A educação musical e a música da cultura popular



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Transcrição:

A educação musical e a música da cultura popular Angela Elizabeth Lühning Este pequeno texto é a versão escrita e aumentada da minha participação na XI Semana de Educação Musical realizada durante os XIV Seminários Internacionais de Música em setembro de 1996. Abordei na ocasião algumas reflexões e sugestões críticas a respeito da questão do resgate da música da cultura popular com fins de aplicação na Educação Musical, partindo da minha área de atuação, a etnomusicologia que, oferece o empréstimo de alguns conceitos, pontos de vistas e procedimentos metodológicos para uma nova abordagem do assunto em questão. O tema dado para a nossa mesa uma abordagem teórica e prática objetivando incentivar o resgate da música da cultura popular para aplicação na Educação Musical, me fez abordar os aspectos mencionados no próprio título, que chamaram a minha atenção: 1) O termo resgate, 2) o termo aplicação, e finalmente como 3) a educação musical neste contexto. 1) Resgate: alude à ausência ou falta de algo que precisa ser recuperado ou resgatado, algo que deveria ser melhorado. Uma constatação, que nos leva automaticamente à questão, através de que meio se processaria este resgate? Obviamente por meio de um levantamento de dados, ou uma pesquisa-de-campo. Porém que tipo de pesquisa permitiria um resgate deste tipo? Ao meu ver, oferecese neste contexto - o resgate da música da cultura popular através de pesquisa - um empréstimo à métodos da etnomusicologia e/ou antropologia, áreas que trabalham ou com a cultura popular como um todo no contexto onde está inserida, ou especificamente com as manifestações musicais desta cultura popular por meio de uma pesquisa-de-campo participante. Este empréstimo metodológico inclui também uma discussão da questão quem realizaria este tipo de pesquisa, dando a opção entre pesquisadores acadêmicos - como educadores, antropólogos e etnomusicólogos - normalmente vindo de um contexto diferente daquele a ser estudado e pesquisado, e no outro lado os próprios atores sociais que realizam as manifestações musicais. Vemos como melhor solução - em vez de apenas optar por um dos dois lados - um caminho intermediário que inclui a participação dos membros da cultura em conjunto com pesquisadores de fora, habilitados e sensíveis para esta realização de pesquisa. Porém, já que o nosso assunto a ser abordado é a aplicação dos resultados da pesquisa, é indispensável ressaltar, que o objetivo a ser alcançado com esta apli-

cação intencionada, influencia a realização concreta da pesquisa e a direção que ela tomará dentro das possibilidades do projeto. Sendo o objeto de nossas considerações a música da cultura popular, existem diversas formas de abordá-la, conforma mostra uma avaliação crítica de experiências e publicações. Vemos basicamente dois caminhos diferentes que serão apresentados em seguida: a) Existem diversos exemplos de pesquisa em que se pode observar um procedimento na base do garimpo, tratando as manifestações musicais como matéria prima, fora de qualquer contexto vital, pronta para ser transportada para outro meio: as vezes com uma visão um tanto estática, museológica, como se fosse guardando uma peça rara através deste tipo de resgate, em forma de apresentações folclórica, criando modelos de apresentação através de uma normalização de indumentárias, número de instrumentos, estruturas musicais (originalmente mais livres, improvisatórios, etc.) e passos de dança; outras vezes existe uma visão estética, justificando a utilização da música da cultura popular, com a valorização em termos estéticos, chamando-a de linguagem universal que dispensaria de uma atenção com o contexto, falando por si, como expressão artística. Temos aqui um exemplo para a visão muito comum até os anos 60, tratando a cultura popular como folclore, aplicando conceitos que precisavam ser redefinidos. De qualquer forma pode se dizer que esta modalidade de pesquisa direcionada pela aplicação estática e/ou estética, normalmente não leva em conta nem a participação dos membros da cultura - os atores sociais -, nem o contexto, tratando de questões como função, origem ou terminologia. b) O contrário seria um resgate da tradição musical em questão incluindo o contexto, com todas as conotações, sejam elas cognitivas ou até corporais - quer dizer incluindo aspectos como a sua história, sua simbologia, sua função social, o significado das letras e das indumentárias (se tiver), como também do movimento corporal e até da expressão teatral. Todos estes conceitos seriam necessariamente elaborados em conjunto com os membros da cultura que conduziriam os pesquisadores de fora. Muitas vezes os elementos como expressão verbal e corporal tem um papel fundamental, inseparável da música. Pensemos em exemplos como a cantoria, onde a música forma um par perfeito com a letra, sendo a letra até mais importante do que a música, porém, esta, por outro lado, indispensável para a realização da arte poética e improvisatória. Pensemos também no exemplo da música do Candomblé, durante a realização de um festa pública: sob um ponto de vista radical, a música é apenas o veículo para a realização da dança que serve por sua vez como meio para a manifestação das entidades; os orixás, que precisam também das letras das cantigas como homenagem e explicação de suas atitudes e comportamentos, para 54 ICTUS 01

continuarem a dançar. Estes exemplos mostram de forma clara que - se a pesquisa realmente leva em conta todo o contexto em que se desenvolve a música, automaticamente terá de preocupar-se com os membros desta cultura musical, com seu envolvimento e sua visão, para chegar a uma descrição êmica quer dizer uma descrição que parte das suas descrições, explicações e interpretações, em vez de impor de antemão as interpretações dos pesquisadores que vem de fora. * Para ser mais concreto, serão abordados em seguida as diversas formas de pesquisa, mencionados acima, pensando na sua possível aplicação, quer dizer, como uma determinada cultura musical poderia ser aplicada numa outra: 2) Aplicação a) Num extremo de aplicação baseada no tipo de pesquisa e resgate que denominamos tipo garimpo, teremos projetos como a grande parte daqueles desenvolvidos pela FUNARTE, basicamente no início dos anos 70, e com a colaboração de folcloristas renomados. São o resultados de uma visão, que tratava a música da cultura popular - chamada de folclore musical - como algo estático, sem maiores preocupações com o contextos, a não ser de forma normativa e em vez disso desviando-a para uma conotação política partidária e esvaziando o significado original, transformando-a em repertório para grupos folclóricos. Reflexo das inúmeras publicações que surgiram nos anos 50, de forma mais visível ainda após 1964, culminando com os mencionados fatos dos anos 70, é o tratamento que se dá hoje em dia às manifestações de origem popular, no âmbito da educação curricular das escolas - sem grandes diferenças entre as particulares e públicas. Pensemos apenas em apresentações quase que obrigatórias em eventos como semana do folclore, etc. Em vez de sensibilizar as crianças para o lado importante, positivo e identificador da arte popular, de fato ainda existente neste país culturalmente tão diversificado e rico - e não somente numa data aleatória com essa, mas sim sempre - mata-se o lado estimulante desta arte com apresentações sem criatividade e/ou fantasia. O mesmo ocorre com o dia do índio e tantas outras datas comemorativas que parecem ter mais uma função decorativa, justamente para desviar de uma discussão séria dos conceitos envolvidos nestas manifestações e em vez disso caem num folclorismo exagerado. Todas estas comemorações - quando comportam música - aplicam apenas modelos estereotipados muito longe da vivacidade que as manifestações naturalmente têm. Porém, este tipo de aplicação é muito divulgado, especialmente nos estabelecimentos de ensino de quaisquer espécie, instituições que poderiam e deveriam ter uma visão mais crítica, se a sua missão fosse bem entendida. b) A posição diametralmente oposta desta descrita tanto não política (num sentido libertador) quanto não (re) criativa - no sentido de recriar dentro dos A educação musical e a música da cultura popular 55

moldes que a própria cultura popular pratica e oferece através de sua abertura para as constantes variações de modelos provavelmente fixados no subconsciente coletivo das pessoas - seria uma aplicação da pesquisa e seus resultados na própria cultura de origem. Baseando-se, como condição indispensável, numa pesquisa que inclui os diversos contextos de uma determinada manifestação musical, realizada em conjunto com os próprios membros da cultura, deste modo, confundindo-se o pesquisador e o pesquisado, dentro de uma concepção de pesquisa participante. Neste caso pensaria-se de antemão numa aplicação na própria cultura de origem, no sentido de uma devolução aos membros da cultura, valorizando a cultura através de conceitos e avaliações positivas diferente da visão que a cultura dominante normalmente tem de práticas culturais diferentes da sua. Pensemos só como livros escolares ou métodos de ensino ou negligenciam outros conteúdos e formas de ensino ou até passam uma visão pejorativa destas outras manifestações como sendo culturalmente inferior. O objetivo de devolução ou aplicação na própria cultura de origem levaria ao desenvolvimento de projetos pluriculturais que visam uma nova valorização de diversas culturas musicais no seu próprio meio, frente a hegemonia de um contexto cultural dominante que não reconhece outras expressões musicais como equivalentes na sua função e importância. É por este motivo que muitas vezes outras expressões musicais rejeitadas ou não reconhecidas pelo modelo cultural vigente - obviamente determinado pela classe dominante - precisam justamente deste tipo de reconhecimento através de pesquisas contextuais e da aplicação de seus resultados no próprio meio, que seriam normalmente meios ou etnicamente ou culturalmente bem definidos. Tomemos como exemplo o caso da Escola Oba Biyi, localizada num terreiro de Candomblé, o Axé Opô Afonja, aqui em Salvador que há mais que uma década desenvolve um projeto diferente na educação. Partindo do contexto histórico e religioso de uma comunidade de Candomblé tenta-se criar alternativas para os padrões culturais passados pelo sistema escolar dominante que não reconhece a existência de outras culturas ao lado ou dentro da cultura dominante. No caso desta comunidade a pesquisa ocorreu em conjunto com os próprios alunos e seus professores, em grande parte membros da comunidade religiosa. Através deste trabalho em conjunto foi realizado uma abordagem nova da expressão cultural do Candomblé, colocando música, dança, artes plásticas, história, geografia e expressão verbal num novo contexto, em que serviam como base e conteúdo para as diversas matérias ensinadas, em vez de usar apenas livros que jamais faziam alguma referência a estas manifestações - a não ser como sendo folclore. Desta forma todos os elementos da cultura própria, a partir do projeto incluídos no ensino formal, ganharam uma nova luz e importância, ajudando a criar uma identidade diferente e mais consciente. 56 ICTUS 01

A postulação da necessidade de uma educação pluricultural - ou no nosso caso especificamente plurimusical - devido a plurietnicidade do Brasil se propõe a combater uma orientação unilateral que reforça na prática muitas vezes formas e conteúdos de ensino que não tem nada a ver com a realidade das crianças em questão. Desta forma tenta-se inclusive evitar problemas como falta de interesse e evasão escolar. Isso quer dizer na prática que os meninos oriundos de um contexto afrobrasileira religioso-ritual teriam no seu ensino escolar tanto elementos de sua própria cultura quanto de outros contextos culturais, porém sem aplicar os conceitos da cultura dominante como sendo os únicos referenciais, tendência normalmente encontrada. Outros contextos culturais igualmente definidos etnicamente são culturas indígenas ou de descendentes dos mais diversos grupos de imigrantes no Brasil que se prestam para experiências parecidas com a descrita acima. Porém, para chegar a uma pesquisa contextual com um levantamento bem sucedido e uma aplicação dentro de uma proposta pluricultural, prestigiando as diversos formas do saber conforme as suas origens, precisam ser consideradas as diversas modalidades de transmissão deste conhecimento. Uma grande parte das culturas não oficiais usa até hoje a transmissão oral, passando através dela terminologias próprias, e todos os seus conhecimentos ligados a letras e seus conteúdos, à construção de instrumentos e às técnicas de tocá-los e a questões mais complexas como simbologia e conhecimentos filosóficos, botânicos e outros. A linguagem normalmente usada na transmissão oral inclui também recursos em geral denominados como gíria, códigos ou línguas especiais, tratando-se de rituais. Isso significa que para realizar um levantamento dentro de um certo contexto cultural, junto com os membros da cultura, tem que se levar em conta a linguagem própria existente e tratá-la sem que haja repressão ou correção apressada (comparando-a com a norma da chamada Língua culta), para realmente chegar a uma avaliação positiva da expressão pluricultural musical em questão. Tratando-se de um projeto de educação pluricultural existem todas as possibilidades para trabalhar a partir desta linguagem própria - além da música em si - conceitos de português, de história, movimento e artes de uma forma geral. Depois da abordagem destes dois extremos de aplicação e utilização de resultados de pesquisa fora e dentro da cultura de origem, torna-se interessante abordar um caminho intermediário que apesar de aplicar os resultados fora do contexto de origem, se beneficia de posturas, pontos de vista e metodologias do segundo. c) Seria uma tentativa de transportar expressões culturais/musicais, após uma pesquisa bem aprofundada, junto com os membros da cultura para outros contextos culturais, usando o máximo de delicadeza. Este tipo de transposição de A educação musical e a música da cultura popular 57

um contexto cultural para outro não deve ser confundido com uma mera apresentação folclórica, do tipo descrito inicialmente. Ao contrário, estamos pensando numa tentativa de apostar numa possibilidade de comunicação entre crianças de meios diferentes. Seriam experiências intermediárias, interpretações para passar valores e conceitos musicais de um contexto original para um outro novo, por exemplo do rural para o urbano, da geração dos nossos avós para a de hoje, de um contexto social para outro ou de uma região para outra; este procedimento torna-se até necessário num país como o Brasil, onde jamais todos serão portadores da mesma cultura. Porém, dando valor a todas as formas existentes (tanto em projetos pluriculturais quanto fora deles) é possível trabalhar com inspirações contextualizadas, sem tratar a música como mera matéria prima que existe fora de seu contexto original e vital. Ao contrário ela - com as suas diversas constatações e diversas origem - pode ser encarada de forma exemplar para incentivar crianças de outros meios (tanto de outras classes sociais, quanto de outros grupos etnicamente definidos) a aprenderem outros conteúdos musicais ou no mínimo aceitar outras formas com mais naturalidade, senão desenvolver uma postura diferente a respeito de outros manifestações de sua origem e seu meio cultural e tornarem-se mais conscientes das riquezas existentes em todos os meios. Exemplos e sugestões para este procedimento podem ser dados tanto da área de trabalho artístico quanto didático/educacional: gostaríamos de mencionar o trabalho de um grupo novo aqui em Salvador Barra Manteiga, que se propõe a trabalhar com repertório tradicional, porém vestindo-o com uma roupagem nova. Desta forma transporta os conteúdos tradicionais para um outro meio novo. Nas apresentações que acontecem em espaços tradicionalmente sendo representações de uma certa classe e sua cultura, por exemplo teatros e outros espaços culturais, obviamente o público é composto basicamente de meninos desta mesma classe. Porém, estão sendo integrados num espetáculo - participação que trabalha com diversas origens, servindo de exemplo e experiência tanto para os pais que levam os seus filhos, quanto para professores que a partir daí podem desenvolver experiências parecidas que visam o resgate do lúdico, quanto o aproveitamento de repertórios pesquisados nos seus contextos originais e aplicados em outros. Neste caso se pensa mais do que em uma mera transposição da música só, seria uma tentativa de passar junto com a música, pesquisada em meios e lugares diferentes daqueles aonde finalmente é aplicada, as suas conotações contextuais como proposta real de enriquecimento cultural e social sem preconceitos sociais em termos de considerar uma ou outra cultura superior ou inferior, sempre baseando-se em pesquisas onde os próprios membros da cultura participam. 58 ICTUS 01

Vemos a música neste caso como elemento chave devido a sua ligação direta com as mais diversas manifestações artísticas que se oferecem no conjunto para transportar outros conteúdos também, que igualmente podem ser trabalhados - como a linguagem, aspectos históricos, etc. Obviamente trata-se de uma tarefa difícil, devido a posição difícil da educação musical na escola. Porém, acredito que na medida em que a educação musical se entende não apenas como área isolada, mas sim como meio de expressão que tem uma íntima ligação com outras expressões - artísticas ou não - que se torna altamente importante para o desenvolvimento infantil, é possível alcançar novos horizontes. 3) A educação musical - considerações finais A vivência de outras realidades musicais num sentido mais amplo, incluindo outros aspectos contextuais, torna-se extremamente importante num país onde as diferenças sociais são imensas e onde o impacto de tendências niveladoras, através de uma hegemonia total dos modernos meios de comunicação tende a fazer desaparecer qualquer diferenciação cultural ou musical. Resgatar neste sentido espetáculos musicais/cênicos e trabalhar com os seus mais diversos elementos, como no bumba-meu-boi, ver o conteúdo da poesia de cordel e as improvisações poéticas dos cantadores, entrar na riqueza das histórias cantadas e seus ensinamentos ou finalmente ver a filosofia do candomblé em ligação com a sua música, seriam apenas algumas poucas sugestões, tiradas do conjunto enorme de manifestações musicais que apesar de tudo, ainda existem neste pais. Certamente é importante ressaltar que é fundamental trabalhar estas manifestações não como folclore - termo até hoje usado indiscriminadamente - mas sim como manifestações da cultura popular, da cultura do país como um todo, como algo vivo e significativo que oferece uma alternativa muito importante para a educação musical, trazendo outros conceitos de música, de sua transmissão e interação do que aqueles normalmente presentes no ensino baseado apenas no ensino da música ocidental. O resgate da música da cultura popular dentro da Educação Musical é necessário, importante e até indispensável, porém, é importante também, refletir sobre a forma como se realiza este resgate e como se aplicam os resultados deste resgate. Como tentei mostrar, há diversas posturas frente ao resgate e à aplicação, considerando que o caminho que não exclui um procedimento metodologicamente mais ligado a áreas como a etnomusicologia/antropologia poderá trazer benefícios e levar a novas descobertas. Para que isso possa acontecer certamente é indispensável que haja uma maior aproximação entre as áreas de Educação Musical e a etnomusicologia. Um outro aspecto, não apenas lateral, destas reflexões desenvolvidas até ago- A educação musical e a música da cultura popular 59

ra, é uma sugestão especial para a área de aplicação: A educação musical deveria não apenas pensar em como aplicar elementos da música da cultura popular na educação musical, mas também como preparar professores que possam dar a sua participação em projetos como os apontados anteriormente, - projetos de orientação pluricultural -, sem necessariamente aplicar os conteúdos do ensino formal de música. Em vez disso estes professores trabalhariam dentro do universo musical da cultura musical em questão, criando alternativas novas para o ensino tradicional. O aspecto da retribuição, da devolução daquilo que foi aprendido e levantado com a pesquisa, contextualizada no meio da cultura popular, se oferece quase, que naturalmente para a educação musical, porém ainda foi muito pouco transformado em prática. Minha sugestão - obviamente falando mais com a experiência de quem vê do lado da etnomusicologia - para os educadores musicais é, que estes pensem mais nesta possibilidade de se integrarem no meio de onde se originam as manifestações musicais pesquisadas, para também trabalhar em projetos que fortificam o próprio contexto original, além de pensar em formas novas de resgates e integrar as manifestações musicais da cultura popular no ensino musical oficial e tradicional. Levando em conta todas as reflexões feitas neste texto, e finalizando a, gostaria de concluir com as seguintes palavras: pesquisando e resgatando, aplicando e integrando, retribuindo e devolvendo, chegou a hora de uma nova concepção da educação musical que pensa mais na criança como ser humano social e cultural do que num ser submetido a experiências educacionais, que precisa apenas de inspirações e estímulos para trilhar novos caminhos em vez de ficar presa a concepções preocupadas apenas com métodos que reproduzem uma visão unilateral do universo musical existente no Brasil e no mundo. 60 ICTUS 01

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