expressão que o reescritura. Reescrituração por desenvolvimento se dá quando uma expressão ou palavra é desenvolvida no decorrer do texto. E ainda temos a generalização, que é quando uma palavra condensa todo um enunciado. Segundo o autor, a relação de determinação seria a relação fundamental de produção de sentido no acontecimento 6 Para detalhes sobre outras formas de reescrituração, tais como substituição, elipse, e definição, ver Guimarães (2009). 583 Id on Line Rev. Mult. Psic. V.13, N. 44, p. 579-588, 2019 - ISSN 1981-1179

da enunciação. Enfim, quando ocorre por enumeração, a reescritura funciona como as partes coordenadas de um todo. Podendo acontecer por repetição ou acumulação, que é quando a um elemento se acrescentam outros por meio do acúmulo de palavras. De acordo o autor a enumeração apresenta um conjunto de expressões como modos de apresentar cada um dos aspectos que juntos formam uma unidade de sentido Guimarães (2009, p. 10). Por fim, Domínio de Determinação Semântico (DSD) é usado para representar o sentido das palavras. Segundo Guimarães (2007) uma expressão determinará outra na medida em que esta se apresenta como por ela é determinada pela enunciação. Essa determinação se faz fundamental para o sentido de uma expressão linguística. [...]as palavras significam segundo as relações de determinação semântica que se constituem no acontecimento enunciativo. Ou seja, são relações que se constituem pelo modo como se relacionam com outras num texto, no sentido que dou para o texto e que desenvolverei mais à frente. (GUIMARÃES, 2007, p.80) Sendo assim, ao dizer qual é o sentido de uma determinada palavra, estabeleço o seu DSD 7, que seria as relações construtoras de sentido de uma palavra e a análise de uma expressão. De acordo com o autor, ele representa a interpretação do processo de análise e é utilizado para explicar o sentido de uma palavra num corpus específico. Análise: resultados e discussões Para nossa análise selecionamos um excerto do livreto de cordel Zumbi dos Palmares: herói negro do Brasil, do cordelista Fernando Paixão (2007). Vejamos: Excerto 01 Nem os brancos, nessa época, Podiam ser educados, Poucos membros da elite 7 De acordo com o autor, ele representa a interpretação do processo de análise e é utilizado para explicar o sentido de uma palavra num corpus específico. Para se construir o DSD, utilizam-se os seguintes sinais:,,,, que significam determina em qualquer uma das direções;, um traço que, entre palavras e/ou expressões, significa uma relação de sinonímia e lê-se sinônimo de ; e,, um traço contínuo na horizontal que divide o DSD para indicar os sentidos que se opõem e lê-se antônimo de. 584 Id on Line Rev. Mult. Psic. V.13, N. 44, p. 579-588, 2019 - ISSN 1981-1179

Eram alfabetizados. Zumbi foi uma exceção Dos negros escravizados. (PAIXÃO, 2007, p.18) Mil seiscentos e setenta, Com quinze anos de idade Abandonou seu conforto No auge da mocidade, E fugiu para o Quilombo Pra lutar por liberdade... (PAIXÃO, 2007, p.18)... A liberdade dos negros Os filhos da sua raça Que sofriam escravidão A morte, dor e desgraça... É a causa de seu povo Que o jovem Francisco abraça! (PAIXÃO, 2007, p.18) Observa-se que em C1-77, nos versos Zumbi foi uma exceção/dos negros escravizados, Zumbi está reescrito por definição por exceção dos negros escravizados, fato que aponta para no mínimo a construção de dois sentidos relevantes. Em um primeiro momento, por ser negro, mas ter formação característica dos brancos, caraterística aliás difícil de se encontrar mesmo entre a elite. Como se vê, nessa reescritura há funcionando o memorável da raridade, da dificuldade de acesso à formação intelectual, no Brasil, pela raça negra: isto não só faz o cordel dar uma informação histórica, sem ser um texto de História, como também aponta para o fato de que Zumbi, mesmo sendo de uma raça, possuía características de outra. Quer dizer, ter a formação intelectual, funciona como um diferencial duplo para Zumbi, seja entre os brancos, seja entre os negros. Isto o coloca no lugar do herói que, classicamente, possui algum tipo de poder especial, extraordinário, excepcional: a excepcionalidade (heroica). Além disso, nesses mesmos versos, observa-se que o locutor- 585 Id on Line Rev. Mult. Psic. V.13, N. 44, p. 579-588, 2019 - ISSN 1981-1179

cordelista marca o seu ponto de vista quando diz a expressão negros escravizados, e não negros escravos, fazendo aparecer claramente o funcionamento político da língua, como prevê Guimarães (2011). Assim, uma possível representação dessa diferença pode ser considerada no DSD 1: Zumbi --- exceção Negro ---- escravo ---- escravidão Fonte: Elaboração própria No DSD 1 a palavra Zumbi é sinônimo de exceção, e, por sua vez, Zumbi está em oposição a negro, escravo e escravidão. Sendo que negro aparece como sendo sinônimo de escravo que vem como sinônimo de escravidão. Em alternativa, talvez um dos aspectos mais essenciais da diferenciação de Zumbi esteja indicada no enunciado E fugiu para o Quilombo/Pra lutar por liberdade... Isto porque, reescrito por uma elipse (E [Zumbi] fugiu...), Zumbi aparece nesses versos praticando um ato inusitado, e inesperado, típico dos heróis: deixou uma situação em tese confortável, para conscientemente retornar para o seu lugar de origem (o Quilombo dos Palmares), ato que, em mais uma evidência do uso político da língua pelo locutor-cordelista, aparece expresso pelo emprego do verbo fugiu, e não voltou. Fugir implica uma ação consciente, que planejada ou não, envolve a vontade do praticante. Sendo assim, se para ir viver com os brancos, Zumbi foi pela vontade de alguém que o capturou, para retornar à sua terra de origem, ele mesmo decidiu ir, isto é, fugiu, temos aqui um contrataste. Tal fuga heroica teve uma finalidade digna do herói que a história iria um dia lembrar: a fuga foi com o fim nobre de [...] lutar por liberdade.../... A liberdade dos negros. Note-se que liberdade, aparece reescrita por liberdade dos negros. Tal reescritura é de suma importância, pois traz uma dimensão da amplitude/dimensão heróica da atitude de Zumbi: a liberdade que ele buscava não era a liberdade que, como demonstra Santos (2008), existia na escravidão brasileira (liberdade transitiva, para os negros escravos-libertos ou intransitiva, para os senhores); era, sim, uma liberdade inexistente no Brasil escravagista: aquela liberdade do negro ainda quando estava na África, ou seja, antes de ser escravizado/escravo. Almejar buscar 586 Id on Line Rev. Mult. Psic. V.13, N. 44, p. 579-588, 2019 - ISSN 1981-1179

uma liberdade inexistente, não prevista por uma sociedade, não deixa de ser uma atitude típica dos heróis. Essas construções de sentido, podemos ver representadas no DSD 2: Dos negros Liberdade --- liberdade (africana) Palmares ZUMBI Deus da Guerra lutas Francisco Padre Antonio de Melo Fonte: Elaboração própria Como se vê, nesse DSD 2, Zumbi está determinando as palavras Palmares, Deus da Guerra e determinado por Liberdade. E está em oposição a Francisco que é determinado por Padre Antonio de Melo. A palavra liberdade determina dos negros. Palmares é determinado por Zumbi, determina Deus da Guerra que, por sua vez, determina lutas. Os sentidos aqui apresentados para Zumbi é que ele era visto como alguém que buscava e lutava pela liberdade de seu povo, os negros. Conclusão Pelo exposto, pode-se afirmar que, estudando o cordel pelo viés teórico da Semântica, é possível, efetivamente, se chegar a resultados que podem contribuir por um lado para a interpretação do cordel enquanto texto de natureza múltipla: histórico e artístico; e por outro lado, para compreender como um personagem histórico, no caso Zumbi, pode ser linguisticamente significado. Deste modo, como apontaram preliminarmente os dados analisados, o cordel tende a apresentar o personagem histórico Zumbi, como alguém que lutou contra a escravidão, em oposição a um ponto de vista que, ao contrário, o apresenta como inimigo político do regime escravocrata. 587 Id on Line Rev. Mult. Psic. V.13, N. 44, p. 579-588, 2019 - ISSN 1981-1179

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