Corpo e pensamento: impasses e condições para (re)pensar a clínica contemporânea

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Corpo e pensamento: impasses e condições para (re)pensar a clínica contemporânea Tatiana Fagundes Audino Mestre em Teoria Psicanalítica pelo Programa de Pós Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, doutoranda em Teoria Psicanalítica PPGTP/UFRJ e membro do NEPECC/UFRJ. Bolsista CNPQ. O corpo tem tomado a cena contemporânea, tanto na mídia como nos consultórios psicanalíticos. O crescente número de publicações em torno desta temática marca na teoria o que tem sido mais evidente ao longo dos últimos anos na clínica psicanalítica. Corpo e clínica estão ligados desde a origem. Quando Freud cria a psicanálise está justamente investigando as origem de um sintoma manifesto no corpo e sem causa orgânica, a conversão histérica; e, mais tarde ao descrever a constituição do psiquismo apresenta um ego que é antes de tudo, corporal. Ou seja, pensar em torno das condições e impasses impostos pelas novas formas de sofrimento na atualidade nos convoca a pensar na temática do corpo e seus desdobramentos. Desse modo, a fim de sustentar a hipótese de um manejo voltado para a clínica do corpo intensivo e do afeto, consideramos fundamental retomar o que impulsionou Sigmund Freud a criar um método clínico que propõe a cura pela palavra, bem como retomar alguns dos principais pressupostos que serviram de alicerce teórico para a clínica construída por Sándor Ferenczi. A ideia é, a partir dessa interlocução, investir em um olhar e uma escuta que possa trazer para a cena analítica elementos que não são passíveis de elaboração pela via da palavra e que encontram o caminho do corpo como via para se manifestar. Enfim, um manejo clínico que possibilite uma abertura a novos encontros com o corpo e com afeto na clínica psicanalítica. Considerações sobre o corpo em psicanálise O dispositivo clínico da psicanálise vem sendo repensado constantemente. A partir de inúmeras mudanças socioculturais, muitos autores tanto do campo da psicanálise como antropólogos, sociólogos e filósofos estão reconhecendo que na atualidade há uma especificidade na clínica decorrentes das novas formas de sofrimento. Com efeito, o lugar ocupado pelo corpo no capitalismo se aproxima ao de um objeto de consumo. Costa (2004) sustenta que a constituição da subjetividade tem sido fortemente influenciada por uma intensificação do corpo físico pela mídia, seja nos comerciais de cosméticos, fármacos e

produtos fitness, seja pelo ideal de performance atrelado ao sucesso social. Nesse sentido, a corrida pela posse do corpo midiático, o corpo-espetáculo, desviou a atenção do sujeito da vida sentimental para a vida física (...) Cuidar de si deixou de significar, prioritariamente, preservar os costumes e ideais morais burgueses para significar cuidar do corpo físico (p.166). O imaginário da perfeição leva o sujeito contemporâneo a buscar próteses e o corpo passa a ser a referência central de uma imagem ideal de Eu. Birman (2014) realça que o corpo é o registro antropológico mais eminente no qual se enuncia na atualidade o mal-estar (p.69). As queixas prevalecem na dimensão corporal, enfatizando o fracasso do corpo em dar conta da demanda que lhe é imposta. Para o sujeito contemporâneo o corpo adquire valor de um bem supremo, elevando ao ideal supremo, a saúde. O corpo em Freud Freud inaugura a psicanálise, no final do século XIX, com a clínica da histeria. Ao buscar um afastamento do saber médico para a etiologia das neuroses, o pai da psicanálise começa a traçar um contorno singular para o corpo, saindo do estatuto científico de um corpo anatômico e rejeitando a dicotomia corpo x psiquismo. Os sintomas histéricos se apresentavam no corpo, entretanto sua etiologia encontrou uma causa através de um conflito psíquico de ordem sexual. Isto é, com a histeria, o corpo passa a ocupar um registro que perpassa tanto o campo da linguagem e da representação, quanto da sexualidade com o conceito de corpo erógeno. Na histeria, o sintoma corporal substituiria o que há de impossível de ser articulado no discurso (David-Ménard, 2000). A paralisia, a cegueira ou a dor encontradas na histérica não apresentavam relação com uma causa orgânica conhecida e portanto não estava localizada no corpo anatômico. Na conversão histérica, o afeto em lugar de permanecer no campo do psíquico desloca-se para a inervação somática, sendo nesse sentido que Freud afirma tratar-se de uma lesão na ideia de braço. A histeria coloca em xeque o saber médico da época, pois diferentemente das doenças orgânicas, não respondia a nenhum tipo de tratamento oferecido pela medicina. Como um caleidoscópio, os sintomas histéricos desconcertavam os médicos que se orientavam pelo discurso da anatomoclínica. (Birman, 2009, p.50). Dessa forma multifacetada e volátil, a sintomatologia histérica se mantinha na ordem de um enigma. Freud se detém nas investigações a cerca das causas desse sintoma conversivo que, manifestos no corpo, não indicava causa fisiológica. Assim, a partir de uma suspeita de que a

história de vida do sujeito poderia indicar possíveis relações com as causas do sintoma, cria um dispositivo que utiliza a fala como técnica que lhe permite acesso às lembranças inconscientes. Com efeito, Freud propõe como terapêutica para a histeria uma técnica que implica uma rememoração, o que de certa forma leva o paciente à responsabilização tanto por rememorar como pelo acontecido. Em 1905, no texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud postula um corpo auto-erótico formado por zonas erógenas dispersas que serão marcadas a partir do cuidado materno. O autoerotismo caracteriza-se então pela satisfação parcial da pulsão no próprio corpo Ou seja, Freud inaugura o corpo como sendo um objeto sexual da pulsão que o toma como instrumento de prazer e garantia de satisfação pulsional. Contudo, precisamos sublinhar que se trata ainda de um corpo fragmentado, sem unidade. É somente a partir dos estudos sobre o narcisismo que o corpo começa a comportar certa unidade. Em 1914, quando Freud começa a delinear a segunda tópica, o investimento no próprio corpo perde a caráter de perversão. O amor de si passa a ser compreendido como um movimento necessário para a constituição subjetiva. Nesse momento, ele descreve o narcisismo como uma etapa intermediária entre o autoerotismo e a escolha de objeto. Até os textos metapsicológicos, Freud circunscreve o corpo dentro do campo representacional. Entretanto, uma nova leitura sobre o corpo pode ser feita a partir da virada de 1920 que implicou em uma redefinição da tópica psíquica e da teoria pulsional. Com a introdução do conceito de pulsão de morte, da compulsão à repetição e de masoquismo, a concepção de corpo se expande para além do autoerotismo e da unificação narcísica, abarcando também o que escapa à representação. Nesse registro, o corpo passa a ser alvo também da pulsão de morte, a qual insere a dimensão do excesso no psiquismo. Esse excesso, na insistência em se fazer representar, só consegue se apresentar como trauma, que acaba por transbordar no corpo. Em 1923, Freud evidencia a ligação do eu ao próprio corpo. Em uma nota de rodapé, acrescentada em 1927, afirma que o ego em última análise deriva das sensações corporais, principalmente das que se originam da superfície do corpo. Ele pode ser assim encarado como uma projeção mental da superfície do corpo além de representar as superfícies do aparelho mental (p.39). Ainda neste texto, o autor privilegia o exemplo da angústia hipocondríaca para sinalizar a possibilidade de a dor conduzir, através dos órgãos doloridos, ao sentimento de propriedade do corpo, ressaltando que, nestes casos, a libido se localizaria ao lado do eu. Assoun (1995) destaca que, ao dizer que o eu é corporal, Freud não estaria afirmando uma estruturação de eu e corpo segundo a lógica das superfícies, mas sim sustentando que a

emergência da subjetividade se faz segundo esta lógica corporal da projeção (p.188). Com efeito, em 1923, o eu é mais uma subjetivação da superfície corporal do que uma aparelhagem mental do corpo. Vimos então que além de postular a existência de um eu corporal a priori, Freud ressalta a importância da superfície do corpo nos processos de subjetivação. Ou seja, corpo e eu aparecem necessariamente atrelados. Uma outra via que nos permite aprofundar a noção de corpo na obra freudiana pode ser pensada através do excesso pulsional. Em um ensaio de 1895 denominado Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia um síndrome específica denominada neurose de angústia, Freud nos apresenta como argumento central o pressuposto de que o excesso de energia ou de afeto que não encontra um caminho de elaboração possível através do psiquismo, dirige-se para o corpo. Devido a essa inoperância da elaboração psíquica ocorre um acúmulo da excitação somática, a qual é desviada para outros canais em que possa haver uma possibilidade maior de descarga. Sobre este aspecto, voltaremos mais a frente, na articulação com a clínica contemporânea O corpo em Ferenczi Buscar uma concepção de corpo na obra de Sándor Ferenczi constitui-se em uma tarefa extremamente densa, na medida em que o autor não nos apresenta um estatuto único e fechado. Para Ferenczi, os corpos são muitos. Assim, diante deste arcabouço teórico tão vasto, privilegiaremos alguns momentos de sua obra que apresentam conceitos e articulações fundamentais para os objetivos deste trabalho, de forma a possibilitar uma possível abertura para as considerações da clínica contemporânea. O conceito de introjeção (1912/2011) foi descrito por Ferenczi como a extensão ao mundo externo do interesse, autoerótico na origem, pela introdução dos objetos externos na esfera do ego (p. 209). O autor afirma que considera todo amor objetal (ou toda transferência) como uma extensão do ego ou introjeção (p.209). Esse mecanismo, sustentado em um eixo de tensão entre prazer e desprazer foi fundamental para pensar a constituição do sujeito. Em suma, a introjeção consiste em um processo que envolve os investimentos pulsionais realizados pelo bebê desde seus primeiros contatos com o mundo que o cerca. Contudo, é fundamental demarcar que nesse processo originário, não se trata da introjeção de objetos puramente, mas de movimentos de captura, de percepção das sensações de prazer/desprazer que possibilitam um efeito de alargamento da esfera do eu. E, é nesse

movimento entre os processos de projeção e introjeção que se dá o desenvolvimento do eu. Isto é, com a noção de introjeção, Ferenczi contempla um psiquismo que inclui corpo, afetos, sentido e intensidades. Em seu artigo Reflexões psicanalíticas sobre os tiques (1921/2011), Ferenczi sustenta que o tique seria uma forma de expressão ou de descarga e aproxima-o de uma catatonia (um corpo que não se mexe), sustentando que seriam os extremos de uma mesma coisa. Frequentemente, o paciente com tique não se dá conta de que possui o tique, tendo a necessidade de ter a visão da própria imagem produzindo a expressão facial, como se o seu corpo, através das sensações, não fosse capaz de lhe fornecer ferramentas para perceber os movimentos produzidos pelo tique. Ferenczi ao longo da construção de sua obra sempre apresentou um interesse muito grande na questão do trauma, sustentando que para haver o trauma seria necessário um fator exógeno que intervisse impondo mudanças no psiquismo. Assim, na ausência de uma inscrição psíquica, restaria uma inscrição sensorial, no corpo. Ou seja, para ele, quando o paciente não é capaz de transmitir a representação de seu trauma através da palavra, deve o analista ser capaz de escutar os movimentos e expressões do corpo. Reflexões sobre corpo e pensamento na clínica contemporânea Atualmente, há uma grande demanda em chamar atenção para uma determinada performance que nos é imposta a partir de determinados modelos que a mídia, seja ela qual for, dita como ideal. A cultura da imagem, o culto exagerado ao corpo, a busca desenfreada pelo sucesso profissional mostram que os ideais da atualidade concentram-se na esfera individual e não coletiva. Neste contexto, o sofrimento dos sujeitos que buscam o psicólogo ou psicanalista, se apresenta, na maioria das vezes, com essa sensação de insuficiência diante de uma cultura, cujos ideais estão pautados pelo excesso de estimulação e pela presença marcante do hedonismo. Birman (2006) afirma que, como uma verdadeira prima Donna da sociedade pósmoderna, as novas formas de mal-estar se apresentam então com todo o barulho a que têm direito (p. 174). Acrescenta ainda que o mal-estar atual se evidencia nos registros do corpo, da ação e da intensidade. Apesar destes três registros poderem aparecer de forma combinada em uma mesma individualidade, também pode ocorrer de um ter prevalência sobre os outros. Para Birman, quando um excesso não encontra o caminho da descarga, o efeito vai se dar através do corpo, manifestando-se por situações de estresse, pânico e outras perturbações

psicossomáticas. Importante frisar que o excesso é entendido aqui como tudo aquilo que excede a capacidade de metabolização do sujeito, extrapolando a sua capacidade psíquica. O que autor está sustentando com tal afirmação é que tal como nas neuroses traumáticas, hoje, o sujeito contemporâneo vive em tempos de catástrofes permanentes o que o impede de se antecipar aos acontecimentos. Na contemporaneidade há uma prevalência de experiências da ordem do traumático. No que tange ao registro da ação, as perturbações se apresentam como outra via pela qual o mal-estar pode se expressar, pois se o corpo não serve como via de escoamento da tensão, a via possível passa a ser o ato. Podemos entender que, primeiramente o sujeito é invadido pelo excesso (pulsional), ficando impelido à ação, por esta se apresentar como única possibilidade de descarga. Como exemplo desta modalidade, podemos pensar na compulsão de um modo geral. Trata-se de uma forma de agir pela repetição do mesmo, a qual vai assumir um caráter de imperativo, pois o alvo da ação não chega a ser alcançado, o que faz com que seja permanentemente repetido. A passagem ao ato, caracterizada pela ausência de simbolização, consiste em outra forma de expressão para o excesso. Na medida em que um dos modos de captura e domínio da força pulsional é a simbolização, ou seja, ter cadeias simbólicas que sejam capazes de dar sentido a esse pulsional; na impossibilidade de o sujeito conseguir simbolizar, esse excesso fica contido no psiquismo, sendo necessário dar um destino através da descarga via ato ou via corpo. Dessa forma, diante da carência de recursos simbólicos para lidar com esse excesso pulsional, pode a experiência transformar-se em uma experiência traumática. A terceira forma de expressão pela qual o mal-estar contemporâneo se expressa, tratase do registro do sentimento ou intensidade. Aqui, o excesso vai se fazer presente como a irrupção de algo que escapa à regulação do psiquismo. Neste registro é possível reconhecer o excesso transbordando no psiquismo como humor e sofrimento, antes de se deslocar propriamente para os registros do corpo e da ação; ou seja, o excesso é antes de tudo, sentimento. O excesso nas subjetividades contemporâneas se destaca por sua característica incontrolável. E, nesse sentido, Birman sublinha a exclusão do registro do pensamento como local de incidência do sofrimento na atualidade. Cabe então, considerar que o eu não consegue antecipar os acontecimentos, no sentido de poder circunscrever o impacto das intensidades. Com isso, o sujeito se depara com algo que o ultrapassa, sendo um das consequências-limites disso, a paralisia psíquica. Diante da precariedade das formações simbólicas constituintes do aparato psíquico há uma forte diminuição da capacidade de

realizar o trabalho de ligação das intensidades pulsionais com o campo representacional. Na tentativa de circunscrever a experiência traumática, o psiquismo lança mão da compulsão à repetição a fim de obter algum controle dessa irrupção inesperada. A repetição irá recriar o trauma, de maneira ativa, para que o psiquismo possa antecipar e fazer o que não foi possível quando esse trauma se produziu (Freud, 1920/2006). Nesta perspectiva, muitos psicanalistas apontam para a dificuldade de analisar estes pacientes que não apresentam sonhos, não associam; ou seja, diante de manifestações sintomáticas nas quais parece não haver o suporte da fantasia. Tais constatações nos impõem que repensemos a clínica psicanalítica na atualidade, pois a partir de uma mudança de panorama social, temos uma transformação nas formas de expressões subjetivas que por consequência apresentam novas formas de ser e sofrer. Nos consultórios, cada vez mais se ouve frases que remetem à ideia de insuficiência frente a um ideal ao qual o sujeito se sente intimado a atingir. A questão do desejo pouco comparece nessas falas: eu tenho que, eu deveria, eu não consigo. Deparamo-nos, frequentemente, como ressalta Roussillon (2006), com pacientes que demonstram muita dificuldade na transformação de seu movimento motor em metáfora verbal ou visual. Trata-se de pacientes que vão expressar diretamente no campo motor (em ato), isto é, em um caminho encurtado, seus sentimentos e vivências. Apesar de estarmos diante de pacientes que impõe dificuldades ao manejo clínico clássico apresentado por Freud, consideramos importante lembrar que para o pai da psicanálise, o sintoma tem algo de necessário e de certa forma é estruturante. Não é algo a ser eliminado e nem deve ser visto como sinal de insuficiência; ao contrário, é uma solução que o sujeito encontra para lidar com seu mal-estar. A psicanálise acredita que o sintoma e o sofrimento não podem ser abolidos completamente, eles precisam ser escutados. Nestes termos, o sintoma possui uma positividade, fala da singularidade daquele sujeito. Nestes termos, estamos propondo uma via em que possamos re(criar) a clínica a cada novo encontro, para além do dispositivo que nos orienta. Não se trata evidentemente de oferecer uma solução, mas como afirma Gondar (2004) enxergar o sofrimento como estratégia de existência diante de problemas colocados para um sujeito que talvez não tenha encontrado palavras ou ações mais afirmativas para enfrentá-lo. Diante desse argumento podemos apontar que nossa hipótese encontra um suporte, na medida em que abre novas possibilidades para o sofrimento, fugindo das soluções imediatistas de extinção do sintoma.

Na era dos transtornos, em que se oferece diagnóstico e remédio para cada sofrimento, precisamos pensar a clínica psicanalítica como um movimento de abertura para um trabalho prévio de costura e encadeamento, para além da escuta puramente verbal, possibilitando algo da ordem de uma apropriação desse sofrimento. É preciso que o analista esteja atento para perceber e receber as expressões corporais apresentadas no setting. O olhar do analista, a forma de sentir e vivenciar as experiências com seus pacientes torna-se fundamental diante dessas novas subjetividades que exigem uma atenção maior ao corpo e seus movimentos. Por fim, acreditamos que ainda temos uma trajetória muito longa a ser explorada, mas como todo processo de análise é preciso que estejamos sensíveis aos percalços que o caminho nos impõe, a fim de ter em nosso horizonte a construção de um território que possibilite nos aventurar nesses pequenos movimentos, nos silêncios e principalmente nos afetos e sensações que emergem no enquadre analítico. Assim, constitui-se fundamental a compreensão de que diante dessas novas subjetividade, pensar a corporeidade pela dimensão sensível, constitui-se um hábito e uma tarefa fundamental. Referências Bibliográficas ASSOUN, P-L. Metapsicologia freudiana: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. BIRMAN, J. A psicanálise e a crítica da modernidade. In:. Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.. As pulsões e seus destinos: do corporal ao psíquico. Rio de Janeiro: civilização brasileira, 2009.. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. COSTA, J.F. O vestígio e a aura Corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro : Garamond Universitária, 2004. DAVID-MÉNARD, M. A histérica entre Freud e Lacan. São Paulo : Escuta, 2000. FERENCZI, S. Obras Completas de Sándor Ferenczi. São Paulo: Martins Fontes, 2011.. (1912) O conceito de introjeção. Vol. I, p. 209-211.. (1921) Reflexões psicanalíticas sobre os tiques. Vol. III, p. 81-112. FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

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