NOTAS SOBRE O OBJETO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA 1 HUGO NIGRO MAZZILLI



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Transcrição:

NOTAS SOBRE O OBJETO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA 1 HUGO NIGRO MAZZILLI PROFESSOR EMÉRITO DA ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE S. PAULO Resumo: O artigo discute os fins e o objeto da ação civil pública, introduzida no Direito brasileiro a partir da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública). Sustenta, ainda, que o acesso coletivo à jurisdição é garantia fundamental, que não pode ser suprimida pela lei. Palavras-chave: Ação civil pública objeto e fins Lei da Ação Civil Pública LACP acesso coletivo à jurisdição como garantia fundamental Abstract: This article discusses the public-civil-action aims and object, as introduced in the Brazilian Legal System by Law 7.347/85. The collective access to the jurisdiction is a fundamental right that cannot be suppressed by laws. Keywords: Public civil action aims and object Law 7.347/85 Collective access to the jurisdiction fundamental rights Résumé : L article met en discussion les buts et l objet de l action civile publique, introduite au Brésil par la Loi 7.347/85 (Loi de l Action Civile Publique). Il soutient, encore, que l accès collectif à la juridiction est une garantie fondamentale, que la loi ne peut pas supprimer. Mots-clés : Action civile publique buts et objet Loi de l Action Civile Publique l accès collectif à la juridiction comme une garantie fondamentale. Sumário: 1. Introdução. 2. O parágrafo único do art. 1º da LACP. 3. A tutela coletiva como direito fundamental. 4. Conclusão. 4. Referências bibliográficas. 1. Disponível em www.mazzilli.com.br/pages/artigos/notasobjetoacp.pdf. Publicado nos Anais do 17º Congresso Brasileiro de Direito Ambiental, 7º Congresso de Direito Ambiental dos Países de Língua Portuguesa e Espanhola, e 7º Congresso de Estudantes de Direito ambiental, realizados em São Paulo (25 a 29 de agosto de 2012). 1

1. Introdução O que pode ser pedido numa ação civil pública, ou seja, qual o bem jurídico que pode ser buscado no processo coletivo? Inicialmente, a Lei n. 7.347/1985 a Lei da Ação Civil Pública (LACP) objetivava a defesa do meio ambiente, do consumidor e do chamado patrimônio cultural, que são os bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Desde o projeto legislativo de que se originou a LACP (PL n. 4.984/85, da Câmara dos Deputados), buscara-se proteger mais uma hipótese, esta última de caráter residual, isto é, a tutela de qualquer outro interesse difuso (art. 1º, IV). Quando da sanção da LACP, porém, esse inciso foi vetado pelo Presidente da República sob o fundamento de que a ampliação traria insegurança jurídica, em detrimento do bem comum, que decorre da amplíssima e imprecisa abrangência da expressão qualquer outro interesse difuso ; assim, sugeriu o veto a necessidade de que a questão dos interesses difusos, de inegável relevância social, mereça, ainda, maior reflexão e análise. Trata-se de instituto cujos pressupostos conceituais derivam de um processo de elaboração doutrinária, a recomendar, com a publicação desta Lei, discussão abrangente em todas as esferas de nossa vida social. Na verdade, mais sinceras tivessem sido as razões do veto, teriam aludido não só às pressões de grupos interessados até mesmo no veto total, como ainda e principalmente ao temor que repentinamente sentiu o chefe do Executivo, posto autor do próprio projeto, ao acordar para o fato de que uma tutela coletiva assim ampla poderia acabar voltando-se contra atos de governo Aquilo que o Presidente da República negou à sociedade em 1985, foi, porém, dado pelo constituinte de 1988. Com a abertura democrática e novos ventos na República, apenas três anos depois do veto, a própria Constituição passou a permitir ao Ministério Público o uso da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, sem conferir-lhe exclusividade nessa defesa (art. 129, III, e 1º). Dois anos mais tarde, com o advento do Código de Defesa do Consumidor Lei n. 8.078/1990, deu-se necessariamente cumprimento ao mandamento constitucional. Foi, então, consequência lógica que se reintroduzisse na LACP a norma de extensão antes vetada, para permitir a defesa, por meio da ação civil pública, de qualquer outro interesse difuso ou coletivo (art. 1º, IV, da LACP). Esse dispositivo que tecnicamente é o que se chama de norma residual ou de encerramento, destina-se a alcançar hipóteses rebeldes a uma previsão específica do legislador. Por óbvio, uma norma dessa natureza só poderia fechar o rol de interesses que podem ser objeto da ação civil pública. Entretanto, por absoluta falta de técnica, outras leis supervenientes acrescentaram novas hipóteses de cabimento da ação civil públi- 2

ca, inserindo alguns incisos depois da norma de encerramento Ficou risível, como se disséssemos que nesta casa podem entrar todas as pessoas, e, além delas, também João e Maria Assim, além de caber ação civil pública para a defesa de qualquer outro interesse difuso ou coletivo, passou também a caber o uso da mesma ação para combater infração à ordem econômica e à ordem urbanística (Lei n. 8.884/1994, art. 88; Lei n. 12.529/2011, art. 117; Lei n. 10.257/2001, art. 53; Med. Prov. n. 2.180-35/2001, art. 6º) A par disso, outras leis avulsas se remeteram à tutela coletiva da LACP, como o Código de Defesa do Consumidor CDC (Lei n. 8.078/90), o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990), a lei de proteção à pessoa com deficiência (Lei n. 7.853/1989), a lei de defesa dos investidores no mercado de valores mobiliários (Lei n. 7.913/1989), o Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001), o Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003). no País. Podemos, assim, dizer que hoje há todo um sistema de tutela coletiva Depois de alguns anos de vigência da LACP e do CDC, logo se percebeu que as ações civis públicas e coletivas às vezes se voltavam contra atos de governo (como em matéria ambiental ou de improbidade administrativa), e consequentemente o governante começou, sempre por meio de medidas provisórias, a procurar restringir o objeto ou os efeitos da tutela coletiva. Dessa índole foram a Med. Prov. n. 1.570/97 (que procurou restringir o alcance da coisa julgada coletiva, tentando limitá-lo à competência territorial do juiz prolator da sentença) e as de n. 1.984/20-2000, 2.102/26-2000 ou n. 2.180-36/2001 (que procuraram limitar o objeto da ação civil pública), ou até mesmo a Med. Prov. n. 2.088-35/2000 (que, de forma teratológica, instituiu reconvenção nas ações civis públicas de improbidade administrativa, para que a autoridade ré pudesse reconvir contra o membro do Ministério Público que a acionasse, embora este, pessoalmente, sequer fosse parte na ação principal ). 2 Assim, tanto essa sucessiva imposição de restrições ao efetivo uso e alcance das ações civis públicas, como esse processo intimidativo contra os agentes do Ministério Público (que são, na prática, aqueles que propõem a larga maioria das ações coletivas no País) tanto uma coisa como outra visavam claramente a esvaziar o objeto da tutela coletiva, ou, pelo menos, diminuir sensivelmente os embaraços que os governantes estavam a encontrar, mesmo quando de seus abusos em pacotes econômicos ou em seus desvios da legalidade que deveria nortear os atos da Administração o que não tem sido nada raro, infelizmente, em nosso País. 2. Neste último caso, o escândalo foi tal, que esse absurdo foi revogado pelo próprio governo menos de um mês depois, pela Med. Prov. n. 2.088-36/2001... 3

2. O parágrafo único do art. 1º da LACP A questão de que queremos nos ocupar neste momento diz mais especificamente respeito ao famoso parágrafo único do art. 1º da LACP, também introduzido por medidas provisórias, sucessivamente reeditadas, e que diz o seguinte: Não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados. (Med. Prov. n. 1.984/20-2000 e s.; Med. Prov. 2.102/26-2000 e s.; Med. Prov. n. 2.180-35/2001, art. 6º). Como se trata de medidas provisórias anteriores à Emenda Constitucional n. 32/2001, não se submeteram à perda de eficácia mesmo não convertidas em lei no prazo devido e, muito provavelmente, jamais serão apreciadas pelo Congresso Nacional Ora, causa espécie que esse parágrafo único ilegitimamente editado sem os pressupostos constitucionais de urgência e relevância, e que nunca foi nem será submetido efetivamente ao crivo do Poder Legislativo causa espécie que os tribunais ainda não se tenham detido mais intensamente sobre ele. Vamos dizer, com outras palavras, o que quer dizer esse parágrafo único. Depois de ter o caput do artigo assegurado que caberia ação civil pública não só para diversas hipóteses expressas (meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, ordem econômica e ordem urbanística), mas também para a defesa residual de quaisquer outros interesses difusos e coletivos, veio o governo a editar medida provisória e dizer: tudo bem, cabe ação civil pública para tudo isso, menos se o objeto da ação envolver tributos, contribuições previdenciárias, FGTS ou outros fundos etc. (Med. Prov. n. 1.984-19/2000). Ora, cabe lembrar que, às vésperas de editar essa medida provisória, o governo acabava de assistir, contrariado, à formação de posicionamento majoritário do STF que dava correção monetária de depósitos do FGTS aos poucos trabalhadores do Rio Grande do Sul que se dispusera a ajuizar ação individual a respeito; assim, o governo não teve pejo em proclamar, pelo caminho fácil da medida provisória, que não admitiria ação civil pública para veicular pretensões que envolvessem o FGTS e aproveitou também o papel ao proibir seu uso para discutir tributos e outras matérias sobre as quais o governo não tinha interesse algum que houvesse prestação jurisdicional coletiva. Não fosse a Emenda Constitucional n. 32/2001 ter imposto algum limite ao abuso na edição de medidas provisórias, com certeza estaríamos vendo até hoje sucessivas medidas provisórias alargando, de acordo com as necessidades do momento, o rol de vedações para o uso da ação civil pública em matérias desconvenientes ao governo Teria sido mais honesto que o governo dissesse: não cabe ação civil pública contra mim Sob o aspecto técnico, vejamos qual foi o problema trazido pelo malfadado parágrafo único do art. 1º da LACP. 4

Como está redigido, é o mesmo que ele dissesse: não se admitirá tutela coletiva em matéria que envolva tributos, contribuições previdenciárias, FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados. Nesses casos, depreende-se da norma, quem quiser recorrer ao Poder Judiciário, que o faça por meio de ações individuais, pois, diz a medida provisória, aí está proibida a tutela coletiva. 3. A tutela coletiva como direito fundamental Poderia uma lei infraconstitucional proibir a tutela coletiva nos casos que ela eleja como desconvenientes ao governo? Esse é fulcro da questão. O art. 5º da Constituição está situado expressamente entre os direitos e deveres individuais e coletivos. Suponhamos uma lei que dissesse assim: art. 1º, cabe ação individual de perdas e danos, nas seguintes hipóteses seguindo-se o rol correspondente; art. 2º, fica proibido o uso de ação individual nas hipóteses que envolvam tributos O que achariam os tribunais de uma lei assim? Acaso algum tribunal do País deixaria de reconhecer que essa lei está negando acesso à jurisdição? Acaso um único tribunal do País deixaria de proclamar sua inconstitucionalidade? Afinal, é garantido o acesso individual à jurisdição, que não pode ser impedido pela lei infraconstitucional. Todos sabem disso: a lei não pode negar o acesso à jurisdição: esse acesso é direito e é garantia. Mas onde está esse acesso garantido? No art. 5º, XXXV, da Constituição. Mas esse é o mesmo artigo que garante acesso tanto individual como coletivo à jurisdição, pois hoje o acesso à jurisdição não mais é apenas uma garantia individual como o era nas Constituições anteriores. Hoje é garantia tanto individual como coletiva é o que assegura a Constituição, em seu Título II Dos Direitos e Garantias Fundamentais Capítulo I Dos direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º). Engana-se, pois, quem pense que o art. 5º só cuida de direitos individuais: nele, é certo, há inúmeras normas claramente destinadas à proteção de direitos individuais, como é o caso do direito à privacidade (inc. X) ou à inviolabilidade de domicílio (inc. XII); contudo, nele coexistem inúmeras normas expressamente destinadas à tutela coletiva, como o direito de reunião e associação (incs. XVI a XXI) ou o mandado de segurança coletivo (inc. LXX); e nele ainda há normas bifrontes, que tanto se prestam à defesa de direitos individuais como coletivos, como aquela que garante o acesso à jurisdição, o qual tanto pode ser individual como coletivo (inc. XXXV). E, para reforçar essa conclusão, a Constituição ainda faz expressa menção à possibilidade de as associações civis (art. 5º, inc. XXI), os sindicatos (art. 8º, III), o Ministério Público (art. 129, III) e as comunidades indígenas (art. 232) defenderem direitos e interesses coletivos de grupos, classes ou categorias de pessoas! São direitos fundamentais, que não podem ser suprimidos nem mesmo por emenda à Constituição! 5

Assim, como é que ousa uma lei ordinária, menos até do que isso, uma medida provisória, que sequer foi nem será efetivamente votada pelo Congresso, como ousa ela vedar uma garantia coletiva de caráter constitucional, que é o acesso coletivo à jurisdição, sob a pífia desculpa de que não o está vedando, pois que o processo individual continua garantido?! Ora, tanto o acesso individual como o acesso coletivo à jurisdição são direito e garantia constitucionais. Por isso, tanto é inconstitucional vedar um como vedar o outro. A única diferença entre ambos é que a tutela coletiva é uma novidade no nosso Direito, e uma parte dos operadores do Direito ainda não está familiarizada com ela. O art. 153 da Carta de 1969, o art. 150 da Constituição de 1967, o art. 141 da Constituição de 1946, o art. 122 da Carta de 1937, o art. 113 da Constituição de 1934, o art. 72 da Constituição de 1891 e o art. 179 da Carta de 1824 cuidavam da garantia de acesso individual à jurisdição essa era a concepção da época. Contudo, depois da revolução provocada pelo advento da tutela coletiva de direitos revolução esta iniciada com os trabalhos de Mauro Cappelletti na Europa, na década de 1970, o acesso coletivo à jurisdição passou a merecer tratamento também entre nós, especialmente a partir da década de 80 (LACP). Assim, quando veio a Constituição de 1988, ela já recebeu as luzes do processo coletivo, ao qual fez várias referências, tanto na ação das associações (art. 5º, XXI), como dos sindicatos (art. 8º, III), do Ministério Público (art. 129, III) e das comunidades indígenas (art. 232). Foi por isso que o art. 5º da Constituição de 1988 não mais se insere entre as normas referentes à proteção apenas de direitos individuais; agora, a Constituição não mais cuidava apenas de direitos e garantias individuais, e sim de direitos e deveres individuais e coletivos. Assim, quando o art. 5º, XXXV, inserido no Título II Dos Direitos e Garantias Fundamentais Capítulo I Dos direitos e deveres individuais e coletivos quando esse dispositivo constitucional diz que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, ele não está falando em lesão ou ameaça a direito individual, e sim está falando em lesão ou ameaça a direito, alcançando, pois, tanto a proteção a direito individual como coletivo. A norma está, portanto, a criar um limite instransponível para o legislador infraconstitucional não só em matéria de acesso individual como de acesso coletivo à jurisdição: está garantido o direito de acesso à jurisdição tanto o acesso individual como o acesso coletivo. A verdade, porém, é que muitos operadores do Direito, aí incluídos os tribunais, ainda não se deram conta, na plenitude, de que tanto o acesso individual como o acesso coletivo agora são garantias fundamentais que não podem ser vedadas pela lei. Se eu pudesse proibir o acesso coletivo à jurisdição, nos casos que eu, governante, não quisesse, então eu também poderia proibir o acesso individual, pois a norma de garantia é a mesma. Se eu não posso proibir o acesso individual à jurisdição, também não posso proibir o acesso coletivo. E o inverso também é verdadeiro. E mais: a proibição ao acesso coletivo também é uma verdadeira denegação de acesso à Justiça, até mesmo de acesso individual. Senão vejamos. Milhares de 6

lesões individuais ficariam sem a mínima proteção judicial se exigíssemos que sua defesa ficasse limitada ao processo individual. Os custos do processo individual, a certeza do advento de decisões contraditórias mesmo em situações individuais homogêneas, a pequena expressão do dano individual posto enorme o dano coletivo tudo isso deixaria milhares, em muitos casos milhões de lesados sem efetivo acesso à Justiça como, aliás, tem ocorrido a cotio. Basta lembrar o que ocorreu tantas vezes e continua ocorrendo em nosso País, como no caso das lesões causadas pelo Plano Collor e em tantos outros pacotes econômicos que lesaram milhares e milhões de cidadãos, sem qualquer reação à altura dos tribunais, principalmente dos mais altos deles. A lei pode estabelecer requisitos, como de capacidade, legitimação, interesse processual para comparecer em juízo. Sim. Mas não pode pura e simplesmente proibir o acesso, como o faz o parágrafo único do art. 1º, da LACP. É notório que os tribunais têm tardado em reconhecer o direito ao acesso coletivo à jurisdição. A título de exemplo, lembremos que o Tribunal Superior do Trabalho por muitos anos negou aos sindicatos o acesso coletivo como substitutos processuais (Súm. 310, depois revogada); o Supremo Tribunal Federal não admitiu ação coletiva contra o Plano Collor, e lhe custou admitir pudesse o Ministério Público defender coletivamente os consumidores; o Superior Tribunal de Justiça hesitou muito, antes de sumular o entendimento de que o Ministério Público pode ajuizar ação civil pública para defender o patrimônio público apesar de isso estar escrito com todas as letras na Constituição; os tribunais cordatamente até hoje não têm aceitado ações coletivas em matérias que envolvam tributos Ora, que valor tem uma lei infraconstitucional que proíba que o Ministério Público, os sindicatos, as associações, os índios e suas comunidades tenham acesso coletivo à jurisdição, quando é a própria Constituição que lhes assegura esse acesso?! Assim, todos eles, e mais quaisquer outros legitimados à tutela coletiva, como a Defensoria Pública não podem ser impedidos de ter acesso à Justiça naqueles casos que não interessem aos governantes; não podem ser impedidos de terem acesso coletivo à Justiça, nem mesmo em matérias que envolvam tributos, contribuições previdenciárias ou fundos, nos quais os lesados possam ou não ser identificados individualmente. O governante faz leis desse jaez, e conta com o beneplácito dos mais altos tribunais, de composição política, para impedir o acesso coletivo à jurisdição, e, assim, também inviabilizar o acesso individual, pois que, na maioria das vezes, este sequer é procurado, preferindo os lesados abandonar a defesa de seus direitos a seguir a via crucis de um processo individual oneroso, aleatório e, frequentemente, lento de não se lhe ver o fim em vida. Que justiça é essa? Pois foi para permitir uma prestação jurisdicional eficaz que surgiu o processo coletivo, único caminho efetivamente viável para solucionar conflitos de massa. Não basta que a Constituição assegure acesso à Justiça: para que essa garantia seja real, é preciso que o acesso seja eficaz. E essa é a função do processo coletivo: centralizar numa 7

única ação a defesa de todo um grupo, uma classe ou categoria de lesados, permitindo que o julgamento de procedência beneficie a todos. É muito importante que nós nos insurjamos contra o parágrafo único do art. 1º da LACP, pois a tutela coletiva é uma moderna conquista de cidadania, da mais alta expressão. Ela é hoje o único meio eficaz de acesso à Justiça, pois o acesso individual é simplesmente inexequível em questões de larga abrangência social. Imaginem um tributo cobrado inconstitucionalmente anos a fio uma correção monetária indevida, calculada em prejuízo dos trabalhadores nos milhões de contas do FGTS, um pedágio ilegal, um empréstimo compulsório jamais devolvido, reajustes ilegais de pensões previdenciárias Reparações individuais seriam letra morta. A grande massa da população ficará sem acesso à jurisdição se só lhe for viabilizada a tutela individual. Pois é exatamente com isso que contam os governantes, nos casos em que não lhes convenha a tutela coletiva Et pour cause Tomemos um exemplo concreto. Na década de 90, em São Paulo, a Prefeitura Municipal cobrou, anos a fio, um imposto progressivo na transmissão de bens imóveis (ITBI). Nesse caso específico, o Plenário do Supremo Tribunal Federal já tinha decidido, há anos, ser inconstitucional a cobrança progressiva como vinha fazendo a Municipalidade. Pois bem, mesmo depois disso, e posto tivesse o plenário da maior corte constitucional rejeitado a cobrança, a Prefeitura paulistana continuou, por quase uma década, a cobrar o acréscimo inconstitucional. Atitude como essa constitui violação da ordem jurídica e quebra da moralidade administrativa definida em lei, ou seja: nesse caso, o administrador está violando os deveres de lealdade e de honestidade exigidos na ordem legal, porque, na prática, vai conseguir com que muitos paguem o que não devem e não repitam o indébito, porque desistirão de recorrer a uma Justiça excessivamente formalista e morosa (o que é outra imoralidade, ainda maior), e arcarão com um prejuízo indevido e injusto; vai ainda conseguir que outros, ainda que mais abonados e preferindo demandar, tenham de percorrer um processo longo e tortuoso, para talvez obter uma vitória que lhes custará muitos anos e recursos desnecessários. Muito bem, enfim, a lei inconstitucional foi revogada. Mas o que se recolheu indevidamente, recolhido ficou. E ponto final. Satisfeitos, ministros e administradores responderiam: mas foi garantido o acesso individual à jurisdição. Retrucamos: onde estão essas ações individuais? 4. Conclusão Como já temos tido oportunidade de lembrar, 3 sob o aspecto processual, o que caracteriza os interesses transindividuais, ou de grupo, não é apenas o fato de serem compartilhados por diversos titulares individuais reunidos pela mesma relação jurídi- 3. V. nosso A defesa dos interesses difusos em juízo meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses, p. 50-1, 25ª ed., Saraiva, 2012. 8

ca ou fática. Mais do que isso, é a circunstância de que a ordem jurídica reconhece a necessidade de que o acesso individual dos lesados à Justiça seja substituído por um acesso coletivo, de modo que a solução obtida no processo coletivo não apenas deve ser apta a evitar decisões contraditórias como, ainda, deve conduzir a uma solução mais eficiente da lide, porque o processo coletivo é exercido em proveito de todo o grupo lesado. 4 É por isso que, na tutela coletiva, preponderam os princípios de economia processual (enquanto na tutela coletiva se discute numa só ação o direito de todo o grupo, classe ou categoria de pessoas, já na defesa individual, as ações judiciais dos lesados ficam pulverizadas, o que normalmente enseja julgamentos contraditórios, com grande desprestígio para a administração da Justiça, pois indivíduos em idêntica situação fática e jurídica acabam recebendo soluções díspares; essas incoerências, aliadas às despesas do processo, levam muitos lesados a abandonar a defesa de seu direito e desistir do acesso individual à jurisdição). 5 Assim, quando o governante edita uma medida provisória, cujo único fim é impedir o acesso coletivo à jurisdição nas questões que não interessam ao governo, está claro que está inviabilizando o próprio acesso à Justiça, pois que o processo individual não se presta à tutela eficiente de direitos transindividuais, compartilhados por grupo, classe ou categoria de lesados. É necessário reagir contra esse estado de coisas, que tão seriamente nega o exercício de direitos fundamentais! 5. Referências bibliográficas MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses, p. 50-1, 25ª ed., Saraiva, 2012. VILLONE, Massimo. La collocazione istituzionale dell interesse diffuso, em La tutela degli interessi diffusi nel diritto comparato, Milão, Giuffrè, 1976. WATANABE, Kazuo. Juizado especial de pequenas causas, p. 2, Revista dos Tribunais, 1985. 4. Massimo Villone, La collocazione istituzionale dell interesse diffuso, em La tutela degli interessi diffusi nel diritto comparato, Milão, Giuffrè, 1976. 5. Trata-se do fenômeno da litigiosidade contida, de que falava Kazuo Watanabe, em Juizado especial de pequenas causas, p. 2, Revista dos Tribunais, 1985. 9