ARTIGO ORIGINAL NAS TRILHAS DA PLURALIDADE CULTURAL: UM ESTUDO SOBRE O SINCRETISMO E A INCULTURAÇÃO DA FÉ



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Transcrição:

ARTIGO ORIGINAL NAS TRILHAS DA PLURALIDADE CULTURAL: UM ESTUDO SOBRE O SINCRETISMO E A INCULTURAÇÃO DA FÉ Antônio Carlos Borges Martins 1 RESUMO Pesquisa bibliográfica que busca discutir os conceitos e implicações do sincretismo e da inculturação da fé numa perspectiva sócio-antropológica. Em tempos de tentativas de valorização da pluralidade cultural, este estudo se faz importante por tratar de temas a ela associados. Palavras-chave: Pluralidade cultural. Sincretismo. Inculturação. Religiões Afrobrasileiras. ABSTRACT Bibliografic search that looks for discussing the concepts and implications of syncretism and the uncultivated of faith in the perspective of socioanthropologic. In the times of pursuing of valorization of the cultural plurality, this study turns to be very important to discuss the themes concerning about valorization. Keywords: Plurality Cultural. Syncretism. Uncultivated. Afro-brazilian religions. 1 Psicólogo Clínico - Centro Universitário de João Pessoa UNIPÊ; licenciado em Psicologia - Centro Universitário de João Pessoa UNIPÊ; licenciado em Filosofia - Universidade Católica de Pernambuco UNICAP; Mestre em Psicologia Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora CES/JF; Professor das disciplinas Tópicos em Ciências Sociais e Psicologia do Instituto Superior de Educação de Santos Dumont Fundação Educacional São José (FESJ).

INTRODUÇÃO Muito apetite de discurso num dado momento e em determinadas condições, desconfiança e silêncio noutros contextos, assim é a relação dos estudiosos para com o sincretismo religioso. Se é verdade que as convergências e as dissonâncias passeiam por ali, é também verdade que a velha questão continua convidativa. Existe em nossos dias possibilidades de ampliação do campo conceitual de sincretismo? O estudo aqui apresentado tenta compreender a problemática do sincretismo e da Inculturação. Para tanto nos ocupamos de modo particular da leitura de textos de Pierre Sanchis e de Mário França. Com certeza, os outros autores utilizados ajudaram a complementar tal compreensão. Para facilitar nossa exposição, o trabalho está dividido em três momentos: o primeiro o processo do sincretismo religioso tentativa de um breve resgate da questão do sincretismo religioso desde as perseguições dos negros escravos e também de uma verificação inicial do problema na teologia e nas Ciências da Religião. O segundo inculturação da fé baseado no trabalho de Miranda registraremos elementos de seu estudo acerca da incidência da dimensão religiosa da cultura no cristianismo como parte da inculturação. E, por último, em ampliação do campo do conceito fundamental de sincretismo apresentaremos um pouco daquilo que para o antropólogo Pierre Sanchis é a saída do senso comum sociológico quanto à problemática do sincretismo. Encerraremos com algumas considerações finais. O PROCESSO DO SINCRETISMO RELIGIOSO Sincretismo, mistura de formas, ou quem sabe de fórmulas, encontro dos diversos, ou seria desencontro dos iguais? As Ciências Sociais e Teologia, tem dele uma compreensão diversa, muita das vezes remetendo-nos à idéia de estar em jogo a identidade, à idéia de mistura que deforma. Afinal, trata-se de um fenômeno que aponta para a inclusão de, pelo menos, alguns elementos do outro, e essa idéia, por

vezes assusta e até mesmo causa medo da perda de identidade. Todavia, sincretismo também evoca correspondência e a partir daí, pode ser entendido como algo não muito assustador nem gerador de medo. Miranda (2001, p. 109) visando compreender o termo a partir de uma ordem teológica, como processo da inculturação da fé, o que exige um contemplar também o universo religioso, nos informa que: O termo sincretismo tem sua origem em Plutarco e caracterizava uma união das cidades cretenses, normalmente inimigas, diante de ameaças externas. Desde o Renascimento a palavra serve para designar, positiva e negativamente, compilações sintéticas de cunho cultural. Na época do confessionalismo se tornou um conceito antiecumênico, até emergir no século XIX como um instrumento utilizado nas ciências da religião. Aí então foi empregado com a finalidade descritiva ou polêmica, no estudo histórico do cristianismo, já que este, em seu desenvolvimento, absorveu elementos culturais e religiosos de seu contexto. Neste sentido, muitos consideram o catolicismo um dos maiores exemplos de religião sincrética. Para as ciências da religião o sincretismo é um fenômeno que acontece, sem conotação positiva ou negativa. Ao analisá-lo, contudo, os estudiosos discordam claramente, devido ao diverso instrumental teórico usado para interpretá-lo e aos pressupostos subjetivos, conscientes ou não por parte dos cientistas. Tema de difícil abordagem dado a recusa por parte de militantes ou da literatura acadêmica e mesmo pela conotação negativa que vem atravessando há anos, o sincretismo estampa uma matriz sócio-histórica de desigualdade. O conceito de pureza e seu oposto, a mistura ou sincretismo, são sempre construções essencialmente sociais e tendem a aparecer freqüentemente em situações de disputa de poder e hegemonia. (...) pureza, mistura e sincretismo são, portanto, conceitos sempre e por definição etnocêntricos. (SANCHIS, 1994, p. 6). Sanchis (1994, p. 6) dirá que diante da problemática do reconhecimento do sincretismo as antenas do pesquisador ficam sempre aguçadas e que enquanto isso, o que caracteriza esse reconhecimento, na medida em que ele se dá, é a pluralidade de formas legitimadas: junção, união, confluência, mistura, aglutinação, associação, simbiose, amálgama, paralelismo, correspondência, equivalência, justaposição ou convergência, acomodação, concordância, finalmente e omito várias síntese. [...] E o que vem colorir de nota ainda mais pitoresca a problemática é que um dos grandes argumentos contra o sincretismo, que não passaria de uma acusação desflechada pelas formas dominantes de religião que se autoconsideram como puras contra suas homólogas mais populares, menos dotadas de um corpus teológico racionalizador, encontra-se hoje quase que invertido através do uso da categoria por notáveis teólogos cristãos, que não somente enquanto historiadores reconhecem o sincretismo como ativo no processo de formação de sua própria religião, mas como teóricos,

chegam a reivindicar a presença indispensável de uma de suas modalidades para que a religião, seja de fato, religião. Sabemos que já nas lutas dos negros escravos para se libertarem de seus senhores brancos são encontradas perseguições de certos tipos de práticas religiosas por eles executadas. Os estudos de Negrão (1996) acerca da Magia e Religião na Umbanda mostram que jornais, desde 1854, registram a existência de rituais de origem africanas e de reações dos setores hegemônicos frente a elas. O negro era identificado como o feiticeiro que praticava a magia negra, e o medo daí gerado passa a ser um medo real do próprio negro. Até 1930 há um certo silêncio quanto a esse tipo de acusação contra os negros e algumas são feitas contra as práticas de origem européias. Nesse ínterim chega o kardecismo, alto espiritismo freqüentado pelas elites. Do outro lado seguia o denominado baixo espiritismo, marcado pela participação das pessoas desclassificadas socialmente. Ali, a imprensa da época registrava os ex-escravos como sujeitos que viviam sempre envolvidos em práticas de sortilégios, feitiçaria, curandeirismo, imoralidade e interesses escusos. Com a revolução de 1930, o Estado Novo em nome da modernidade reprime fortemente os cultos de origem negra. Em 1941, no Primeiro Congresso Nacional da Umbanda no Rio de Janeiro é decidido o uso dessa autodesignação buscando institucionalizar-se e legitimar-se, para tanto decide-se pelo não contemplar as práticas tidas como bárbaras. Em 1945, com a redemocratização e o processo eleitoral, a situação se inverte e os antigos perseguidores passam a ser os protetores. E não bastando esta inversão de posições, antes mesmo do advento da década de 50, surgem novas observações da problemática e com elas a percepção do pesquisador francês Roger Bastide da presença européia nos rituais que ele chamou de macumba paulista (NEGRÃO, 1996). Cavalcanti (1986) explicará que com Bastide foi instaurado o pensamento contemporâneo sobre o sincretismo, e que ele ao se deparar com o problema do sincretismo, propõe verificá-lo como fenômeno da aculturação, que aponta para a relação entre valores e estrutura social. Nele a magia e a religião destacam-se como tipos diferentes de representações coletivas, a segunda compreendida como sistema fechado, vinculado à vida cultural, já a primeira regida pela lei da acumulação que provoca forçosamente o sincretismo.

Negrão (1996) nos informa que em 1950 há um grande investimento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB numa campanha contra o espiritismo, especialmente contra a umbanda. Ainda nos anos 50 as notícias de jornais misturam confusamente tipos de práticas como bruxaria, espiritismo, feitiçaria e curandeirismo, refletindo um sincretismo incipiente. O que também ocorre nos registros de objetos apreendidos pela polícia em espaços utilizados para tais práticas, a exemplo de cartas de jogar, búzios, imagens de santos ao lado de orixás, objetos de uso universal da magia, como fios de cabelos, pedras, bonecas, punhais, dentre outros. Era possível ver europeus adotando elementos utilizados nos cultos do povo negro e vice-versa. Com o papa João XXIII aparece por parte da Igreja uma certa tolerância. Com o golpe militar de 64, os antigos reprimidos passam a ser o grupo religioso preferido pelo Estado. No entanto, nos anos 80, com o advento dos grupos neopentecostais, volta o baixo espiritismo a ser agredido, agora desqualificado como adoradores do demônio. Na teologia a questão do sincretismo religioso será colocada a partir da integração de elementos religiosos presentes numa determinada cultura, quando se dá a inculturação da fé nessa cultura. Seu objetivo é verificar a ocorrência da dimensão religiosa da cultura no cristianismo como parte inseparável do processo de inculturação. Assim, o sincretismo participa como vertente religiosa de um processo permanente na vida da Igreja. A inculturação da fé, segundo Miranda (2001, p. 110), para ser capacitada e vivida num contexto diferente deve incorporar os novos traços culturais para poder se constituir, expressar e ser uma realidade viva. Entre esses traços estão componentes religiosos da outra cultura, que iluminam desafios dela e deverão ser assumidos ou, modificados pela fé, cuja intencionalidade fundamental é nada deixar de fora de sua luz e inteligibilidade. Aqui já aparece o sincretismo religioso, como fenômeno neutro, como estreitamente vinculado à inculturação da fé. Diversos fatores possibilitam a assimilação dos novos elementos religiosos: as semelhanças, as lacunas que serão preenchidas quando do contato com outra religião, maior força de uma cultura com sua religião sobre a outra, podendo a cultura desprovida de poder quase desaparecer frente a outra. Miranda (2001) se pergunta se não teria sido isso o que ocorreu com os índios ao longo da costa brasileira. Fatores como justaposição ou mesmo rejeição por uma das religiões

poderá ocorrer, a exemplo do que acontece entre a religião africana e o catolicismo onde convergem entre concepção de Deus, certo paralelismo entre os orixás e os santos católicos, algumas misturas em práticas de ritos o batismo, por exemplo e rejeição de alguns elementos como o tambor de chora, diversidades que podem se dar simultaneamente. A identidade social do indivíduo é o que se encontra em jogo no processo de sincretismo segundo a fenomenologia religiosa. A outra cultura é encarada como ameaçadora a seu mundo já organizado. A questão que surge é: por que alguns elementos culturais (e religiosos) são assumidos e outros rejeitados? As leituras funcionalistas desse fenômeno pressupõem aqui uma situação de crise, em vista das contradições culturais e/ou religiosas sofridas pelo indivíduo. Este sai então em busca de uma nova síntese que assegure novamente sua identidade. No caso do cristianismo deve ser considerado não só o esforço missionário em tornar a fé cristã entendida, aceita e vivida em outra cultura/religião, mas também a resistência dos povos nativos em conservar no cristianismo ao menos parte de seu universo simbólico cultural/religioso (símbolos, categorias e valores) como se deu em algumas regiões da América Latina. (MIRANDA, 2001, p. 110). O sincretismo enquanto processo está em andamento e assim, o que com ele ocorre é diferente do sincretismo como resultado final. Daí a necessidade de uma reflexão que contemple a possibilidade do sincretismo encontrar-se como etapa da inculturação da fé. A INCULTURAÇÃO DA FÉ Inculturação é algo consensual na reflexão teológica há bem pouco tempo, algo desses últimos anos, no entanto, o sincretismo, conforme vimos, atravessou séculos. Os teólogos buscam distinguir sincretismo correto e sincretismo falso, sem se colocarem em oposição às explicações das Ciências da Religião, apontam eles para uma síntese que acreditam mais completa e, portanto, superior. A questão do chamado sincretismo legítimo evoca o problema da identidade cristã, posto que o importante para o membro de uma religião é confessar não só uma identidade, mas sobretudo a verdade que aquela religião assume. Ou seja, a base de sua adesão e compromisso religioso é a verdade e a consistência daquilo em que ele crê. (MIRANDA, 2001).

Somente reconhecendo Deus como aquele que atua na História, aquele que é agente primeiro do fenômeno religioso, será possível uma definição substantiva de religião. Assim para a teologia, a Antropologia, embora não sendo falsa, é insuficiente para dar conta de tal reflexão, ela carece de argumentos que são próprios da teologia. Já Schleiermacher observa que a religião não é algo acrescentado à realidade humana e ao seu mundo e sim uma concepção profunda e mais consciente dessa mesma realidade. Desse modo, a consciência profana (ou secularizada ) da realidade está sustentada, fundamentada, carregada por Deus, do mesmo modo que a assim chamada consciência religiosa. O que as distingue é que a primeira não cai na conta de que também é constituída por uma realidade transcendente que a segunda chama de Deus. Importante é que a passagem de uma para a outra resulta da ação do próprio Deus, que não pode, portanto, estar ausente de uma definição de religião. (MIRANDA, 2001, p. 114). O desafio para as religiões é, ao se defrontarem com novas realidades, conseguir continuar dando conta de cobrirem com seus toldos unificadores suas expressões religiosas, pois, caso contrário, podem ser assimiladas por outras religiões e desaparecerem. Necessitam ainda reinterpretar suas expressões adequando-as às novas realidades, ou assumir elementos das outras religiões complementando insuficiências suas ou, por fim, rejeitar novas concepções ameaçadoras da tradição religiosa. O próprio dinamismo humano é exigente de abertura por parte das culturas e das religiões especialmente de plenitude e universalização. A história da humanidade, entendida pela teologia como a história onde se dá a salvação ou a perdição do homem, é também onde se revelam a realidade e a especificidade do espírito humano, mas principalmente por essa conotação teológica é a história da manifestação do Mistério de Deus. Citando textos bíblicos e documentos da Igreja, o teólogo mostra que a verdade sempre buscada pelos cristãos é o próprio Cristo, tratando-se aí de um processo contínuo. E mais, toda e qualquer religião, inclusive o cristianismo, deve remeter ao absoluto, pois ela é necessariamente histórica e carente de aperfeiçoamentos. O cristianismo pode, portanto, receber elementos de outras culturas e religiões de modo a ajudá-lo em sua própria identidade. (MIRANDA, 2001).

O sincretismo que numa abordagem das Ciências da Religião aparece como fenômeno neutro, terá, a partir de uma avaliação estritamente teológica, conotação negativa ou positiva. A questão que surge para a Teologia é a manutenção da fé com a inclusão de novos elementos ou o advento de uma outra fé. Daí a afirmação de Miranda (2001, p. 122) Do ponto de vista teológico, ao contrário da perspectiva fenomenológica é fundamental que a identidade da fé seja salvaguardada, para que possamos falar de novas e adequadas expressões da mesma realidade salvífica. Falhando este ponto teríamos, não uma inculturação da fé, mas simplesmente outra fé. Há para o cristianismo experiências salvíficas presentes desde a história do povo de Israel, passando pelo Novo Testamento, sobretudo pela pessoa de Jesus Cristo. Tais experiências sempre foram realizadas num determinado contexto sociocultural e em situações existenciais bem concretas. Por isso é que o encontro do cristianismo com o helenismo foi de importância singular não só no que tange inculturação da fé cristã no âmbito da cultura helenista, mas também enquanto elemento provocador da cristianização cultural do Ocidente, a exemplo das noções modernas de pessoa, liberdade, igualdade, direitos universais do homem, etc. Miranda (2001) entendendo o sincretismo como algo bem mais complexo do que aquilo que parece ser, pois tem em si mesmo uma outra concepção, aquela que o coloca como etapa do processo de inculturação da fé. Desde este pensamento teológico, o próprio sincretismo tende a desaparecer à medida em que é reintegrado na inteligibilidade e na expressão da fé, ou se transformará numa mistura incompatível com a fé. Isto fará com que ele receba a conotação negativa que atualmente ainda lhe é atribuída. Daí a indicação do teólogo do não uso do termo sincretismo e a escolha por inculturação da fé. E se a problemática da Igreja Católica frente às Religiões Afro-brasileiras é novamente colocada em pauta, para Miranda (2001) tal questão deveria ser pensada em consonância com a relação Igreja e Culturas (religiões) indígenas. Também nesta situação o inevitável contato intercultural e inter-religioso não excluirá, de forma alguma tais tradições. Assim, entendemos que permanece ainda em nossos dias, os questionamentos à Igreja sobre a atração que as Religiões dos Orixás exercem nos católicos, indicando, portanto, as lacunas ou mesmo as

unilateralidades presentes no modo como se revelam as configurações da fé em nosso país. AMPLIANDO O CAMPO DO CONCEITO DE SINCRETISMO O caráter fragmentado da vida social nos grandes centros urbanos, somado às inúmeras dificuldades gera o isolamento que acarreta a competição entre os indivíduos. Estas condições aparecem como terreno fértil para uma pluralidade de formas religiosas, mas não menos de misturas e de buscas incansáveis de distinções entre elas. No entanto, com certeza, em nossos dias, diante dos avanços tecnológicos e da rapidez com que circulam as informações dentre outros tantos fatores, tais constatações também são bastante cabíveis ao falarmos das médias e pequenas cidades. Ali, como nos grandes centros, o esforço no sentido de garantir a identidade enquanto se percebe o outro como outro, parece ser uma constante. Isso soa-nos como um convite a repensar a questão do sincretismo, principalmente destacando o problema da identidade/alteridade. A problemática do sincretismo ainda é possível de ser reformulada? O antropólogo Pierre Sanchis procura resolver esta questão propondo pensar o sincretismo saindo da definição do senso comum sociológico, a saber, saindo do entendimento de que o sincretismo é a mistura de duas ou mais religiões. Para tal empreendimento ele buscará fazer com o sincretismo aquilo que Lévis Strauss fez com o totenismo. Nesse análogo tratamento a sua abordagem se aproximaria primeiro do fenômeno como de um universal dos grupos humanos quando em contato com outros: a tendência a utilizar relações apreendidas no mundo do outro para ressemantizar o seu próprio universo. Ou ainda, do modo pelo qual as sociedades humanas (sociedades, subsociedades, subculturas) são levadas a entrar num processo de redefinição de sua própria identidade, quando confrontadas ao sistema simbólico de outra sociedade, seja ela de nível classificatório homólogo ao seu ou não. (SANCHIS, 1994, p. 7). Desse contato universo próprio universo do outro, o universo próprio é transformado, o que não ocorre de uma única vez, na verdade ele passa a ter uma constante redefinição da identidade social. Mas segundo Sanchis (1994, p. 7) esse enfoque supõe:

a) um processo ao mesmo tempo intelectual e emocional, fundamentalmente inconsciente, mas necessariamente em parte consciente e até reflexivo se quiser inscrever-se numa história institucional; b) a apreensão global de um contínuo englobando duas ou mais identidades, mas não se reduzindo à sua simples justaposição; c) enfim, um fluxo de comunicação, em qualquer nível emergente de simbolismo de preferência mas não exclusivamente verbal e tropológico. Finalmente uma estrutura entendida como o princípio dinâmico de transformações através da criação de homologias entre o sistema do Eu e o sistema do Outro. Como conseqüência de tais posicionamentos reaparece a problemática culturalista da reinterpretação. Para Sanchis (1994), tal interpretação permitirá uma convivência sem explosões de universos abstratamente contraditórios, ajudará aos dominados a sobreviverem, prosperarem e, ainda, manterem o equilíbrio emocional coletivo e individual. A questão da desigualdade entre duas culturas que à baila a superioridade, a conquista, a dominação de classe, o poder político e constantes lutas a fim de legitimar ortodoxias, de um lado, e de outro, resistências a tais pretensões. Tornará expostas as tensões marcadas pela reivindicação de pureza e autenticidade de grupos no interior da instituição, no entanto, afirma Sanchis (1994), que tais relações são incapazes de esgotar a definição do processo sincrético. Há possibilidades de desdobramentos e transformações até no caso de uma relação igualitária das duas instâncias identitárias. O dominado, o vencido e sua religião podem ser capazes de provocar um verdadeiro fascínio sobre o vencedor. Por isso vale registrar que [...] o processo sincrético é polivalente o suficiente para acolher as mais diversas cristalizações sem que a multiplicidade das pesquisas se encontre nunca condenada à repetição ou à aplicação sistemática de um mecanismo sincrético particular, uma vez descoberto. É bem o caso de relembrar aqui os preceitos de Boas: a mesma causa pode produzir efeitos diferentes, e causas diversas produzir os mesmos efeitos dependendo dos múltiplos fatores que presidem a mudança: fatores endógenos ou exógenos, ambientais ou históricos. (SANCHIS, 1994, p. 8). A lenta construção comparativa de uma matriz provavelmente estrutural indica possibilidade de interpretações do sincretismo a partir do fundamentalismo, acerca do que afirmará Sanchis (1994, p. 8): [...] é evidente que o fechamento autocentrado do grupo fundamentalista é também resultado de seu contato ou com um outro determinado ou com uma deriva geral da civilização que lhe parece perigosa para a sua identidade. Mas o refluxo sobre uma reafirmação superlativa desta identidade não saberia enganar o

analista. Trata-se, na verdade, da construção de uma identidade em boa parte nova, inspirada pelo contraponto necessário aos traços diacríticos do adversário. Em certos casos, até mesmo inspirada pela imitação de alguns desses traços, a fim de permitir-se enfrentá-lo no seu próprio terreno. Os fatores determinantes na ordenação de uma cultura ou religião são de ordem histórica, portanto, capazes de transformações. É importante considerar a partir daí a diversidade dos grupos na sociedade, posto que ali são encontrados distintos, mas com quase a mesma relação sincrética. Um exemplo interessante para tal é o sincretismo que ocorre entre o catolicismo e as religiões afro-brasileiras. Reconhecendo a questão, é provável encontrar visões diferentes da problemática quando expostas pelos agentes de pastorais negros da Igreja Católica ou quando de uma exposição vinda do povo-de-santo. Para Sanchis (1994) tanto um quanto outro grupo poderá inverter o sistema matriz de onde emergiram os acréscimos e empréstimos recebidos, processados e assimilados. E poderá até mesmo chegar uma hora em que aos dois sistemas seja possível uma reinterpretação mútua, excluindo, portanto o sistema matriz. E mais, poderá acontecer algo semelhante a algumas situações com características entendidas como pós-modernas, ou seja, é possível que haja a rejeição do princípio da existência do núcleo matricial deste sistema. O tipo de síntese daí resultante permanecerá como parte do processo sincrético. Prandi (1996) refletindo sobre a Religião dos Orixás na sociedade contemporânea, apresenta a questão do negro e sua incômoda situação de ter que viver em dois mundos distintos, a partir da compreensão que Bastide tem do problema, ou seja, os negros durante o período colonial portavam a habilidade de viverem naqueles dois mundos a fim de evitar tensões e conflitos dados às suas condições escravas. A esta compreensão o pesquisador acrescenta as novas condições em que se encontra aquela religião, detalhando um pouco mais, mostra que, o negro podia contar com um mundo negro, fonte de uma África simbólica, mantido vivo pela vida religiosa dos terreiros, como meio de resistência ao mundo branco, que era o mundo do trabalho, do sofrimento, da escravidão, da miséria. [...] O sincretismo se funda neste jogo de construção de identidade. O candomblé nasce católico quando o negro precisa ser brasileiro. [...] As novas condições de vida na sociedade brasileira industrializada fazem mudar radicalmente o sentido sociológico do candomblé. Se até poucas décadas atrás ele significava uma reação à segregação racial numa sociedade tradicional, em que as estruturas sociais tinham mais o aspecto de estamentos que de classes, agora ele tem o

sentido de escolha pessoal, livre, intencional: alguém adere ao candomblé não pelo fato de ser negro, mas porque sente que o candomblé pode fazer sua vida mais fácil de ser vivida, porque talvez se possa ser mais feliz, não importa se branco ou negro. (PRANDI, 1996, p. 39-40). Bastide entendia que a questão precisa ser pensada contando com a mudança de direção vetorial de orientação do sistema de partida para o outro, ou seja, é mister considerar as duas distinções a dupla interpretação e a dupla aculturação. Diante da dupla identidade afirmada pelo mesmo ator em momentos e ambientes diversos, pelo menos em sua ação ele poderá operar por alternância sem angústia identitária. Daí o questionamento: trata-se ainda assim de sincretismo? (SANCHIS, 1994). De um lado uma resposta negativa poderia surgir imediatamente, do outro uma diversa desta primeira se origina da percepção de eu. Há uma vivência religiosa dual, todavia, as duas encontram-se ordenadas em linhas estanques estabelecendo entre elas um simples jogo de equivalências e correspondências. O modelo adotado por Sanchis (1994), segundo ele, permitirá não absolutizar nem uma nem outra das posições expostas, pois tratando-se de transformações do mesmo princípio estrutural, ambas podem corresponder a campos distintos em momentos sucessivos. No fundo, a universalidade do que ocorre no interior do sincretismo invoca um dito quase popular, ou seja, ele não impede que alguns sejam mais iguais que os outros. O Brasil e o catolicismo seriam para o antropólogo, duas realidades muito propensas a sofrer o processo sincrético. É importante percebermos que a luta por afirmação e, mais que isso, por garantir a condição de legitimidade, leva alguns grupos a se excluírem dos seus iguais, utilizando, não raro, até mesmo termos pejorativos quando se trata da identificação do outro. Por vezes é reproduzido o discurso dos brancos dominante sobre as religiões dos dominados. Entre os dominados aqui certamente estão incluídos em sua totalidade os cultos afro-brasileiros. Naqueles discursos a afirmação da vitória do bem sobre o mal, tal como ocorre nas palavras dos brancos quando da definição da ordem e da moralidade. Numa tentativa de salvaguardar seu espaço aqueles que assim o fazem, explicam faze-lo em nome da sua pureza africana. Assim, é também significativa a postura do terreiro em relação à Igreja Católica. O nagô considera-se incompatível com todas as outras formas de religiões existentes na

cidade, à exceção do catolicismo. [...] Admitindo-se explicitamente a presença de elementos da tradição católica nos mitos, nos ritos, nas prescrições que regem o terreiro, a mãe-de-santo nagô considera contudo que essa mistura com o acervo de traços culturais da religião dominante não provoca degenerescência da pureza nagô. Esta é ameaçada pela mistura com o toré e as outras formas religiosas. (DANTAS, 1982, p. 17). E segue a autora: [...] Em resumo, a conspurcação da pureza não decorre simplesmente da mistura, mas de um determinado tipo de mistura. (DANTAS, 1982, p. 17). Mesmo que tratado com certa assepsia conforme o fez Sanchis, o sincretismo ainda suscita a recusa em muitos atores sociais. Se tomarmos, por exemplo o movimento negro ou mesmo os grupos religiosos pentecostais, teremos deles uma afirmação de que possuem uma identidade bem definida, excluindo-se, assim, da possibilidade de alienação; outros grupos ainda que portadores de sincretismo recusam o termo para si, preferem para qualificar o que realizam palavras com o macroecumenismo ou metaecumenismo, mas na umbanda o termo permanece bemvindo. Acerca do que ocorre com a umbanda é possível citar trecho de A morte branca do feiticeiro negro, de Renato Ortiz (1977, p. 46), nele o autor afirma que os deuses africanos vão ser representados pelas imagens dos santos católicos, dando origem ao sincretismo religioso. Este sincretismo se faz porém mais em detrimento da fé católica, pois o deus africano subsiste atrás da máscara fornecida pela tradição cristã. Na umbanda, o que encontraremos é este fenômeno do sincretismo invertido: os laços com a África se rompem e a divindade africana passa a ser máscara dos valores culturais de uma sociedade branca e católica. Por ouro lado, Ferreti (2004) discutindo a questão desde as culturas populares e a religião nos apresentam o sincretismo como uma forma de resistência cultural, que tomando elementos distintos elabora novas formas culturais e religiosas. Assim, pode o autor considerar [...] que o sincretismo cultural reflete a presença de elementos barrocos na cultura brasileira, elementos que foram importantes no passado e continuam atuantes até hoje. Nossas festas populares, como alguns autores comentam, são festas barrocas, com a junção de elementos culturais de origens diversas. [...] Nelas podemos encontrar paralelismos, misturas e convergências de culturas, decorrentes dos brancos, dos negros e dos indígenas que fertilizaram nossa cultura nos instrumentos musicais, nos cânticos, nas danças, nas vestimentas, na alimentação, na alegria e na capacidade de reorganização de festas. (FERRETI, 2004, p. 28). Vemos que a problemática do sincretismo no Brasil permanece atual, porque presente em muitas manifestações religiosas e nas culturas populares, e mais, ela

se coloca hoje, nas trilhas da pluralidade cultural e ali mantendo ainda suas características de tema polêmico e, portanto, instigador. CONSIDERAÇÕES FINAIS Se é verdade que o termo sincretismo guarda em si um grau expressivo de complexidade, é também verdadeira a idéia de que, a medida que dele vamos nos inteirando, sua problemática vai se tornando cada vez mais interessante, e por que não dizer, convidativa. Parece que quando Sanchis (1994) cita o Brasil e o catolicismo como duas realidades sociais especialmente propensas ao sincretismo, está justamente lembrando-nos de que o processo sincrético é algo muito próximo de nós, a saber, somos nele. A questão da identidade/alteridade que ali aparece pôde ser tocada de forma tal que agora é possível uma melhor compreensão de que são múltiplas e imprevistas as relações quando o que está em jogo são estes dois elementos. O encontro com o outro será oportuno para uma redefinição de nossa identidade, até porque, é no encontro com Ele que o Eu será capaz de reagir recemantizando seu próprio universo. O sincretismo marca sobremaneira a história de perseguição do negro escravo, em seu constante esforço para manter viva a chama de sua cultura/religião, ainda que assumindo as decisões de misturar aos seus elementos o do outro, pois o fazia a fim de sobreviver e poder mais adiante erguer bandeiras de luta para o reconhecimento de pureza no interior de sua religião. O que nos possibilita a compreensão de que enquanto dinâmico e plural o processo sincrético é também gerador de mudanças e capaz de exigir reinterpretações até mesmo de si próprio. Inculturação da fé ou sincretismo religioso? O fenômeno do sincretismo aparece na teologia como parte de um processo maior denominado pelos teólogos inculturação da fé. Toda e qualquer religião é diferente do absoluto em que crê, no entanto, cada uma delas precisa remeter a este absoluto. Destarte é que segundo Miranda (2001) o cristianismo continua aberto a receber de outras culturas e religiões, elementos que corroborem com o clarear de sua identidade. A identidade ali está sempre em construção e quanto mais entra em contato com o outro, mais é capaz de erguer-se. Mas também o teólogo ao olhar o sincretismo como etapa da inculturação da fé, reconhece nele algo que é agravado pela evangelização insuficiente em todos os seguimentos sociais brasileiros, e mais, por entender que a

história do termo na Igreja traz mais confusões que esclarecimentos acredita que uma alternativa seria evitar o seu uso, utilizando, portanto a inculturação da fé. Por fim, se há de fato uma abertura e acolhimento da Igreja Católica para com os elementos de outras Religiões, há ainda uma dificuldade, conforme vimos quanto ao uso do termo sincretismo. Por isto, vale a pena uma vez mais registrar. Não obstante esta realidade, existem teólogos notáveis que tem reivindicado o sincretismo como uma modalidade que faz de uma religião de fato religião, ou seja, que contribui singularmente com a redefinição da identidade daquele grupo. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Origens para que as quero? Questões para uma investigação sobre a umbanda. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, n. 13/2, p. 84-101, jul. 1986. DANTAS, Beatriz Góes. Repensando a pureza nagô. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, n. 8, p. 15-20, 1982. FERRETI, Sérgio Figueiredo. Sincretismo, religião e culturas populares. In: Caminhos, Goiânia, v. 2, n. 1, p. 13-29, jan. jun. 2004. MIRANDA, Mário França. Inculturação da fé e sincretismo religioso. In: Inculturação da fé: uma abordagem teológica. São Paulo: Loyola, 2001, p. 87-109. NEGRÃO, Lísias N. Magia e religião na umbanda. Revista USP, São Paulo, n. 31, 1996, p. 76-89, set.-nov. 1996 ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, n. 1, p. 43-50, 1977. PRANDI, Reginaldo. Deuses africanos no Brasil. In: Herdeiras do axé. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 11-49. SANCHIS, Pierre. Pra não dizer que não falei de sincretismo. In: Comunicações do ISER, Rio de Janeiro, n. 45, p. 5-11, 1994.