Palavra-devir (sob a escrita oblíqua)



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Daniel Chaves Santos Matrícula: Rio de Janeiro, 28 de maio de 2008.

Transcrição:

Palavra-devir (sob a escrita oblíqua) Maria Raquel da Silva Stolf - UDESC Resumo: O presente texto investiga algumas relações de usos da palavra em proposições artísticas, propondo articulações e deslocamentos entre sentido e silêncio, entre palavra e devir, entre escrita e desvio. Deste modo, são pensados cruzamentos entre questões suscitadas por algumas proposições artísticas e reflexões desenvolvidas por Maurice Blanchot. Palavras-chave: Proposição artística; Devir; Silêncio; Escrita oblíqua Abstract: The present text investigates some relationships of uses of the word in artistic propositions, proposing links and displacements between sense and silence, between word and become, between writing and swerve. Thus, this text thinks intersections between questions suggested by some artistic propositions and reflections proposed by Maurice Blanchot. Key words: Artistic proposition; Become; Silence; Oblique writing Palavra-devir (...) não esperamos qualquer tipo de linguagem, mas aquele de onde fala o erro : a palavra do desvio. - Palavra inquietante. (...) - Palavra obscura. i Numa das placas de vidro que compõe a instalação Palavras a vácuo ii, a frase Engolir a fala pulsa de um modo estranho. Na seqüência de textos inscritos em quarenta e cinco placas de vidro instaladas em linhas horizontais sobre a parede branca, Engolir a fala pausa o fluxo do texto, insinuando seu avesso por um breve instante: Súbita parcela de pressa para entrar em outro sono. / Com chuva, 5 parcelas de suspiro. / Sem óleo, olhos grudam no fundo. / Fora da situação, dentro do tempo. / Com sede, com chuva. / Sinal de luz, acidente da fala. / Pigarro, cigarra. / Sem sinal, talvez mais tarde. / Com chuva, 7 pedaços de tomate. / 8 parcelas de pressa numa compressa. / Depois tossir. / Antes, piscar. / No susto de uma pequena pausa em fogo baixo. / Coisas com atraso, sem pressa. / Atrasos com coisas, sem testa. / 10 parcelas em 5 vezes sem sede ou 8 parcelas de sal em 3 vezes sem sol ou 15 parcelas de sono em 7 vezes sem som. / Antes, latir. / Depois, coçar. / Sem respirar, sem tropeçar. / 20 parcelas de calma em 40 vezes sem sono. / Súbita cena, sede de óleo. / Soluço não faz mal. / Sem pé nem cabeça, sonâmbula. / De costas, com sono. / Com dúvida, 18 parcelas de suspiro. / 50 cenas de areia cabem em 15 bocas. / 70 bocas fechadas cabem em 15 anos de sono. / 80 minutos de sonho cabem em 27 cenas. / 50 minutos de fala cabem em 30 litros de óleo. / 3 segundos de som cabem em 3 dias de chuva. / 15 kg de areia cabem em 80 bocas com 80 bolsos. / Nenhum avesso frita sem se virar. / Nenhum som pára no ar. / Em situação de nuvem, apague o olho. / Súbita parcela de sono para entrar em outra chuva. / Súbita parcela de fala para entrar em outra boca. / Testar o texto na testa. / Texto sem som, sem sal. / Dentro de um vento sem fome. / No susto de uma pequena pedra nos risos. / Engolir a fala. / Atrasos imediatos. / Sapato sem par. / Susto sem ar. / Mapa misto com possibilidade de escorregar. iii 1545

O texto, que consiste em frases que simulam espécies de cálculos entre situações, objetos, durações e sensações, foi gravado iv em placas de vidro, de modo que a leitura torna-se difícil e instável. Não se sabe se o texto está na frente ou se está atrás da superfície de vidro, onde muitas vezes só se consegue ler a sombra do texto (que, paradoxalmente, se faz legível pela sua própria sombra, pelo seu próprio corpo enquanto subtração da superfície do vidro a sombra de um vazio). O texto se move, desliza de acordo com a luz, de acordo com a posição de quem lê ou de quem não consegue lê-lo. Seu esconderijo consiste no modo como ele aparece, sempre num estado entre. Numa segunda versão, o texto Palavras a vácuo é impresso num pequeno cartão de papel branco, que compõe um kit de impressos (coisas avulsas: desenhos, encarte, textos) do cd-objeto FORA [DO AR] v. Algumas palavras mudam de rumo, escorregando outros sentidos: Súbita parcela de sono para entrar em outra pressa. Sem sal, sem sinal. Com chuva, 5 parcelas de espera. Com dúvida, parede ímpar. Dentro do sapato, pedra calva. Sem pé nem cabeça, coceira. Sem óleo, olhos furam no fundo. Com vontade, compressa de vinagre. Ar do fora, sem vento. Com soluço, acidentes da sala. Com sede, com chuva. Sem fôlego, com tempo. Com sol, sem vento. Com vento, sem tempo. Com tempo, sem sol. Com calma, com sede de fala. Pigarro, agarra. Súbita parcela de pressa para entrar em outro sono. Sem sinal, sem calma. Com luva, 7 pedaços de tomate. Sem sal, sem pé nem cabeça. 8 parcelas de pressa numa compressa. Sem medo, sem sossego. Nos dedos, sem sede. Depois tossir. Antes, piscar. No susto de uma pequena pausa. Coisas com atraso, sem pressa. Atrasos com coisas. Testes avulsos, sem som. 12 parcelas em 7 vezes sem som ou 4 parcelas de sim em 2 vezes sem sal ou 19 parcelas de sono em 7 vezes sem sol. Antes, latir. Depois, ar. Sem medo, imóvel. Sem respirar, sem tropeçar. 30 parcelas de calma em 4 vezes sem sono. Súbita cena, sede de olho. Sozinha em casa, sem sal. É cedo, com sol. Sonâmbula, sem vento. De costas, com sono. Com dúvida, 18 parcelas de grilo. 80 cenas de água cabem em 15 bocas. 50 portas fechadas cabem em 15 anos de sono. 80 minutos de susto cabem em 15 segundos. 50 minutos de sol cabem em 30 pés de tomate. 3 segundos de chuva cabem em 3 dias de som. 15 kg de assobio cabem em 80 bolsos com 80 bocas. Nenhuma língua dorme com sal. Nenhum som no ar. Nem em situação de cisco. Em situação de nuvem, apague o olho. Em situação de olho, apague a nuvem. Súbita parcela de chuva para entrar em outro sono. Súbita parcela de fala para entrar em outra boca. Testar o texto na testa. Anotar depois do sono. Sem sinal. Cedo nos dedos sede. Texto-som sal. Dentro de um vento sem fome. No susto de uma pequena pedra. Engolir a sala. Atrasos imediatos. Circunstância circunscrita. Ato sem par. Susto. Mapa misto com possibilidade de escorregar. vi Agora, o texto possui uma linha que o atravessa, rasurando-o. Um texto que, de novo, quase se esconde. Talvez seu vácuo seja a falta de ar que sua falsa continuidade instaura. Talvez a linha hipnótica que corta o texto disfarce sua descontinuidade-desvio. Numa terceira versão, quando Palavras a vácuo ganha a dimensão sonora vii, a lentidão da palavra falada amplifica os desvios de sentido do texto. Lentidão que pode ser pensada como a linha-corte hipnótica. Acompanhada de outra proposição sonora ( Panquecas fantasmáticas viii ) como fundo, o texto falado torna-se longínquo. Palavras 1546

mudam de lugar, frases ganham um corpo volátil, que parece se arrastar. No encarte do cd-objeto FORA [DO AR], há a seguinte indicação: 26. palavras a vácuo Palavras a jato + panquecas fantasmáticas = palavras a vácuo. Texto muito cansativo, oleoso, invertebrado. Testar a fala. Contabilizar quantidades de coisas e situações e tentar equivalências. Administrar a impaciência ou o desespero. / - Pular essa faixa sempre que quiser ou puder. ix Entre as três versões, concatena-se um processo de escrita onde as alterações são incessantes e instáveis. As palavras contaminam-se pelas palavras ao lado, acima, abaixo. Sentidos são rearranjados pelo som, pelo ruído das trocas e dos tropeços contínuos. A fala em bloco e a imagem rasurada do texto diferenciam-se materialmente, mas coincidem no uso pênsil do texto, onde engolir a fala co-implica engolir a sala. Palavras a vácuo aponta que o uso de textos em proposições artísticas pressupõe um processo de escrita onde a palavra pode ser pensada como matéria (palavra que ocupa espaço e tempo, as múltiplas possibilidades de materializar a palavra em proposições artísticas, a palavra sólida, líquida e gasosa), a palavra como experiência (experienciar a palavra em seus trajetos subjetivos, em suas errâncias ficcionais, em seus desvios e enganos, em suas possibilidades de ser reinventada e desdobrada, falada, escrita e pensada) e a palavra como imagem (entre falar e ver, entre o visível e o dizível). Em minha trajetória artística e literária, os processos de escrever e construir proposições artísticas são intersectados, entretecidos, amalgamados. O ato de escrever catalisa tanto o começo do processo de minhas proposições artísticas, como constitui uma espécie de método de desdobramento de uma coisa em outra, onde muitas vezes uma proposição se desdobra em múltiplas versões ou camadas, seja a partir da escrita de títulos ou de textos inseridos via diferentes meios e materiais (a palavra desenhada, falada, impressa, gravada, cavada, datilografada, fotografada ou videografada x ). Palavras a vácuo, por exemplo, desdobra-se ainda num texto de um vídeo, intitulado Kit para terceiros socorros xi, onde, equipamentos de segurança conhecidos têm funções e designações alteradas para compor o kit fictício do título. Instruções de uso acompanham os aparelhos inventados pelo vídeo, como a máscara para poeiras desconfortáveis e os óculos claros : 1547

abafador de ruídos + respirador com válvula: em situações de desespero ou insônia. contabilizar quantidades de coisas [grandes e pequenas] e tentar produzir equivalências. usar de 2 a 22 sonhos por dia/noite. abafador de ruídos + máscara para poeiras desconfortáveis: para esperar [na velocidade máxima]. ou para dormir [na velocidade mínima]. contabilizar quantidades de situações e tentar pressentir transtornos. respirador com válvula: súbita parcela de pressa para entrar em outro sono. engolir a fala. coisas avulsas em dias nublados. coisas anexas em dias de sol. para respirar dias de chuva. situaçõesfluxos. máscara para poeiras desconfortáveis: no susto de uma pequena pausa. antes latir. depois ar. em situação de risco, atrasos imediatos. 8 minutos de susto cabem em 40 parcelas de espera. abafador de ruídos: 30 parcelas de calma em 4 vezes sem som. do ruído ao pressentimento. do pressentimento à espera. da espera ao desespero. do desespero ao ruído. mapa misto com possibilidade de escorregar. óculos claros: em situação de nuvem, apague o olho. em situação de olho, apague a nuvem. buracos são planejados em forma de micro-minutos esguios. xii O uso de palavras em minhas proposições artísticas pressupõe a ficção como plano de partida e como motor da escrita. Escrever implica um desejo de inclinar as palavras, até que os sentidos tombem, escorreguem. Implica em empilhá-las infinitamente, como fatias delgadas e opacas. Escrever buracos em forma de micro-minutos esguios. Escrever interrompendo, numa parede de ar. Escrever a vácuo. Onde, se Blanchot propõe a escrita ficcional como uma espécie de fala errante, que atua como espaço de vertigem e espaçamento, fissura e exterioridade, longe de esclarecer algo, [as palavras] carregam a totalidade da interrogação xiii. As palavras estão em suspenso; essa suspensão é uma oscilação muito delicada, um tremor que não as deixa nunca no lugar. No entanto, elas também são imóveis. Sim, de uma imobilidade mais movediça do que tudo que se move. A desorientação age na palavra, por uma paixão de errar que não tem medida. xiv Neste sentido, Gilles Deleuze assinala que escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir: ao escrever, estamos num devirmulher, num devir-animal ou vegetal, num devir-molécula, até num devir-imperceptível. (...) O devir está sempre entre ou no meio. xv Como pensar uma palavra-devir? A palavra como processo de desejo, que se coloca em zona de vizinhança com um outro? Palavra-silêncio, palavrapedra, palavra-anesdoque xvi, palavra-caixa, palavra-imagem, palavra-pausa, palavra-espera diante da chuva, palavra-banal, palavra-submersa, palavradescascada, infra-palavra, palavra-vácuo? 1548

Para Gilles Deleuze e Félix Guattari, o devir não consiste em imitar algo ou alguém, tampouco em identificar-se com ele. O devir consiste em a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em via de nos tornarmos, e através das quais nos tornamos. xvii O devir implica em colocar-se num processo de proximidade e aproximação, de se colocar numa zona de vizinhança com o outro, e fazer rizoma xviii com ele. Obscuro silêncio O erro e o facto de se estar a caminho sem jamais poder parar transformam o finito em infinito. Ao que se acrescentam estes traços especiais: apesar de o finito ser fechado, é sempre possível esperar sair dele, enquanto que a infinita vastidão, por ser sem saída, é prisão; do mesmo modo que todo lugar absolutamente sem saída se torna infinito. O lugar do descaminho ignora a linha recta; nunca se vai de um ponto a outro ponto; não se parte daqui para chegar ali; nenhum ponto de partida e nenhum começo para a caminhada. xix Gary Hill, artista contemporâneo que dialoga estreitamente com as obras de Blanchot, trabalha com o texto de um modo instigante e denso, investigando as múltiplas relações entre corpo e palavra, entre linguagem e imagem, transitando, segundo alguns autores, num terreno que inclui a vídeo-arte, a instalação e a poesia experimental. Para Arlindo Machado, os trabalhos de Hill investigam aspectos labirínticos da linguagem, traduzindo ou transcriando xx audiovisualmente algumas figuras da tradição poética, como os palíndromos (palavras que podem ser lidas de trás para frente e no sentido contrário, tendo o mesmo sentido, como Ave/Eva), os anagramas (palavra ou frase formada pela transposição ou embaralhamento das letras de outra palavra ou frase, como América/Iracema) e os jogos de palavras, que sublinham as ambigüidades e os paradoxos dos discursos, propondo pôr em crise a instituição do sentido. O próprio artista assinala, numa entrevista concedida à Christine van Assche, que seu principal interesse consiste no momento de aproximação e no momento em que o sentido começa a desvanecer. (...) Meu objetivo é superar o dualismo do sentido e do não-sentido e ver o que acontece no interior da experiência da linguagem quando o sentido está criando raízes ou se extinguindo. xxi 1549

Hill sublinha que o que lhe interessa é criar uma relação com a materialidade de um texto, com a sua fisicalidade, muito mais do que querer ter sua compreensão lógica ou explicação: Pour moi, c'est comme si on touchait le texte, comme si on pénétrait à l'intérieur, comme si on en abordait le sens par un autre axe. Par exemple, je pense que lorsqu'on lit un texte difficile, la beauté de ce texte vient de ce qu'on n'est pas tout à fait sûr de son sens exact. Et ce n'est pas parce qu'on est parti sur une autre piste, frontalière, ou qu'il nous faut relire parce qu'on a déjà oublié ce qu'on vient de lire. C'est parce que cela ouvre sur quelque chose qu'on ne comprend pas totalement. A ce moment-là, notre esprit doit tenter de construire à partir de ce texte qui est plus qu'une syntaxe, plus qu'une simple succession de mots. Or c'est exactement ce vers quoi tendent bon nombre de mes oeuvres: une sorte de rupture possible du sens. xxii No vídeo Incidence of Catastrophe (1987-1988), Gary Hill remete-se diretamente ao livro Thomas, L Obscur, obra ficcional de Blanchot e também à experiência de observar seu próprio filho apreendendo a falar. No livro de Blanchot, Thomas, inicialmente encontra-se concentrado na leitura de um livro, quando, subitamente, sente-se observado pelas palavras, como se elas tivessem ou fossem olhos que o espiam: Il lisait. Il lisait avec une minutie et une attention insurpassables. Il était, auprès de chaque signe, dans la situation où se trouve le mâle quand la mante religieuse va le dévorer. L'un et l'autre se regardaient. Les mots, issus d'un livre qui prenait une puissance mortelle, exerçaient sur le regard qui les touchait un attrait doux et paisible. Chacun d'eux, comme un oeil à demi fermé, laissait entrer le regard trop vif qu'en d'autres circonstances il n'eût pas souffert. Thomas se glissa donc vers ces couloirs dont il s'approcha sans défense jusqu'à l'instant où il fut aperçu par l'intime du mot. Ce n'était pas encore effrayant, c'était au contraire un moment presque agréable qu'il aurait voulu prolonger. Le lecteur considérait joyeusement cette petite étincelle de vie qu'il ne doutait pas d'avoir éveillée. Il se voyait avec plaisir dans cet oeil qui le voyait. Son plaisir même devint très grand. Il devint si grand, si impitoyable qu'il le subit avec une sorte d'effroi et que s'étant dressé, moment insupportable, sans recevoir de son interlocuteur un signe complice, il aperçut toute l'étrangeté qu'il y avait à être observé par un mot comme par un être vivant, et non seulement par un mot, mais par tous les mots qui se trovaient dans ce mot, par tous ceux qui l'accompagnaient et qui à leur tour contenaient en eux-mêmes d'autres mots, comme une suite d'anges s'ouvrant à l'infini jusqu'à l'oeil de l'absolu". xxiii A partir deste encontro, Thomas manifesta uma estranha doença, uma espécie de verborragia, uma necessidade incoercível de falar, o que o faz alucinar (literalmente, l obscur ), conforme adentra o livro. No vídeo, Thomas (representado pelo próprio Gary Hill) também está concentrado na leitura de um livro, que é nada mais, nada menos do que Thomas, L Obscur de Blanchot. No vídeo de Hill, Thomas fica cada vez mais atormentado pela fisicalidade do texto (as palavras, o papel, as páginas) e adentra num mundo de pesadelos, de vertigens. Ele tenta vomitar a linguagem, mas as palavras tomam seu corpo, atravessando-o violentamente, intensamente. A água do mar 1550

corre, carregando areia. Um corpo nu (Thomas?) está deitado na beira da praia. Ele balbucia, murmurando palavras sem nexo, sem sentido. Deitado no chão, Thomas se retorce, falando uma língua inexistente. Estranhamente, um pedaço tosco de madeira toca-o ligeiramente. O chão parece sujo (fezes, urina, saliva, água do mar?), assim como Thomas, que tem a pele coberta de areia. Onde ele está, exatamente? Onde ele se afoga, exatamente? No mar ou em si? Ou seria no texto? Na água da língua? As paredes de seu quarto são as páginas de Thomas, L Obscur. Ele está dentro do livro e a superfície noturna e clara das páginas parece instransponível. Em alguns instantes, o som do vídeo consiste no farfalhar de páginas sendo folheadas, como uma ventania espessa e ao mesmo tempo sutil. Noutros, consiste no barulho de água em movimento, correndo, num fluxo contínuo. Num determinado momento, Thomas corta seu dedo, deslizando-o sobre uma folha do livro. Segundo Paul-Emmanuel Odin, há em Incidence of Catastrophe uma experiência da materialidade das coisas e dos sinais, que nos toca, nos suspende e nos incomoda. C'est que le visible, coincé entre la solidité du tangible et le tranchant de l'écriture, exprime des rapports intimes et violents entre image, texte et corps. On passe de la chair des mots au texte des choses. xxiv O dedo ferido pelo corte consiste, segundo Odin, na imagem literal da inscrição do texto no corpo. L'écriture, étymologiquement, est justement un mouvement coupant, une déchirure. Elle procède par incisions ou brisures. La graphie, c'est l'égratignure. xxv Ou, como sublinha Blanchot, Escrever, não é expor a palavra ao olhar. O jogo da etimologia corrente faz da escrita um corte, um dilaceramento, uma crise. [...] Falar, como escrever, nos engaja num movimento de separação, uma saída oscilante e vacilante. xxvi A palavra desorienta, oscila, torna instável nosso contato com as coisas. A ficção consiste no lado de fora das palavras, mas Blanchot adverte que não se trata de qualquer tipo de linguagem, mas aquele de onde fala o erro : a palavra do desvio xxvii. Palavra que inquieta, que se move, ou se arrasta (ou nos arrasta, nos carrega) imóvel, uma palavra onde as coisas não se escondem, não se mostrando xxviii, palavra que não cobre, nem descobre. Em Incidence of Catastrophe, a cada palavra pronunciada pelos convidados de um banquete, as bordas de areia tombam, despencam e o 1551

terreno se desfaz, se liquefaz no fluxo da água do mar. Basta uma palavra para a erosão, para a queda, para o desfalecimento. Para Arlindo Machado, a metáfora do terreno desbarrancando cada vez que alguém pronuncia uma palavra é precisa para designar a falência da linguagem como ponte de contato entre nós, os outros e o mundo. xxix Seria a linguagem um silencioso espaço sem saída e, portanto, infinito? Escrita e desvio Em Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido, livro onde Pierre Cabanne entrevista Marcel Duchamp, o artista responde à pergunta Você realmente ama as palavras?, com as seguintes colocações: Ah! Sim, as palavras poéticas. Qual é a palavra mais poética? Não tenho idéia. Não tenho nenhuma agora à minha disposição. Em todo caso, são as palavras deformadas pelo seu sentido. Os jogos de palavras? Os jogos de palavras, sim; as assonâncias, palavras como esta, o retard em verre (retardo em vidro); esta me agrada enormemente. Ao inverso, isto quer dizer alguma coisa. xxx Duchamp possui uma relação instigante com a escrita em toda sua produção, seja nos títulos enigmáticos de seus ready-mades (que por vez, também constitui uma palavra-conceito proposto pelo artista), que constituem jogos de palavras, seja em trabalhos em que ele insere o texto no próprio objeto, imagem ou filme, além dos escritos do artista (publicados em livros ou presentes em algumas de suas proposições). Na entrevista acima citada, Duchamp assinala que as palavras poéticas são as palavras deformadas pelo seu sentido. Estranho jogo, este lance de Duchamp: se são os sentidos que alteram a forma das palavras, existem palavras com sentidos assentados, conformados, encaixados ou bloqueados? Onde a escrita poética pressupõe uma manipulação íngreme, sinuosa e oblíqua dos sentidos? Outro lance: ao inverso, as coisas querem dizer alguma coisa. As assonâncias e os embaralhamentos. Como pensar uma escrita que leve em conta as assonâncias do silêncio? 1552

No caderno de poemas denominado Impossível silenciar o mundo, esta tentativa parece ser simulada: um único poema suscita a proposta de pensar/falar uma só palavra por dia. Inevitavelmente, a primeira palavra do dia é caixas, e se insinua um quase desespero/vazio em ter que se contentar com apenas aquela palavra até o outro dia. Abaixo, alguns fragmentos do poema: AUTO-REGISTRO (FOSSILIZADO) DOS 17 DIAS DA CRIATURA ESTENDIDA NO CHÃO momento de expectativa / ruídos grossos do fundo da terra / ouve o chão como se fosse seu próprio corpo / decisão: durante cinco dias, a primeira palavra que surgisse em sua cabeça, seria perpetuada até o pôr-do-sol seria sincera consigo, / com a palavra / e o silêncio viveria apenas uma palavra / fosse qual fosse caixas (intriga) / irritada com a primeira grande chance / de silêncio / despedaçada pela ousadia da palavra / caixas / ter aparecido em sua leve tentativa / branca de dar lugar para uma só palavra fita um pássaro que bóia no canto do céu / minuciosamente vigiado por ela adia a idéia para descansar / os pensamentos no colo da tarde quase que / a mosca esbarra na / (invisível) / palavra da mãe toscas lembranças tossem / dentro é o que fora nuvem branca desmaiada / finas pernas do tempo bambas cabe o dia na noite? aos poucos aquieta / caixas / cheias ou vazias pijamas e travessia redondo tumulto dos sonhos / e desperta com uma chuva de rolhas / de cortiça sobre a cabeça / pingos de cascas (fala sozinha) xxxi Em Impossível silenciar o mundo, simula-se uma tentativa de silenciar ou pausar a linguagem, de sair do espaço sem saída e infinito do texto. Mas, seria possível dizer ou pensar apenas uma só palavra por dia? E conviver com a interrupção de sentido ou com a possibilidade de sentido sem palavras? Em Projeto secreto ] estadias instáveis 03, 04, 05, 06, 07, 08, 09 xxxii, uma série de sete vídeos em que não se fala, nem se ouve e não se lê uma só palavra (além do título e dos créditos do vídeo), ações são executadas por espécies de fantasmas constrangidos xxxiii (alguém xxxiv sob um saco de pano, uma espécie de esconderijo precário), em diferentes quartos de hotéis, com variações que oscilam entre o não-senso e o humor. Ficar imóvel, sentar, correr ou caminhar tornam-se ações sem sentido. O único som do vídeo consiste na faixa Panquecas fantasmáticas (novamente, uma proposição misturando-se à outra), que compõe o cd-objeto FORA [DO AR], e que preenche os vídeos com um ar de suspense e lentidão. Nesta série de vídeos, o que insta xxxv é o que não se sabe, ou, como 1553

escreve Blanchot acerca da potência da ficção, o que possibilita sentir o que não sabemos xxxvi. Como sentir o que não se sabe? O silêncio como rumor: uma mão retira um rabo de um buraco. O rabo é de borracha. O buraco localiza-se num rodapé de um espaço vazio. Tudo se repete, o rabo reaparece no buraco e a mão retira-o novamente. O rabo é branco. O buraco, um ponto preto perto do chão. Um som sonífero xxxvii anestesia a ação e silencia a incessante tentativa. Como um ruído de coisas que se deslocam ao longo de um canto de uma sala vazia. No vídeo Rabo do buraco xxxviii, o silêncio não é ausência de som, mas ausência de sentido. Para André Comte-Sponville, o silêncio também não é ausência de ruído, mas nem por isso constitui a possibilidade de sentido: Porque há dois silêncios, (...) ou duas maneiras de pensá-lo, ambas antagônicas e que definem mais ou menos (enquanto estivermos no discurso) duas filosofias. (...) o silêncio nada mais é, de início, que a falta de sentido de tudo, e do próprio sentido. É outro nome do real. De fato, para nós, que falamos, o silêncio é ausência, não de ruído, mas de sentido. Portanto, um som pode ser silencioso (sempre o é, quando ninguém o interpreta), e pode dar-se que um silêncio seja sonoro. É o caso do eco das ondas ou das renúncias. xxxix Se o silêncio é sonoro, ruidoso, coincidindo com o mundo real, como pensá-lo como ausência de sentido? Comte-Sponville sublinha que o silêncio é um outro nome do real, onde o plano sobre o qual o silêncio se define não é somente o da linguagem, mas o do mundo além da linguagem, onde o silêncio não é a falta de uma palavra mas constitui o pleno de um real, que não significa nada : tudo é silêncio (tudo, até a linguagem!), e esse silêncio, aqui e agora, é o mundo. Esta luz numa parede, este pio de passarinho de manhã, (...) a sombra de uma árvore, uma pedra (...) Só existe o real, e o real é tudo, e sempre presente, e não significa nada. xl Já John Cage, para quem o silêncio constitui a múltipla atividade que não cessa de nos rodear xli, sublinha que: O silêncio, na realidade, não existe. Nunca existe uma ausência de som, que é como os dicionários definem o silêncio. O silêncio é simplesmente... uma questão mental. Uma questão de saber se uma pessoa está escutando os sons que não está provocando. Não sou eu que faço os pássaros cantarem, mas eu os ouço e não estou falando: a isso chamamos de silêncio. O silêncio é um meio de ouvirmos o que nos cerca. xlii O silêncio entendido como ausência de som inexiste: o silêncio é antes a multiplicidade de sons, silêncio é o burburinho, rumor do mundo. Como assinala Cage, Nenhum som teme o silêncio que o ex-tingue. E nenhum 1554

silêncio existe que não esteja grávido de sons. xliii O silêncio ganha uma potência, uma dimensão de pausa e plano de partida, consistindo num motor ou alavanca para a invenção de algo. Como escreve Deleuze, O problema não é mais fazer com que as pessoas se exprimam, mas arranjar-lhes vacúolos de solidão e de silêncio a partir dos quais elas teriam, enfim, algo a dizer. (...) Suavidade de não ter nada a dizer, direito de não ter nada a dizer; pois é a condição para que se forme algo raro ou rarefeito, que merecesse ser dito. xliv Escrever a partir e com silêncios talvez implique esse algo rarefeito mencionado por Deleuze. Escrever rarefazendo, dilatando, desaglomerando, diluindo, desaparecendo. Escrever entre uma coisa e outra, de través, de soslaio. O processo de escrita como turbulência macia, um gole de vazio, um atrito entre silêncio e sentido. O processo de escrita como atrito entre as duas interrupções de Blanchot: entre a interrupção que permite a troca, pausa atenta que estimula a continuidade, e a interrupção enigmática, que introduz uma espécie de espera, distância irredutível, abismo hiperbólico estado neutro. Na primeira interrupção, o intervalo possibilita um revezamento na conversa, onde a descontinuidade é imprescindível, pois garante a troca e move o diálogo. A ruptura da pausa, mesmo fragmentando, perturbando ou embaraçando a conversa, produz uma manutenção do jogo da palavra comum, possibilitando a articulação de sentido e revelando o senso comum como horizonte. Blanchot sublinha que esse tipo de interrupção constitui uma espécie de respiração do discurso. Mas, há um outro tipo de interrupção, que propõe a espera que determina a distância entre dois interlocutores, uma espécie de distância irredutível, indomável, indecomponível e irresistível. Uma falta de ar na conversa que exerce um fascínio, talvez por paralisar sentidos ou pressupor a alteridade como condição dessa interrupção. Um processo de escrita que pende. Um texto que desvia, que deseja. Um texto oblíquo. Onde escrever pressupõe Optar pelo vácuo ao ar livre xlv. Tentar conter o deserto dentro, suspender o obscuro silêncio da palavra. Uma palavra muda, pênsil e insípida te olha, te devora. O que fazer diante do atravessamento? 1555

Referências bibliográficas BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 1. A palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. A Parte do Fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. O Livro Por Vir. Lisboa: Relógio d Água, 1984. Thomas, L Obscur. Paris: Gallimard, 2005. CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: Engenheiro do tempo perdido. São Paulo: Perspectiva, 1997. CAGE, John. De Segunda a um ano. São Paulo: Hucitec, 1985. CAMPOS, Haroldo de, CAMPOS, Augusto de E PIGNATARI, Décio. Finnegans Wake. São Paulo: Perspectiva, 1986. CAMPOS, Augusto de. Música de Invenção. São Paulo: Perspectiva, 1998. COMTE-SPONVILLE, André. Viver. Martins Fontes: São Paulo, 2000. DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia - vol. 1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia - vol. 4. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997. FOUCAULT, Michel. O Pensamento do Exterior. São Paulo: Ed. Princípio, 1990. RUSH, Michael. Video Art. London: Thames and Hudson, 2003. SÁN G, Yi. Olho de corvo / e outras obras de Yi Sán g. São Paulo: Perspectiva, 1999. Catálogos HILL, Gary. O lugar do outro. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 1997. Revistas Código 3. Salvador, agosto de 1978, s/p. Cds STOLF, Raquel. FORA [DO AR]. Florianópolis: Edição do Autor, 2002-2004. Vídeos Kit para terceiros socorros. Concepção, câmera, ação e áudio: Raquel Stolf; Edição: Glaucis de Morais. Duração: 5 24. Formato original: minidv NTSC. Florianópolis, 2003-2004. Projeto secreto [ estadias instáveis. Concepção, edição, câmera, ação e áudio: Raquel Stolf. Formato original: minidv NTSC. Florianópolis, 2004-2005. Rabo do buraco. Concepção, edição, câmera, ação e áudio: Raquel Stolf. Duração: 1 42. Formato original: minidv NTSC. Florianópolis, 2005. Outros STOLF, Mª Raquel da Silva. O neutro, o outro e o fora intersecção entre conceitos de Maurice Blanchot e a produção artística contemporânea. In: Anais do XIV Encontro Nacional da ANPAP Cultura Visual e Desafios da Pesquisa em Arte, ANPAP: Goiânia, 2005. Espaços em branco entre vazios de sentido, sentidos de vazio e outros brancos. Dissertação de Mestrado em Artes Visuais no Instituto de Artes. Porto Alegre: UFRGS, 2002. STOLF, Raquel. Impossível silenciar o mundo. Caderno de poemas, Florianópolis: 1996. 1556

Mª Raquel da Silva Stolf é artista plástica, escritora e professora no Centro de Artes da UDESC, em Florianópolis. É licenciada em Artes Plásticas pela UDESC, mestre e doutoranda em Poéticas Visuais pelo Programa de Pós- Graduação em Artes Visuais da UFRGS, em Porto Alegre. i BLANCHOT, 2001, p. 68. ii STOLF, 2004, (instalação). A primeira montagem da instalação aconteceu na exposição individual FORA [DO AR], ocorrida no Museu de Arte de Santa Catarina, em Florianópolis, 2004. iii STOLF, 2002-2004. iv Pelo processo de jateamento, onde o texto continua transparente como a superfície de vidro, diferenciando-se dela pelo aspecto fosco. v STOLF, 2002-2004 (cd-objeto de áudio). vi Idem, s/p. vii Palavras a vácuo constitui a faixa 26 do cd-objeto FORA [DO AR]. viii Quando estava fazendo panquecas para o almoço, em maio de 2002, na medida em que espremia as panquecas com a espátula, pressionando-as contra a frigideira, elas faziam ruídos franzinos, assobios agudos e quase fantasmagóricos. Resolvi gravar esse som digitalmente, sendo que esta experiência culinária foi um dos fatores que desencadeou o desenvolvimento do projeto FORA [DO AR] (composto por diferentes proposições artísticas: de instalações, objetos e vídeos a um cd-objeto). ix STOLF, 2003-2004. x Estes procedimentos podem também ser modos ou possibilidades de escrita. Onde, por exemplo, a escrita entraria num devir-desenho (num devir-linha, devir-sombra, devir-desígnio, devir-contorno) ou num devir-vídeo (num devir-tempo, devir-cross-dissolve). Mais adiante, desdobrarei o conceito de devir. xi STOLF, 2003-2004 (vídeo instalado). xii STOLF, 2004. xiii BLANCHOT, 2001, p. 29. xiv Ibid., p. 66. xv DELEUZE, 1997, p. 11. E Escrever não é contar as próprias lembranças, suas viagens, seus amores e lutos, sonhos e fantasmas. (...) As duas pessoas do singular não servem de condição à enunciação literária; a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu (o neutro de Blanchot) (Ibid., p. 12-13). xvi Anesdoque constitui uma palavra que inventei, em 1997, significando: Grupo de mosquitos que soam mais agudo que o usual e que tentam picar superfícies de vidro. De certo modo, influenciou toda uma série de exercícios de escrita que catalisaram a construção dos textos que compõem as nove edições da publicação experimental Sofá, projeto desenvolvido desde 2003 pelos participantes da disciplina que venho ministrando no Centro de Artes da UDESC, denominada Laboratório de Invenção de Textos, que propõe a investigação dos múltiplos usos da palavra em proposições artísticas, pensando suas dimensões imagéticas, sonoras, ficcionais e documentais. xvii DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 64. xviii No campo artístico, talvez a ficção implique um uso rizomático da palavra, compartilhando características do conceito proposto por Gilles Deleuze e Félix Guattari (DELEUZE e GUATTARI, 1995). Para os autores, o rizoma é uma antigenealogia e uma antigenealogia significa que não existem nexos associativos entre uma coisa e outra. O rizoma procede por variação, expansão, captura, picada. Podemse juntar incompossíveis elementos/coisas díspares num plano rizomático e não arborescente, no sentido de não seguir uma hierarquia, ordem, procedência por linhagem ou gerações. O rizoma pode ser quebrado em qualquer lugar, onde qualquer ponto se conecta a outro sem começo nem fim, caracterizando-se pela heterogeneidade, descontinuidade, ruptura e multiplicidade. xix BLANCHOT, 1984, p. 104. xx Transcriação ou intradução é um termo proposto pelos escritores Augusto e Haroldo de Campos ao se referirem à atividade de tradução, concebendo-a como reinvenção minuciosa, inevitável exercício de criação. Segundo Haroldo de Campos, numa introdução à primeira edição da transcriação de fragmentos de Finnegans Wake, de James Joyce, (...) a tradução se torna uma espécie de jogo livre e rigoroso ao mesmo tempo, onde o que interessa não é a literalidade do texto, mas, sobretudo, a fidelidade ao espírito, ao clima joyciano, frente ao diverso feixe de possibilidades do material verbal manipulado. E há uma rede renhida de efeitos sonoros a ser mantida, entremeada de qüiproquós, trocadilhos, malapropismos (CAMPOS, 1986, p. 21-22). xxi HILL, 1997, p. 13. xxii HILL In http://www.mauriceblanchot.net/blog/index.php/2005/04/10/49-gary-hill-et-maurice-blanchot. Tradução livre de minha autoria: Para mim, é como se nós tocássemos o texto, como se penetrássemos em seu interior, como se nós abordássemos o sentido por um outro eixo. Por exemplo, penso que quando lemos um texto difícil, a beleza deste texto vem de não se estar completamente certo do seu sentido exato. E não é porque se partiu por outra pista, fronteiriça, ou que precisamos relê-lo porque já nos esquecemos do que se acaba de ler. É porque aquilo desdobra sobre algo que não se compreende 1557

totalmente. Neste momento, nosso espírito deve tentar construir a partir deste texto que é mais que uma sintaxe, mais que uma simples sucessão de palavras. Ora é exatamente para isto que tendem muitas das minhas obras: uma espécie de ruptura possível do sentido. xxiii BLANCHOT, 2005, p. 27-28. xxiv ODIN In http://www.newmedia-art.org/cgi-bin/show-oeu.asp?id=i0150295&lg=fra. Tradução livre de minha autoria: É que o visível, bloqueado entre a solidez do tangível e o fio/corte da escrita, exprime relações íntimas e violentas entre imagem, texto e corpos. Passamos da carne das palavras ao texto das coisas. xxv Idem. Tradução livre de minha autoria: A escrita, etimologicamente, é precisamente um movimento cortante, uma ruptura. Ela procede por incisões ou rupturas. A grafia, é o arranhão. xxvi BLANCHOT, 2001, p. 66. xxvii Ibid., p. 68. xxviii Ibid., p. 68. xxix MACHADO In HILL, 1997, p. 32. xxx CABANNE, 1997, p. 153. xxxi STOLF, 1996, p. 4-50. xxxii STOLF, 2004-2005 (vídeos instalados). xxxiii A expressão fantasma constrangido foi colocada pelos artistas Diego Rayck e Aline Dias quando ambos assistiram aos vídeos pela primeira vez, em 2005. xxxiv Em minhas viagens, em 2004, durante a itinerância da proposição Lista de coisas brancas coisas que podem ser que parecem ou que eram brancas, pelos espaços do SESC em Santa Catarina, a estadia breve e solitária em diferentes hotéis, em cidades pequenas, catalisou o processo de criação dos vídeos. Resolvi levar um saco de pano que havia costurado em 1998 (para realizar uma ação na universidade, mas que acabou acontecendo somente como fotografia) e, diante da câmera de vídeo, executava um silencioso passeio pelo quarto, registrando também alguns detalhes banais e/ou estranhos do quarto em que estava. Em 2005, no processo de edição digital dessas imagens, o tempo foi desacelerado e, entre outros procedimentos, foi anexado ao vídeo a trilha sonora ( Panquecas Fantasmáticas ). xxxv projeto - bloco de coisas feitas e a fazer, com muitas tubulações de idéias e movimentos, com incessantes intensidades e desejos abertos, lançados para diante / secreto - aquilo que tenta se manter coeso como uma bola de cristal de bolso, mas que secreta algo sem saber, sem ver e sem falar / estadias - ficar lá por alguns instantes que duram noites ou ficar aqui por alguns dias que duram segundos ou permanecer ali durante uma ou sete esquinas de tempo / instáveis - aquilo que insta. aquilo que não está mais ali quando se pensa que está. aquilo que oscila num piscar. isso que passou e não ficou. tentar sair de si. errância imóvel (STOLF, 2005, texto em folder de exposição). xxxvi BLANCHOT, 1997, p. 81. xxxvii Proposição sonora que faz parte do cd-objeto Caixa de sono, em processo de finalização. xxxviii STOLF, 2005, (vídeo instalado). xxxix COMTE-SPONVILLE, 2000, p. 185. xl Idem, p. 330. xli CAGE In Código 3, 1978, s/p. xlii Idem, s/p. O silêncio é muito caro a John Cage, sendo crucial em suas concepções musicais e constituindo o título do seu primeiro livro: Silence inaugurou uma série de inclassificáveis livrosmosaicos, misturando artigos, manifestos, conferências, poemas, aforismos e anedotas exemplares (koans). A Year from Monday (1967) é o segundo compêndio da visão que eu chamaria anarcosmusica de Cage: nesse livro ele inicia a publicação de seu Diário: como Melhorar o Mundo (Você só Tornará as Coisas Piores), uma série de reflexões pessoais, reunidas fragmentariamente numa salada de citações, um tanto à maneira de Pound (nos Cantos ), mas numa dimensão discursiva mais próxima do que Buckminster Fuller viria a chamar de ventilated prose (prosa porosa). Segue-se M (1973), um título sugerido pela letra M, escolhida ao acaso, mas que é a inicial de muitas palavras e nomes de Cage: de mushrooms (cogumelos) a music, de Marcel Duchamp a Merce Cunningham (...). O último livro dessa linhagem é Empty Words ( Palavras Vazias ), de 1979. Nele aparecem os derradeiros fragmentos do Diário, que ficou interrompido (CAMPOS, 1998, p. 134). xliii CAGE, 1985, p. 98. xliv DELEUZE, 1992, p. 161-162. xlv SÁN G, 1999, p. 149. 1558