ESTUDOS SOBRE O MECANISMO DE AÇÃO DA ARTEMISININA E DOS ENDOPERÓXIDOS, A MAIS NOVA CLASSE DE AGENTES ANTIMALÁRICOS - PARTE I



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Transcrição:

47 ESTUDOS SOBRE O MECANISMO DE AÇÃO DA ARTEMISININA E DOS ENDOPERÓXIDOS, A MAIS NOVA CLASSE DE AGENTES ANTIMALÁRICOS - PARTE I Alex Guterrez Taranto* José Walkmar de Mesquita Carneiro** Martha Teixeira de Araujo*** Bruno Matos Silva**** RESUMO Artemisinina e os endoperóxidos são a mais nova classe de fármacos antimaláricos. O seu mecanismo de ação, embora em debate pela literatura, é completamente diferente daquele dos antimaláricos clássicos, introduzindo uma nova esperança para o tratamento da malária. Esta revisão mostra alguns aspectos biológicos e químicos sobre o mecanismo de ação desses compostos PALAVRAS-CHAVE: Artemisinina; Endoperóxidos: Malária. INTRODUÇÃO A malária é uma doença infecciosa, não-contagiosa, de evolução crônica, com manifestações episódicas de caráter agudo, que aflige milhões de pessoas nas zonas tropicais e * Prof. Adjunto. Área de atuação: Química Farmacêutica, Química Medicinal, Química Computacional, Modelagem Molecular; E-mail: taranto@uefs.br ** Prof. Adjunto. Área de atuação: Química Teórica, Físico-Química Orgânica, Química Computacional; E-mail: walk@vm.uff.br *** Prof. Adjunto. Área de atuação: Química Teórica, Físico- Química Orgânica, Química Computacional; E-mail: mtaraujo@vm_uff.br **** Graduando do Curso de Ciências Farmacêuticas Área de atuação: Modelagem Molecular. E-mail: farmacobruno@yahoo.com.br Universidade Estadual de Feira de Santana Dep. de Saúde. Tel./Fax (75) 3224-8089 - BR 116 KM 03, Campus - Feira de Santana/BA CEP 44031-460. E-mail: sau@uefs.br

48 subtropicais do globo (NEVES 1998; OMS 2003; VERONESI, 1991, ). É talvez a mais antiga, a de maior distribuição e a mais conhecida das doenças parasitárias que afligem o homem. O nome malária tem origem latina e literalmente significa ar ruim, pois acreditava-se que a doença resultasse de emanações de pântanos. Nomes alternativos, como paludismo e impaludismo, são de origem francesa e têm o mesmo significado. Outros sinônimos, menos comuns, embora alguns mais populares no Brasil, são: batedeira, carneirada, febre intermitente e febre palustre (NEVES 1998; VERONESI, 1991). Na sistemática zoológica, os parasitas da malária humana estão classificados no filo Protozoa, classe Sporozoea, família Plasmodiidae, gênero Plasmodium, ao qual pertencem quatro espécies que afligem o homem: Plasmodium vivax, P. falciparum, P. malariae e P. ovale (NEVES 1998; VERONESI, 1991). Comparado às outras espécies, o P. falciparum causa maior morbidade e maior mortalidade, encontra-se presente na África, na Amazônia, no Sudeste asiático e na Oceania (NEVES 1998; VERONESI, 1991). A malária é transmitida ao homem pela picada do mosquito fêmea do gênero Anopheles, contaminado por ingerir sangue de pessoas infectadas com gametócitos, ou por transfusão sangüínea. O parasita apresenta um ciclo sexuado que ocorre no inseto e um ciclo assexuado que ocorre no homem (VERONESI 1991, NEVES 1998). Cerca de 1,5 a 2 milhões de pessoas morrem de malária, sendo que 3 mil crianças morrem por dia na África (KONDRACHINE; TRIGG, 1997). A doença mata, anualmente, duas vezes mais que a AIDS e muito mais que qualquer outra doença infecciosa. Os países mais comprometidos são Índia, Brasil (cerca de 300 mil casos/ano), Afeganistão e outros países asiáticos, incluindo a China (CAMARGO, 2003). Especula-se que 50% da mortalidade entre a população indígena no Brasil deve-se à malária causada por P. falciparum (KAGER, 2002; VASCONCELOS et al., 2002). Atualmente, a malária é tipicamente uma doença do mundo subdesenvolvido, pois foi erradicada da Europa, da América do Norte e da Austrália desde a metade do século XX, em razão do uso de dicloro-difenil-tricloroetano (DDT), tratamento dos

49 doentes com cloroquina, medidas de saneamento básico e drenagem dos campos (KAGER 2002; VASCONCELOS et al., 2002). A malária manifesta-se por episódios de calafrios, seguidos de febre alta que duram de 3 a 4 horas. Esses episódios são, em geral, acompanhados de profundo mal-estar, náuseas, cefaléias e dores articulares. Após a crise, o paciente retorna à sua vida habitual. No entanto, depois de um ou dois dias, o quadro calafrio/febre retorna e se repete por semanas até que o paciente, não tratado, sare espontaneamente ou morra em meio a complicações renais, pulmonares e coma cerebral. Tratado a tempo, só excepcionalmente morre-se de malária (VERONESI 1991, NEVES 1998, CAMARGO 2003). Em vários países, incluindo o Brasil, a quimioterapia da malária é feita empregando-se uma combinação de quinina e tetraciclina como tratamento padrão em casos não complicados. Contudo, a sensibilidade à quinina está diminuindo e a artemisinina e seus derivados estão sendo empregados como tratamento de primeira escolha em certas áreas, às vezes em combinação com a mefloquina (BALINT 2001). FÁRMACOS ANTIMALÁRICOS CLÁSSICOS Alguns dos antimaláricos clássicos são mostrados na Figura 1. Esses podem ser classificados de diferentes formas (FRÉDÉRICH et al. 2002), porém, a forma mais comumente utilizada baseiase na sua ação nos diferentes estágios do ciclo biológico do parasita. Segundo esse aspecto, os fármacos antimaláricos podem ser classificados como (RANG; DALE; RITTER, 1997; FRÉDÉRICH et al. 2002): 1)agentes esquizonticidas sangüíneos; 2)agentes esquizonticidas teciduais; 3)agentes profiláticos; 4)agentes que bloqueiam a transmissão entre o homem e o mosquito. Os agentes esquizonticidas sangüíneos, também conhecidos como fármacos para a cura clínica ou supressiva, são usados

50 no tratamento do ataque agudo. São eficazes contra as formas eritrocitárias do parasita. Nesse grupo estão os quinolinometanóis (quinina, mefloquina), 4-aminoquinolínicos (cloroquina), fenantreno (halofantrina), agentes que interferem na síntese ou na ação do ácido fólico (sulfadoxina, dapsona, pirimetamina) e os endoperóxidos (artemisinina e derivados). Os antibióticos tetraciclina e doxiciclina são úteis quando combinados com esses agentes (RANG; DALE; RITTER, 1997). Os agentes esquizonticidas teciduais levam à cura radical e são eficazes nas formas hepáticas do parasita e em gametas. Fazem parte desse grupo os agentes 8-aminoquinolínicos (primaquina) (RANG; DALE; RITTER, 1997). Os agentes profiláticos bloqueiam a passagem do estágio exoeritrocitário para o eritrocitário, matando o parasita quando esse deixa o fígado, conseqüentemente, impedindo os ataques de malária. Alguns fármacos dessa classe são cloroquina, mefloquina, proguanil, pirimetamina, dapsona e doxiciclina (RANG, DALE; RITTER, 1997). Os fármacos que bloqueiam a transmissão do homem para o mosquito são aqueles que têm a capacidade de destruir os gametócidos, dentre os quais se encontram primaquina, proguanil e pirimetamina (RANG; DALE; RITTER, 1997). ARTEMISININA E ENDOPERÓXIDOS ANTIMALÁRICOS Durante as décadas de 50 e 60, a OMS tentou erradicar a malária. O programa, baseado no uso de inseticidas potentes e de fármacos antimaláricos, tinha como objetivo interromper o ciclo homem-mosquito por tempo suficiente para que o reservatório da malária desaparecesse. No início do programa, havia 250 milhões de casos por ano. Entretanto, na década de 70, verificouse que o programa havia falhado, devido a fatores econômicos, administrativos e biológicos (DIAS; FREITAS 1997; RANG; DALE; RITTER, 1997). Em 1988, a OMS constatou que o número de infecções havia atingido o nível original (DIAS; FREITAS 1997, RANG; DALE; RITTER, 1997). Com isso, o parasita adquiriu resistência aos antimaláricos tradicionais, tornando-os ineficazes. Houve um aumento no número de cepas de P. falciparum

51 resistentes à cloroquina na Ásia, América do Sul e Central e África. Com a intensidade crescente dos casos de malária tornou-se evidente a necessidade do desenvolvimento de novos agentes antimaláricos (DIAS; FREITAS 1997). Em 1967, a República Popular da China iniciou um programa sistemático em busca de novos fármacos, empregando plantas nativas usadas como remédios em sua medicina tradicional (KLAYMAN, 1985). Uma dessas plantas, Artemisia annua L., já tinha uma longa história de uso. Conhecida como qing hao desde 168 a.c., foi usada inicialmente no tratamento de hemorróidas. No ano 340 d.c., ela foi descrita como antifebril no Manual de Prescrições para Emergências (Zhou Hou Bei fi Fang), escrito por Ge Heng (MESHNICK et al., 2002). Em 1596, foi descrito no Compêndio de Matéria Médica (Ben Cao Gang Mu) que a febre poderia ser combatida com preparações de qing hao (MESHNICK et al., 2002). Em 1798, a decocção de A. annua e Carapax trionycis foi sugerida como tratamento para a malária (KLAYMAN 1985). Como resultado do programa iniciado em 1967, observou-se, em 1971, que o extrato etéreo de Artemisia annua, obtido a baixa temperatura, apresentava atividade antimalárica. Em 1972, foi isolado o princípio ativo, não relatado na literatura anteriormente. Esse foi denominado qinghaosu (QHS), que significa princípio ativo de qing hao. Como nenhum detalhe sobre os procedimentos de isolamento foi relatado pela literatura chinesa, tornou-se necessário que pesquisadores do Walter Reed Army Research investigassem o processo de extração a partir de partes aéreas da planta com vários solventes apróticos. Foi observado que o éter de petróleo era o solvente mais eficiente para a extração do princípio ativo (KLAYMAN, 1985). O princípio ativo da Artemisia annua ficou conhecido no Ocidente como artemisinina, sendo citada pelo Chemical Abstracts como artemisinin (KLAYMAN, 1985). Em 1979, o Qinghaosu Antimalaria Coordinating Research Group descreveu que 2.099 casos de malária foram tratados com qinghaosu e todos os pacientes, levados à cura clínica. Desses casos, 143 eram causados por parasitas resistentes à cloroquina e 141 eram casos de malária cerebral, para os quais o tratamento gerou bons resultados (KLAYMAN, 1985). Naquele mesmo ano, a

52 estrutura da artemisinina foi determinada por difração de raios- X (LUO; SHEN, 1987). A sua síntese total foi obtida no ano de 1983 (SCHMID; HOFHEINZ, 1983). Da sua fonte natural, Artemisia annua, a artemisinina pode ser obtida por extração (FRÉDÉRICH et al. 2002) das folhas e flores, com rendimento de 0,01-0,8% do peso seco (BALINT, 2001). Os maiores fornecedores são a China e o Vietnã (FRÉDÉRICH, et al. 2002). O nome artemisinina deve-se ao sabor amargo de qing hao e tem origem no nome de Artemísia, esposa e irmã do rei Helicarnosso, que viveu no século IV. Após a morte do marido, Artemísia passou a misturar cinzas de qing hao a tudo aquilo que bebia para torná-lo amargo (RANG; DALE; RITTER, 1997). A artemisinina é uma lactona sesquiterpênica que possui uma ligação endoperóxido (Figura 2). Desde seu isolamento, vários derivados da artemisinina foram sintetizados, obtendose substâncias mais, ou menos ativas do que a artemisinina. Entre os derivados mais comuns, estão o diidroartemisinina (DQHS), arteméter, artemisiteno e artesunato de sódio (Figura 2), todos contendo o grupamento peróxido (BALINT, 2001, LUO; SHEN, 1987). Esses compostos foram denominados de endoperóxidos de primeira geração e são empregados na quimioterapia da malária na Tailândia, Vietnã, Brasil e China, onde a resistência ao parasita é comum (MESHNICK et al 1996). Derivados desprovidos de ligação peróxido, tal como a deoxiartemisinina, embora com estrutura geral bastante similar à artemisinina, são completamente inativos (KLAYMAN, 1985). A estrutura aparentemente complexa da artemisinina não é condição indispensável para a atividade antimalárica. Nos vários sistemas sintetizados e testados, o grupamento fundamental é a ligação peróxido (MESHNICK et al 1996). A artemisinina apresenta baixa biodisponibilidade para formulações de uso oral, reincidivas das infecções, ação limitada na fase eritrocítica e, assim como os demais fármacos, pode vir a apresentar redução de sua atividade antimalárica devido ao desenvolvimento de resistência pelo parasita, tornando-a ineficaz como um antimalárico ideal. Devido a tais limitações, através de um programa sistemático de síntese e busca, foi desenvolvido um grupo de análogos sintéticos com estrutura

53 mais simples e também com alta atividade antimalárica; estes compostos foram denominados de endoperóxidos de segunda geração (MESHNICK et al., 1996). Entre eles, destacam-se: Fenozan 50F, WR 279137, artefleno e derivados do yingzhaosu A (Figura 3). Os dois primeiros compostos possuem potência comparável à da artemisinina, sendo ainda motivo de estudo. Os dois últimos apresentam atividade antimalárica inferior aos derivados da artemisinina e, portanto, seus estudos não foram levados adiante (MESHNICK et al., 1996). Em geral, os endoperóxidos possuem algumas vantagens sobre os demais fármacos antimaláricos. Entre elas pode-se citar (LUO; SHEN, 1987; MESHNICK et al., 1996): 1)pouca ou nenhuma resistência cruzada com outros fármacos antimaláricos; 2)atuação mais rápida do que os demais fármacos antimaláricos; Contudo, há algumas desvantagens. Entre elas, 1)tempo de meia-vida curto; 2)pobre biodisponibilidade para formulações de uso oral; 3)evidências de neurotoxicidade em estudos pré-clínicos. A Tabela 1 mostra os valores de IC 50 do artesunato de sódio e de outros antimaláricos clássicos. Observa-se que o artesunato é bem mais potente do que os demais antimaláricos (HEPPENER; BALLOU, 1998). AGRADECIMENTOS Os autores agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio financeiro, à Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).

54 ESTUDOS SOBRE O MECANISMO DE AÇÃO DA ARTEMISININA E DOS ENDOPERÓXIDOS, A MAIS NOVA CLASSE DE AGENTES ANTIMALÁRICOS - PARTE I ABSTRACT Artemisinin and endoperoxide are a new class of antimalarial drugs. Your mechanism of action, though in debate by literature, is completely different from classical antimalarial which introduce a new hope for the malarial treatment. This review shows some biological and chemistry aspects about the mechanism of action of this compounds. KEY WORDS: Artemisinin; Endoperoxide; Malaria. REFERÊNCIAS BALINT, G. A. Artemisinin and its derivatives. An important new class of antimalarial agents. Pharmacol. Therapeut., v. 90, p. 261-265, 2001. CAMARGO, E. P. Malária, Maleita, Paludismo. Ciência e Cultura, v. 55, n. 1, p. 26-30, 2003. DIAS, L. R. S.; FREITAS, A. C. C. Malária: uma revisão. Biociência/Bio-science:Revista Científica do CCM, v. 9, p. 39-44, 1997. FRÉDÉRICH, M.; et al., New Trendes in Anti-Malarial Agents. Curr. Med. Chem., v. 9, p 1435-1456, 2002. HEPPENER, D. G.; BALLOU, W. R. Malaria in 1998: advances in diagnosis, drugs and vaccine development. Curr. Opin. Infect. Dis., v. 11, p. 519-530, 1998. KAGER, P. A. Malaria control: constraints and opportunities. Trop. Med. Int. Health, v. 7, n. 12, p. 1042-1046, 2002. KLAYMAN, D. L. Qinqhaosu (Artemisinin): an antimalarial drug from China. Science, v. 228, p. 1049-1055, 1985. KONDRACHINE, A. V.; TRIGG, P. I. Global overview of malaria.

55 Indian J. Med. Res., v. 106, p. 39-52, 1997. LUO, X. D.; SHEN, C. C. The Chemistry, Pharmacology, and Clinical Applications of Qinghaosu (Artemisinin) and Its derivatives. Med. Res. Rev., v. 7, p. 29-52, 1987. MESHNICK, S. R. Artemisinin: mechanisms of action, resistance and toxicity. Int. J. Parasitol., v. 32, p. 1655-1660, 2002. MESHNICK, S. R.; et al., W. Second-generation Antimalarial Endoperoxides. Parasitol. Today, v. 12, p.79-82, 1996. MESHNICK, S. R.; TAYLOR, T. E.; KAMCHONWONGPAISAN, S. Artemisinin and the Antimalarial Endoperoxides; from Herbal Remedy to Targeted Chemotherapy. Microb. Rev., v. 60, p. 301-315, 1996. NEVES, P. D. Parasitologia Humana. Rio de Janeiro: Livraria Atheneu, 1998. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE (OMS). Disponível em: <http://www.who.int/inf-fs/en/fact094.html>. Acesso em: 11 abr. 2003. RANG, H. P.; DALE, M. M.; RITTER, J. M. Farmacologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1997. SCHMID, G.; HOFHEINZ, W. Total Synthesis of Qinghaosu. J. Am. Chem. Soc., v. 105, p. 624-625, 1983. VASCONCELOS, A. S. et al., Biting indices, Host-seeking Activity and Natural Infection Rates of Anopheline Species in Boa Vista, Roraima, Brazil from 1996 to 1998. Mem. Inst. Oswaldo Cruz, v. 97, n. 2, p. 151-161, 2002. VERONESI, R. Doenças infecciosas e parasitárias. Rio de Janeiro: Guanabara Koogam, 1991.

56 ANEXOS

57 Figura 1 - Fármacos antimaláricos clássicos. Figura 2 - Artemisinina e derivados.

58 Figura 3 - Endoperóxidos de segunda geração. Tabela 1 -Teste de comparação entre a atividade biológica (IC 50 em namolar) dos antimaláricos clássicos e do artesunato de sódio em cepas de P. falciparum originárias da América do Sul, África, Leste Asiático e Sudoeste Asiático (HEPPENER; BALLOU, 1998).